Pedra de Toque - A Senhora Marquinhas
A senhora Marquinhas
Durante a minha meninice e até na adolescência conheci algumas senhoras que se davam por tal nome.
Nas aldeias do concelho sei que existiam muitas mais.
Vou-vos falar de uma que conheci muito bem e com quem lidei inúmeros anos.
Era uma mulher espantosa.
Tinha mãos de fada.
A melhor costureira de camisas de homem, era procurada pelas esposas dos cavalheiros mais distintos e conceituados da cidade, pela perfeição da sua obra. Uma filha que com ela vivia, perita na abertura das casas, ajudava-a.
A senhora Marquinhas trabalhava imenso e por isso chegava a recusar encomendas.
Numa velha Singer a pedal, talhava, colocava as entretelas, cosia, e quando as passava, as camisas feitas à medida ficavam um brinco, um primor.
A senhora Marquinhas respeitada e estimada, dominava no caroço da cidade, mais precisamente na Rua de Santo António, na Rua do Olival e no então Largo do Arrabalde.
Frequentava a loja do Reis Pinto, onde adquiria linhas, botões e tecidos e sempre larachava com o senhor Adolfo dono do estabelecimento, bom amigo, bem como com os funcionários que lhe dedicavam simpatia. Entre eles recordo o Cipriano e o Zé Mairos.
Porque era uma mulher fisicamente frágil (venceu uma tuberculose com os ares de S. Lourenço e ventosas num pulmão que secou) cuidava da sua saúde, seguindo, entre outros, os conselhos do bom amigo Dr. João Morais, clínico distinto, homem de grande coração que, quando subia as escadas para a consulta (dela ou de familiares) não deixava nos dias de inverno de se sentar à braseira para se aquecer e para dar duas de conversa, já que ambos eram óptimos conversadores.
Subia a rua com frequência em direcção à Farmácia Morais, donde era cliente, e onde tinha duas grandes amigas que a atendiam diligentemente e com afeição e apreço. Lembro a D. Alice Morais e a D. Agostinha Geraldes, esta felizmente ainda entre nós.
Mais adiante do outro lado da Rua o senhor Tavares, proprietário da Foto Águia, que era coadjuvado pelo Ão.
Ali levava as filhas e os netos para as habituais fotografias de família, em dia de comunhão solene, na Páscoa e noutras datas festivas.
Mais à frente a Casa Lopes estabelecimento de tecidos que por vezes visitava, cujo dono, o senhor Lopes, obedecendo ao nome da loja, casara três vezes.
Também no mesmo ramo perto do Reis Pinto, o Armandinho, comerciante conhecido, que dera trabalho ao seu sobrinho, o jovem Paulo, amigo já finado que com o tio aprendia os segredos do ofício.
Ao talho do senhor Maneca Pinheiro, mais conhecido por Maneca Sonim, era visita diária. Não ficasse ele no rés-do-chão da casa onde ela residia.
Bastante mais idosa, por vezes discutia com o Maneca, mas não deixava de o estimar, estima essa que ele lhe devolvia sem limites.
(Vêr nota no final da crónica)
O Silva Mocho, na esquina com o Arrabalde, a grande mercearia na época, era onde ela adquiria todos os produtos necessários para o governo da casa.
Aí tinha conta, como era uso, mas era recebida sempre com afabilidade pelos donos, Sr. Eduardo e irmãos e pelos funcionários, entre eles o senhor Manuel Ventura que resiste, respirando saúde e boa disposição.
Mais à frente, na Rua do Olival, a Pensão Restaurante Império, uma das melhores e mais conceituadas da cidade. Frequentava-a, não com muita assiduidade, já que a sua filha, casada com o proprietário, visitava diariamente a casa da mãe onde crescia um filho dela e neto da senhora Marquinhas.
Muitas outras amigas do peito, com a D. Aurora Leão, a D. Adélia Campos, entre outras, eram visitas da residência dela, onde normalmente lanchavam e conversavam, práticas de então, infelizmente a desaparecerem.
Eram estas, com maior ou menor precisão as fronteira físicas e pessoais, do “Reino” da senhora Marquinhas, cujo marido por razões de trabalho passava muito tempo fora de Chaves.
Esta senhora, autodidacta, era uma mulher culta e extremamente inteligente (fina também como então se dizia).
Com a quarta classe, ouvia diariamente a Rádio (a televisão chegou muito mais tarde) e lia todos os dias, de fia a pavio, o Século, um diário de Lisboa que chegava a Chaves no comboio das vinte e pico.
Não lhe escapava notícia, artigo de opinião, necrologia e muito menos os folhetins, que eram romances de autores conhecidos e consagrados que o periódico, aos pedaços, publicava diariamente.
Tinha, por isso, opinião sobre qualquer assunto e esforçava-se para a fundamentar.
Era escutada e procurada.
As casas reais da Europa conhecia-as no pormenor, pela leitura do jornal e de revistas com destaque para o Século Ilustrado.
Redigia muito bem, ajudando pessoas que lhe pediam para escrever cartas.
Com ela cresceu o neto por quem nutria muito amor correspondido. Ele certamente por contágio, temente das doenças, quando se queixava de pequenas mazelas, ouvia a avó a comentar: “O rapaz de coice de pulga não morre”.
Quando o neto, já na faculdade, regressava de férias a Chaves e aqui se pronunciava sobre qualquer acontecimento importante, perante outros, dizia sorrindo: “Quem os quer manda-os para Coimbra”.
Tantos ditos populares cheios de sabedoria e graça que ela proferia…
De momento já recordo muito poucos.
Definhou, acabando por extinguir-se, por apagar-se serenamente a treze de Janeiro de 1975, já na casa dos oitenta.
Não sem antes, lúcida, reiterar as suas dúvidas quanto à veracidade das imagens de televisão que mostraram o homem a pisar a lua.
Na certidão de óbito, o nome da senhora Marquinhas reza Maria do Rosário Gonçalves Roque.
Foi a pessoa que me ajudou a crescer que mais me ajudou na minha formação, de quem recebi imensos cuidados e enorme ternura, a primeira mulher que amei.
Voltarei a ela e ao muito que presenciei e me ensinou e que merece ser contado
Desculpem-me … Já não consigo escrever mais. As lágrimas turvaram-me a visão.
A senhora Marquinhas era a minha querida e saudosa avó.
António Roque
Nota: Sempre que posso tento ilustrar os textos com imagens. Neste texto só era possível uma, a que vos deixo, onde se encontra o autor da crónica (ainda criança) à frente da Avó Marquinhas (ao centro) e a mãe (ao lado direito). A outra senhora não me foi possível apurar a sua identificação.
Esta imagem só foi possível graças à cumplicidade de um amigo (Rui Queirós) e do Silvano Roque, irmão do autor da crónica. Espero que o autor goste e me desculpe esta surpresa.
Fer.Ribeiro