Conto VII
Com as barbas enxutas
- Não, senhor doutor, hoje não adianta perder o tempo. Consoante sopra este ventinho lá da Sanabria e entra pela gente dentro, até os ossos se estremecem… Quando assim é, enfiam-se nos tocos do raizedo, não há o diabo que as faça sair.
- Parece que pariu a galega! Trago as mãos como o carambelo. Já troquei a medalha umas quantas vezes e nem sinal delas. Será da lua, Manuel, que te parece?
- Ao meu pai, que Deus tenha, toda a vida lhe escutei dizer que a melhor altura para caçar umas trutas é o quintar da lua nova, e se for o caso de começar a merujar uma chuvinha, então é que elas se põem doidas… e a gente tem que ir com o que diziam os antigos.
- Pois não digo o contrário, mas eu lembro-me de as ter apanhado com qualquer lua e até a nevar já caíram. Hoje é que não será dia… Olha lá, e a tua mulher tem passado melhor?
- Com a graça de Deus, desde que o senhor doutor olha por ela já nem parece a mesma. O mal às vezes anda a comer por dentro sem a gente dar conta, e quando se vai para lhe atalhar já não tem remédio. Naquela noite, em que mandei recado para o senhor doutor vir a fugir, cuidei que ela se me ficava. O senhor foi quem na salvou!
- Já não tinha que ser. Mas agora fica por vossa conta, que a saúde e a doença, muitas vezes, vão no que a gente come, e estou convencido de que ela abusava um bocado da carne de porco e do fumeiro, da pinga do vinho, dos pimentos do vinagre, tudo coisas que o fígado dela aceita mal. Já sabeis, muito cuidado com o que se mete à boca!
- Isso bom é de dizer, senhor doutor, mas se a gente passa o ano inteiro a criar o requinho, para que há-de ele ser senão para se comer?! E tirando de quando em vez uns peixinhos do rio, ou uma pita, por festa, que outra coisa havemos de pôr na mesa com as batatas e o cibo do pão?
- Bem, lá farás como melhor entenderes. Fome não passais. Ao que eu me quero referir é aos abusos, e tu bem compreendes o que eu quero dizer…
Já o avô e o pai eram moleiros e ele herdou-lhes a arte e as pedras do moinho, mais a água do rio que as punha a girar de roda. A barca, amarrada no amieiro grosso que bebe no remanso da presa, essa foi obra sua, quando a Guerra Civil de Espanha obrigou os povos de ambos os lados da raia a partilhar misérias e a tecer cumplicidades escondidas. Daí a nomeada de Manolo da Barca, como passou a ser conhecido. Mas se lhe ficou o nome, foi-se-lhe o ofício de barqueiro, quando as poldras que, meia légua rio acima, davam passo incerto de Eiriz para a Lobeira foram elevadas à categoria de ponte, só de um arco, mas ainda assim garante mais seguro da necessária travessia, mesmo que os Invernos trouxessem muita água. Depois disso, só um que outro pescador, no tempo das trutas, ou os raros fregueses do moinho, com os burros carregados de sacas e de moscas, passavam a partilhar com ele breves momentos daquela solidão conformada.
O doutor Teófilo era médico na vila e tinha tal ilusão pela caça e pela pesca que, no seu calendário, o ano tinha apenas duas estações. Há mais de quarenta anos, desde que voltara de Coimbra com o canudo, que nas manhãs sagradas das quintas e dos domingos, as mãos esqueciam o estetoscópio e o receituário para se agarrarem com mística paixão à cana ou à caçadeira, consoante corria a época. Uma vida inteira a carcomer os dias, e quantas vezes também as noites, com as dores e as misérias dos outros, a representar sempre a última esperança para os que cuidavam enganar a morte, e afinal era só ali, naquelas fragas do fim do mundo, que encontrava sentido para a vida que levava, enquanto ferrava uma truta ou estourava uma perdiz. E de todas as vezes, como se fosse a primeira, a ansiedade lhe ratava o sono breve da noite, antes que os galos alvorassem a madrugada e a mulher lhe rezasse o costumado responso:
- Não sei que desassossego tens nesse corpo, que nem dormes nem deixas dormir! Sabes bem que não devias andar sozinho por aqueles ermos, que na tua idade basta às vezes assentar mal um pé… Se um dia te acontece alguma coisa, quero saber quem te vale.
- O corpo só há-de sossegar quando morrer, o espírito é que não pode passar sem beber daquela paz. E não fiques em cuidados, que se houvesse alguma novidade, o Manuel havia de dar relação de mim.
