Curral de Vacas - Chaves - Portugal
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A primeira vez, teria eu 6 ou 7 anos, se tantos, que fui a Curral de Vacas, foi quase em excursão familiar com pais, padrinhos, irmãos, acomodados como podíamos, todos dentro de um carro preto e grande, que gemeu a bem gemer para atingir o cimo da longa subida que desaguava na aldeia. O Esforço do carro foi tanto ou igual ao nosso, que dentro dele sofríamos e temíamos não chegar ao destino, o que seria uma tragédia não poder assistir devotamente ao Auto da Paixão. Era tempo em que a religião além de se levar a sério, era tão temida como abençoada da mesma forma que Deus nos castigava ou dava graças. Assistir ao Auto da Paixão, além da beleza da representação, era também uma graça de Deus.
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Estávamos nos anos 60 e só regressaria lá de novo, 20 anos depois por um motivo profissional qualquer. Da aldeia poucas imagens tinha, do Auto da Paixão, recordava e recordo ainda muitas das cenas e do túnel humano que se ia abrindo para a representação passar, mas também dos comentários de apreciação da representação das cenas e dos personagens, sobretudo o de Jesus que era sobre o qual recaiam mais atenções.
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Tenho assim, desde sempre, associada a aldeia de Curral de Vacas, ao Auto da Paixão, que, quer se tivesse a sorte de assistir ou não, era famoso e passava para além das terras de Chaves, tanto, que até Miguel Torga se sentiu atraído pela fama e encanto do acto ato e mesmo sem auto, quis conhecer o palco da representação:
Curral de Vacas, Chaves, 24 de Setembro de 1970
Hoje vim apenas ver o palco. Qualquer dia virei assistir à representação do Auto da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nestas quelhas esburacadas e cobertas de bosta, ladeadas de postigos por onde espreita a solidão humana sem fartura, sem higiene, sem instrução e sem esperança, sim, é de um Zé qualquer, pode carregar dignamente uma cruz divina
Miguel Torga, in Diário XI
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Também eu, antes deste post, por várias vezes fui, apenas, visitar o palco da actual atual aldeia. Vinha-me sempre à lembrança o tal Auto da Paixão e regressava sempre de mãos vazias e sem imagens da aldeia de hoje para a feitura deste post.
Mas continuemos, ainda, com o Auto da Paixão e com Torga, que depois do palco vazio, quis vê-lo cheio de paisagem humana num espaço de devoção, mesmo que ingénuo mas fazendo parte das práticas ancestrais enraizadas na vivência mais profunda de um povo.
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Curral de Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974
O Auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária, a fonte de Jacob, o Jardim das oliveiras e o Sinédrio reduzido a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão, a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário, tudo se passou como no verdadeiro – um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor, Presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na honra da verdade; Caifás, o influente poderoso e rancoroso, que não é por nós é contra nós; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia, mata, queima, esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas. Nem o próprio redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel, a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas, e essa doçura da natureza emoldurada harmoniosamente aquela lúdica catarse colectiva, teatro e realidade misturados, festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus é Deus, um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas…Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou ao lábios de Cristo era um naco de pão-de-ló ensopado em vinho fino…
Miguel Torga, in Diário XII
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Este blog está quase a cumprir a sua promessa de passar por todas as aldeias do concelho de Chaves com um post alargado, pois com breves passagens já todas passaram, e Curral de Vacas não poderia ficar de fora de uma abordagem mais profunda e, em imagem, deixar também aqui uma ideia do que é a aldeia. Não poderia adiar mais uma visita demorada e a recolha de imagens. Aqui está hoje o post e as imagens possíveis, na certeza de que muitas mais poderia ficar aqui.
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Uma abordagem que confesso difícil, não só porque todas as velhas imagens do meu imaginário se diluíram na modernidade da aldeia, mas também, como diz Torga, por perder a sua identidade, começando pelo nome da aldeia, que não sei por qual vergonha tentam borrar e deixar esquecido o nome de sempre, da e ligado à sua história, do seu passado – Curral de Vacas, chamando hoje a si e à aldeia (consagrado em placa à entrada da aldeia) o nome da freguesia de Santo António de Monforte.
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Também Torga lamenta e de novo canta Curral de Vacas no seu diário, passados quase vinte anos após ter-se rendido a todo um povo:
Curral de Vacas, Chaves, 3 de Setembro de 1991
À semelhança de tantas outras que me ocorrem penosamente à lembrança, também esta terra, infelizmente, perdeu a identidade. Mudou de nome, alindou as moradias, secou-lhe no largo o negrilho centenário que a tutelava, deixou apagar o forno do povo, pôs fim às representações do Auto da Paixão, que a notabilizavam e aqui me trouxeram pela primeira vez. Com todas as raízes cortadas, ninguém se orgulha mais do tapete de bosta que lhe almofadava os passos logo ao nascer. Cada morador, com quem falo e comento a degradação, parece ter perdido a memória das antigas feições. Até o patriarca, que foi durante a vida inteira titular da figura de Cristo no drama sagrado, e era pelo ano adiante a figura carismática da povoação, no que diz e me diz é um estranho a si próprio, um zé-ninguém indigno da majestade que dantes lhe nimbava a rude fisionomia de cavador. Nem o consigo ver, como vi, a morrer santamente na consternação de todos pregado na cruz do calvário, nem, depois, a festejar alegremente com os amigos, lascas de presunto e copos de vinho tinto, a sua ressurreição.
