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Estipulei por aqui que as segundas seriam os dias de pormenores da cidade. Claro que mais uma vez me meti em trabalhos e, neste caso, não é pela falta de pormenores mas antes pelo contrário. Há tantos pormenores nesta antiga e velha cidade, que se torna difícil escolher o caminho.
Sempre ouvi os que têm mais idade. Tenho pelos nossos “queridos velhos” um carinho especial, mas mais que isso, respeito. Respeito toda a sua vivência de muitos e difíceis anos, tantos, que hoje até se sentem em estado de graça.
Mas por onde ir afinal na descoberta dos pormenores de hoje!?
Uns raios de sol, vindos directamente do céu, iluminaram o Sr. Duque e a sua espada. Apenas o seu olhar posto na cidade velha e a ponta da sua espada. Entendi o momento como um sinal, e olhando o seu olhar e o apontar da sua espada, logo senti que o caminho a seguir seriam as ruas do Centro Histórico.
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Pois fomos até lá. Esperei uns instantes por outro sinal, mas como nada caía do céu, resolvi entrar ruas adentro, entretanto fui fotografando aqui e ali.
Um pormenor de uma porta, um pormenor de uma varanda, outro pormenor de parede com porta, mais um pormenor, uma janela, uma parede ou o que resta dela. Estava então na Rua do Correio Velho.
Lembrei-me da ilha, do Cavaleiro de seu nome, parece estarem para breve as prometidas obras. Espreitei no buteco do Quim, mas não estava. Passei de novo para a Rua do Correio Velho e apareceu-me o “Eu também já vi”, como sempre em cima do acontecimento, disse-me que a parede da sua casa, da parte de trás, já tinha caído e que até andava à procura de um fotógrafo. Perguntou-me se era eu que tirava as fotografias às casas caídas. Disse-lhe que não… e com um “eu também já vi” partiu tão depressa quanto chegou. Definitivamente também não era ele o sinal que eu esperava dos céus.
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Espreitei a Rua Luís de Viácos, estava na mesma, regressei Rua do Correio Velho acima. Sempre tomando uma foto aqui e ali, conforme uma cor, uma sombra, uma tábua, um cadeado me chamava a atenção.
A meio da Rua do Correio Velho sinto sempre um aperto no coração. Precisamente ali onde outrora eram “ Os Canários”. Recordo sempre com saudade a minha primeira actuação integrada num grupo coral chamado GIEC (penso que era assim). Uma actuação desastrosa por sinal, para nós os “coristas”, pois o público não deu por nada. Eram tempos do pós Abril, cantamos a Grândola, a Gaivota que voava, voava, canções do Zeca Afonso e poemas de António Aleixo. O Grupo não durou muito e só fez duas actuações, a segundo foi em Couto de Dornelas. Olhando agora à distância para o grupo, estou em crer que éramos um grupo de cantares comunista, embora eu nunca o tivesse sido. Mas que raio, estávamos em 1975 e nesse tempo tudo era comunista e socialista ou derivados e os outros, os do contra, eram da direita fascista e fascizante, radicais e até bombistas. Além de puto, nesse tempo ainda acreditava nos ideais de Abril, nas doutrinas, na gaivota que voava, asas ao vento, coração de mar e, eu estava com a revolução da liberdade. De tanto acreditar nos ideais dos políticos de então, hoje custa-me acreditar, e até dos que aparentemente são políticos sérios e filhos de boa gente, eu desconfio.
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Mas nos “Canários” ainda tive depois oportunidade de dançar num grupo folclórico…se o mar tivesse varandas/nem que elas fossem de pau/levava o meu amor/ à perca do bacalhau… nunca mais esqueci esta quadra, e até ainda lhe recordo os passos da dança…
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Ainda nos Canários, ensaiamos e levamos a público um espectáculo de poesia e movimento, com o chorar da guitarra de Carlos Paredes e poemas de Manuel Alegre. Fátima Patronilho, para quem ainda se lembra dela, então uma jovem professora primária também cheia de ideias, agarrou num grupo de jovens e pôs-se a dar cultura ao povo… que respondeu sempre com casa cheia, muitos aplausos e choros na assistência.
Seria este o sinal que eu esperava do céu!?
Não, pensando bem isto são recordações de bons tempos inocentes de uma juventude que tinha acabado de descobrir a liberdade, e por isso o aperto no coração quando ainda hoje passo por aquilo que outrora foram os “Canários”, por sinal uma belíssima casa de espectáculos, que na altura não rivalizava em grandeza com o Cine-Teatro de Chaves, mas que rivalizava em beleza e muitas ideias que por lá passavam. Curiosamente ambas as casas de espectáculos morreram e ambas deixam saudades.
Mas havia que ir à procura do sinal.
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Ali mesmo na travessa das caldas, onde o romântico banco de jardim namora o marco de correio, encontrei outro sinal, mas também este não era o sinal que esperava, mas antes um daqueles sinais que existem e ninguém vê e para o qual também ninguém é responsável e que para os tais números de Lisboas, números das estatísticas que vão para a Europa, estes “desvalores” não existem. Aliás haverá algum mal ou observação a fazer a alguém que deita uma sonecazinha ao sol apetitoso de Inverno!?
E fui andando, agora Rua Direita acima. Afinal já se fazia tarde e o electrodoméstico (como diz o Beto), estava estacionado no Largo do Anjo.
Passei pelo nobre Largo da República, e nada me despertou.
Passei junto à Santa que até serve de adorno às montras de lingerie, mas também nada de sinais, apenas a curiosa imagem.
Por fim chego ao Largo do Anjo, e dou-me conta de um pormenor. A estátua do Padre está de costas viradas para a cidade. Seria este o sinal que vinha do céus e o Duque momentos antes me apontava!? Se tal fosse, porquê é que o Duque me mandou para o Centro Histórico?
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Chegado a casa revelei as fotos, como quem diz – descarreguei-as no computador e pus-me a ver as fotos que durante a caminhada iluminada tinha tirado. Só portas e janelas fechadas, paredes e varandas a cair, cadeados e tábuas pregadas nas entradas…
Finalmente compreendi o sinal e também entendi porque é que o Padre do Anjo está voltado de costas para a cidade e às vezes até acorda com uma pedra na cabeça.
Moral da estória: Há muitas costas viradas para o centro histórico da cidade, mas a cabeça, só pesa a alguns!
Penso ter sido este o sinal dos pormenores de hoje.
Amanhã há mais!