As águas mil que o Borda d’Água sempre prometia, nesse Abril, correram o céu de lés a lés nos odres inchados das nuvens, foram e vieram no inconstante leva e traz dos ventos, mas se alguma chuva caíu não foi bastante para amaciar o rigor dos dias e menos ainda para anuviar a gélida transparência das águas rápidas do rio. Quando assim era, só mesmo o tremeluzir metálico de uma amostra de pintas garridas podia atiçar o apetite aletargado de alguma truta. Anos havia em que as súbitas enxurradas tomavam as águas com o terriço escuro das encostas e nada melhor que o oscilar dengoso do rabo de uma minhoca a roçar as pedras do fundo. Era isco garantido para compor a cesta. Se o rio clareava, à míngua de água, e o sol da Primavera cumpria a obrigação, empatava-se um anzol de tamanho apenas bastante para empalar duas remisgas, desalojadas de dentro dos seus casulos cravejados de areias finas, ou das croças redondinhas, de pauzinhos eriçados. Longe vinham ainda as tardes abafadas do fim de Maio, quando a zanguizarra dos grilos, que se punham a afinar a caixinha de música à porta dos buraquinhos, fazia dos lameiros um arraial. Os tolinhos deixavam-se apanhar a meio do concerto, cegos pela lascívia de atrair as fêmeas, para depois dançarem sobre a água, pendurados do anzol pelo colarinho negro do fraque. Tal bailarico endoidava as trutas, que, se preciso fosse, saltavam fora a abocanhá-los antes mesmo de tocarem na água. E, por fim, chegava o tempo dos saltões de ventre verde reboludo e patas dobradas em mola, que tantas vezes, por culpa daquela irrequietude saltarica, acabavam a empanturrar as trutas velhas, entrincheiradas a meia água, na penumbra escura, por debaixo da rama fresca dos amieiros. Meses bons, os da fartura! Mas, por agora, e enquanto o tempo se mantivesse assim áspero, o jeito era bater todos os cantos do rio, os remoinhos detrás das pedras e o final remansoso das correntes, armar-se de paciência obstinada, lançar mil vezes, corricar outras tantas, trocar de amostra, ou de medalha como lhe chamava o Manolo, até que alguma se resolvesse…
Já perto da noite, enquanto acrescentava um caneco de água quente à vianda do reco, que recozia no pote grande suspenso da gramalheira, batatas miúdas, restos de couve troncha e dois punhados de centeio, a Conceição começou a agoirar a demora do doutor Teófilo.
- Olha lá, Manuel, está-me a fazer espécie que o senhor doutor ainda não tenha passado para cima. Queira Deus, queira, que não lhe tenha sucedido nada…
- Vão sendo horas, vão. Mas há alturas em que elas caiem melhor rente à tardinha e, se calha, ele nem se dá conta que depressa escurece como breu. Espera-se mais um cibo, e quando tal, o melhor é eu ir saber dele.
O ruído sibilante do petromax fazia companhia ao Manuel que, apesar de conhecer as voltas do rio como a palma das mãos, caminhava cauteloso, conforme o clarão da chama lhe ia desvendando as árvores e as fragas que desenhavam a margem. À medida que avançava, ia dando berros e apurando o ouvido, na esperança de escutar resposta que lhe devolvesse o ânimo. Mas do doutor Teófilo nem sinal. Quando, ao fim, deu com os olhos no vulto, caíu-lhe a alma aos pés! Estava sentado sobre uma urze, tolhido de frio, ensopado até aos ossos, e tremia que nem varas. Chamou-o pelo nome, mas não dava acordo. O tremedoiro dos dentes castanholava que metia aflição. Rápido o pôs às carrachulas e, apesar do carrego que quase lhe fazia deitar os bofes pela boca, dali a casa foi num pulo.
- Conceição, bota umas carqueijas no lume e vai saber de umas peças de roupa minha, que vejas que lhe sirvam! Vá, mexe-te!
Deitou-o no escano e foi-lhe tirando a roupa molhada enquanto a mulher não voltava. Cobriu-o com a manta e chegou-lhe um copo de bagaço à boca.
- Beba, senhor doutor, que não há nada melhor para aquecer o corpo.
Aos poucos, o calor do lume crepitante confortou-o e começou a querer balbuciar palavras sem nexo. A Conceição voltava com uma camisa de flanela, umas calças e uns carpins de lã e já o doutor Teófilo pedia uma malguinha de caldo quente.
- Ora, assim já é outro falar. Para susto já nos chegou!
- Vocês desculpem lá este transtorno. Conforme embarrei com o cacifro na barriga de uma fraga, desequilibrei-me e caí ao fundão. Encheram-se-me as galochas com água e já me custou sair do rio. A cana e o carreto devem estar engastalhados na rama de algum amieiro. Quando te der jeito, Manuel, dá lá um salto a ver se os encontras, que tenho estimação neles.
- Esteja sossegado, que amanhã, em sendo dia, já aparece tudo.
- Oh senhor doutor, nem assim se lhe esmorece o vício? Razão tem a sua senhora, que isso é desassossego para lhe durar a vida toda!
- Também tu, Conceição? Deixa-me lá rapariga, que daqui em diante é que ela me vai moer o bicho do ouvido, ainda para mais se o vier a saber por ti, que bem se vê que estás mortinha para lhe levar a novidade.
- Não deixa de lhe ser bem feito. Agora que já lhe dá para a risada, ouça lá esta: o senhor doutor nunca ouviu dizer que não se apanham trutas com as barbas enxutas?
Herculano Pombo