Miguel Torga, in Diário XVI
A Maravilha do Reino, perdia assim para o poeta que a canta, um pouco do seu encanto.
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Mas vamos deixar, para já, Torga e as perdas do passado de lado, que, no entanto, se refletem no presente de uma aldeia que cresceu a par da modernidade alongando o seu casario ao longo da estrada agora asfaltada, que construiu os seus bairros novos, que pavimentou e arranjou o seu largo, o tal dos negrilhos, que vá-se lá saber porque, um pouco por todo o lado, resolveram morrer e deixar mais tristes os espaços que ocupavam.
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Mas vamos a um pouco da história desta aldeia que ainda hoje, oficialmente, é Curral de Vacas, pois tanto quanto sei, e assim consta na divisão administrativa do concelho, à Freguesia de Santo António de Monforte, pertencem as aldeias de Curral de Vacas e Nogueirinhas.
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Comecemos pela origem do topónimo. Como sempre, existem várias hipóteses para a origem da designação Curral de Vacas. Uma, tendo origem na abundante criação de gado bovino ligado à aldeia, que se calha (agora sou eu a supor) teria de perto a ver com a existência da principal feira do gado da região se realizar em terras de Monforte (Castelo) à qual esta aldeia pertenceu em termos administrativos até 1960, pois só a partir desta data é que se formou a freguesia de Santo António de Monforte (com Curral de Vacas e Nogueirinhas). No entanto, pessoalmente estou mais virado para uma segunda hipótese de origem da sua designação, e, esta, apoiada até por alguma documentação, pois segundo segundo Viterbo no seu famoso “Elucidário” faz-se referência a um senhor donatário destas terras, cujo nome seria Luiz Pires Voacas. Seria talvez aqui (sou eu a supor outra vez) que o topónimo teria a sua origem e, a ser assim, inicialmente poder-se-ia referir ao curral do (Sr.) Voacas, acabando em Curral de Vacas. Claro que como não há qualquer documento que ateste em prol de uma origem, qualquer uma das apresentadas (ou que apresentem) pode ser verdadeira.
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Quanto à denominação da freguesia ser Santo António de Monforte, quanto a essa já se têm certezas e está directamente diretamente ligada à tal ligação que Curral de Vacas teve, como território paroquial, à terra e julgado de Monforte de Rio Livre.
Pela existência de vários castros nas aldeias mais próximas, tudo indica que curral de Vacas pudesse ter tido ocupação pré ou proto-histórica. Já inequívoca é a romanização bem patente na ara existente no interior da Igreja Paroquial invocada à divindade indígena Larocus (ou Laraucos, conforme os documentos que se tenham de base) e que hoje dizem ser de invocação ao Deus Larouco. Aliás esta ara é mesmo directamente diretamente relacionada com a Serra do Larouco, cuja imponência se avista desde Curral de Vacas, bastando dirigir olhares para terras do Barroso.
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A Igreja Paroquial com torre sineira galaico transmontana de dois sinos, hoje com pedra à vista e isenta de qualquer reboco, mostra uma traça incaracterística com certa persistência do gosto românico, principalmente a nível do aparelho e do pórtico principal aberto em arco de volta inteira. Na frontaria pode ainda observar-se um pequeno óculo de recorte oval talhado em dois enormes blocos justapostos. Algumas irregularidades construtivas denunciam as sucessivas reformas a que o templo esteve sujeito ao longo dos tempos. O Padroeiro, como é natural, é Santo António, com honras e festa marcada anualmente para 13 de Junho junho.
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No largo principal da aldeia ergue-se um Cruzeiro perto do qual a Capela da Senhora do Rosário mostra a sua graça, rematando o largo.
É junto a esta capela que se inicia o caminho para a escola primária, que (milagre) é uma das poucas escolas rurais em funcionamento. Uma prova de que esta aldeia não foi muito castigada com o despovoamento a que estamos habituados, aliás pelos Censos existentes desde que foi criada a freguesia de Santo António de Monforte, a freguesia mantém-se sempre acima dos 500 habitantes. No entanto os primeiros Censos da freguesia são de 1970, faltando os anos críticos de perda de população associados à década de 1920 e às de 1950/60. Contudo é um bom sinal existir escola primária em funcionamento, pois é porque existem crianças, e embora (segundo apurei) não chegue aos 20 alunos e esteja bem longe do número de alunos da primeira escola na aldeia, que em 1916 era de 76 crianças em idade escolar.
