Pedra de Toque - O Café Gelo - Por António Roque
O Café Gelo
No Rossio, ao lado dos telefones, em plena baixa lisboeta, ainda perdura o Café Gelo, agora modernizado, europeizado.
Já não é o café maneirinho, simpático, ponto de encontro de amigos, lugar de charlas e tertúlias, cais de rostos conhecidos que ali aportavam, oriundos dos mais diversos destinos na busca do gozo do ócio possível.
Fechado o Martinho, café também de grandes tradições que virou banco, os flavienses da capital, durante mais de uma dezena de anos, passaram a visitar e a poisar no velho Gelo, onde sempre descobriam o conterrâneo bairrista para dois dedos de conversa fraterna e saudosa.
Corriam então os badalados anos sessenta, e sobretudo nos fins de tarde dos sábados, aparecia por lá imensa malta desejosa do ameno convívio que sempre acontecia.
Os estudantes constituíam a maioria.
Mas a eles associavam-se os que dolorosamente cumpriam o serviço militar e outros que, na bela Lisboa, tinham os seus empregos, o seu trabalho.
O grupo por vezes engrossava, com um ou outro conterrâneo, normalmente mais endinheirado, que de passagem pela capital, queria usufruir da cavaqueira e do prazer da cidade.
Depois da alegria do reencontro, sempre renovado todos os fins-de-semana, rumávamos para o módico restaurante, onde a confraternização surgia inevitavelmente alegre e feliz, e ao sabor da comida lisboeta, lembrávamos nostálgicos, as alheiras do Jorge e do Central, os salpicões e as linguiças caseiras.
Findo o repasto, partíamos á conquista da noite, que passava pelo fado castiço do César Morgado, que gingão nos cantava com sentimento profundo o drama da Travessa da Palha.
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E quanta Lisboa, tinha a voz dorida e gasta da senhora do bengaleiro do Solar da Madragoa, quando do âmago da sua alma de noite, arrancava amparada no trinar sibilino das guitarras o “Passa por Mim no rossio”…
Mas quando aparecia a Cândida da Conceição, para nós a gentil mamuda, fadista afamada, filha da Laurinda marinheira, nascida também aqui à beira Tâmega, “botava” sempre gostosamente e a pedido a Marcha de Chaves, estimulando-nos a euforia, saciando-nos a saudade.
Se sobravam uns escudos, já a madrugada espreitava por entre as águas do Tejo, acabávamos cantando na cervejaria do Gordo, ao ritmo de recordações brejeiras vividas nos cantinhos da nossa cidade, saboreando os finos mais diuréticos e refrescantes que bebi em toda a minha vida.
Desta equipa que nas noites de sábado realizou inesquecíveis jornadas no Rossio, na Madragoa, na Estrela, no Bairro Alto, no Cais do Sodré e em tantos belos “relvados” da capital, aqui evoco alguns dos titulares indiscutíveis, esquecendo quiçá e sem intenção muitos dos imprescindíveis suplentes.
Desde logo o querido e já falecido Zé Montalvão, o capitão do team, um pedaço de Chaves na capital, o amigo fixe, o sorriso franco, a gargalhada aberta, o grande embaixador sediado no coração de Lisboa.
O Toninho Lobo, marinheiro de muitos mares, sonhador da noite, a viola baixa do fado, a graça com raízes nas Freiras, na Ponte Romana, na madalena, no velho Liceu.
A Chinha, que não era de Chaves, mas era tanto como se fosse.
O Jorge Melo, o Lulas, o Zé Geraldes, o Zé Carlos, o Zé Tirarim, o Mário carriço, o Lixandre, o Zé Fillol, o Ramiro, o Nadir, o Varela, o Parreco …
Também o Lui, a Isabel, a Ana Maria, a Fernanda, a Zezinha Guimarães e outras amigas que nos acompanhavam, não esquecendo a pequena grande Maria de Jesus Barradas, vulgo Mariazinha dos peliçados, afável e graciosa que não perdia a oportunidade, sempre que na capital predizia o futuro nas cartas que lançava.
Mas …
A “cabine” onde a conversa nascia, o humor reinava e a estratégia se definia, era o velho Café Gelo.
Por isso, quando vou a Lisboa, já com algum cabelo branco da mocidade perdida, passo por ele no Rossio e deixo-lhe o meu olhar.
António Roque