Geograficamente, a aldeia ocupa parcialmente uma área planáltica que se estende até Mairos e Paradela de Monforte no entanto as suas terras descaem para a bacia orográfica do Rio Tâmega.
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Em termos de actividade atividade, a agricultura é a de maior importância, com as culturas comuns às terras do planalto (batata, centeio, alguma vinha e os produtos hortícolas bem como árvores de fruto de proximidade das habitações. Em tempos, não há muitos, era conhecida também por se dedicar à pecuária e à produção de leite que hoje se perdeu, tal como em quase todo o concelho e graças às “boas” negociações agrícolas de preços e quotas que os nossos responsáveis governamentais têm travado a nível europeu e que em muito têm contribuído para o despovoamento do interior Norte.
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E se a nível da aldeia a principal actividade atividade é a agricultura, já não o é em termos de ocupação dos seus habitantes, muitos deles reformados e outros tantos a trabalhar em diversas actividades atividades fora da aldeia e na cidade, funcionando a aldeia como dormitório. Uma prova de como se pode trabalhar na cidade e viver na aldeia, com a sua qualidade de vida, vizinhança e tranquilidade, mesmo que, embora avistando-se a cidade, ela fique a 12 quilómetros de distância. Outras aldeias bem mais próximas da cidade poderiam seguir o exemplo destas aldeias ainda com vida.
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De história e lenda, falta ainda referir a Fraga da Moura ou Pedra Pitorga, mas mais uma vez, a preferência e referência deixo-a a cargo de Miguel Torga:
Curral de Vacas, Chaves, 4 de Setembro de 1991
Com metade da povoação a guiar-me , visita penosa à Pedra Pitorga, um abrigo pré-histórico gigantesco que deu segurança através dos tempos a sucessivas aflições. A ele se acolhiam os primitivos habitantes da região, assediados por ursos, lobos, javalis e outros inimigos. Nele se refugiavam foragidos da Inquisição e da sanha miguelista e liberal, e perseguidos da Guerra Civil espanhola, que a raia não defendia da raiva nacionalista. Labirinto granítico oculto num matagal de giestas e Carvalhas, nele me apeteceu resguardar também a dignidade de poeta neste tempo sem poesia que me coube.
Mas o Homem já não sabe identificar-se no seio da natureza. Nem mesmo os candidatos à santidade se retiram nos cenóbios e nos desertos para conhecer na solidão os limites da alma, e meditar na hipocrisia humana. Cépticos também, procuram compungidos no seio escancarado das multidões a justificação da farsa da sua medular incredulidade. Os poetas, esses serão sempre presenças por si próprias devassadas em todos os recônditos do mundo. Em nenhum sítio real ou imaginário se podem evadir dos seus demónios interiores e da incompreensão demoníaca dos outros.
Miguel Torga, in Diário XVI
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Para finalizar, a referência ao testemunho da vida comunitária que existiu na aldeia e pena é, nem que fosse apenas em termos de animação, convívio bem como honrar a história do passado, as infraestruturas comunitárias existentes não seja frequentemente utilizadas. Refiro-me ao lavadouro público e refiro ao forno do povo, já que as fontes, de uma ou outra forma, lá vão tendo a sua utilidade, embora já não se vá de cântaro à fonte, pois felizmente, agora, a água já nasce na torneira de casa.
Para quem não sabe onde fica Curral de Vacas, não há nada a saber, pois basta virarmos o destino para terras galegas, para a fronteira e quando chegarmos a Vila Verde da Raia, no cruzamento da fonte, vira-se para Curral de Vacas, embora na placa apareça (claro) Stº António de Monforte. Curral de Vacas é também terra de passagem para Mairos e Paradela de Monforte, mas se de Mairos seguirmos até S.Cornélio, então Curral de Vacas pode ser passagem para quase metade das aldeias do Concelho.
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E por Curral de Vacas é tudo. Já aqui tem o seu post alargado, no entanto, ainda gostaria de lhe dedicar um outro, uma grande reportagem, a ser possível se tornarem também possível tão famoso como saudoso Auto da Paixão. Façam dele um motivo de interesse religioso, turístico e até económico que Curral de Vacas, só ficaria a ganhar, para além de ser também um motivo de orgulho para a aldeia. Não deixem que politiquices, partidarismos e outros devaneios acabem com uma tradição que vos ficava tão bem. Não percam, como dizia Torga, a vossa identidade senão caem numa vulgar aldeia qualquer.
Agora sim, para terminar mesmo, a referência a um blog de Curral de Vacas, que embora a sua última publicação seja de nov.09 já existe desde 2006 e, assume o nome de Curral de Vacas .