O POÇO DO BELÃO
Desde que se descobriram as Américas, uma das principais riquezas do Planalto, para além do eterno centeio, é a batata. O tubérculo, criado na montanha entre as fragas, não tem paralelo no mundo inteiro!
Dizem, com propriedade, que a batata do Brunheiro é a única que se ri quando cozida!
E falo da batata de consumo, porque a de semente, sua irmã, também criada escrava pelos corgos, em apanhando terra gorda e húmida, medra que se farta!
Quase todos de sequeiro, os terrões planálticos são pobres como Jó. Na coroa da serra não se espreguiça rio nem regato, e quem quiser lentura no renovo, para aumentar a colheita, que se desemerde! Abra um poço ou rasgue uma mina que sejam capazes de lhe varar o osso e chegar-lhes à veia. Caso contrário, em anos mais secos, as colheitas estrezicarão à míngua de água.
Ao centeio bonda a água da neve ou a da chuva que Deus manda. À batata também. Mas só para quem se contente com pouco. Quem quiser aumentar o pecúlio que trate de regar!
Fidalgos são os da Veiga que levam a vida derrengando polaina! O Tâmega dá-lhes de beber de graça! Mais ainda desde 1949 com o Açude de Vila Verde.
Da água tratou o Ti Moreiras do Carregal, na campina do Belão. Uma propriedade imensa, constituída por um extenso carvalhal de cuja esgalha se enchia o palheiro para o inverno; por uma touça que dava tojo e sargaço com que se fazia a cama dos animais e se estrumavam as terrinhas de cultivo; por um grande lameiro, guardado para feno pelo S. Brás; por um enorme giestal que o maio pintava das mais alvas cores e por uma terra de lavradio que produzia centenas de rasas de centeio e atulhava o armazém de batata.
O Belão era a menina dos olhos do velho combatente da Flandres, o bem mais precioso que lhe fartava a casa e a cria. Havia, por isso, que o estimar.
Foi nesta senda que se lhe meteu na cabeça mandar abrir um poço que fizesse o renovo mais viçoso. Corriam os anos quarenta.
Justou a obra com o Francisco Mineiro em cinco notas de cem, com garantia de água farta. O especialista, munido de uma gancha de salgueiro, sondou o terreno durante dois dias a fio para dar com o eido à água. O secular detetor inclinou-se quase até ao chão perto de um salgueiro que nascia no centro do Belão. Acertou em cheio na aorta que descia do Cabeço até aos prados de Adães. Porém, levou três longos meses a atingi-la. Até aos dois metros, e enquanto a terra deu em ser mais escura, bem te vai! A partir dali começou a dar saibro cada vez mais duro e pouca água. O desespero era crescente, contudo, passados os 15, a coisa começou a prometer. Aos 18, deu em fraga dura e saltou a dessorar água à fartazana.
Bastava de fundura!
O sucesso foi tal que o patrão Moreiras tratou logo de encomendar, ao mesmo artista, o empedramento do poço, para que não se esbardalhasse.
Mais cinco notas! «Que se cosesse o dinheiro, caraito, o que importava era obra bem-feita!», pensava o anfitrião!
Após mais três meses de labuta, o Mineiro apresentou um trabalho de respeito que ainda hoje pode ser visto!
O catano do poço até metia medo de tão fundo e de tão ancho que era. Mesmo o mais destemido pimpão que se aventurasse a desafiar-lhe as bordas, não evitaria uma tremedeira nas pernas como se estivesse com as maleitas!
Eu mesmo confesso que nunca lhe vi o fundo! Nem mesmo o motor de rega, a vomitar água o dia inteiro, o conseguia escoucar!
Onde acabava o empedrado e começava o saibro duro, crescia um salgueiro bravio no qual o paizinho tinha particular empenho. Até parece que adivinhava (mais tarde se saberá porquê). Certo é que aquela bendita árvore, bem alimentada de água, quase escondia por completo a bocarra do poço, o que o tornava ainda mais misterioso.
Para além disso, mais ou menos a meio, numa frincha entre as pedras, criava um casal de mochos todos os anos. Outro orgulho do proprietário António! De facto, não era para todos poder contar com a preferência da ave da sapiência. Além do mais, dava-lhe um certo gozo poder contribuir para que as noites de lua cheia do Carregal se preenchessem com o misterioso e agoirento pio deste noctívago pássaro. E mais a mais, quem haveria de beber o azeite das luminárias da matriz de Santa Leocádia?..
Poço feito, água a rodos, faltava um engenho que a trouxesse ao batatal. Pensou numa picota, depois numa nora! Porém, ambas as soluções, eram demasiado arcaicas para a visão vanguardista do Ti Moreiras. Lembro que este senhor, sem ser especialmente letrado, já lia o Comércio do Porto que lhe chegava recesso de oito dias. Aliás, foi aí que se deparou com o seguinte anúncio:
Não regue de regador, use antes um motor!
Motor Bernard uma bomba a regar!
Iluminou-se-lhe a alma!
Logo que pôde, encatrafiou-se no Texas em Vidago e parou no Porto. Queimou uma nota de cem na rua dos Almadas. Despachou o Bernard no comboio para Chaves.
Passados alguns dias, recebeu recado que já havia chegado. Jungiu os taludos bois galegos, engatou-os ao carro e tocou para a cidade.
Regressou após um lauto almoço de costeletas em sorça no Sr. Horácio do Tabolado.
Vinha todo croncho com a máquina!
Parou no relógio, em Vilar de Nantes, para o primeiro copo. Juntou logo ali uma dúzia de admiradores. Em Izei, mais de uma dezena, outra no Pêto de Lagarelhos. Em France então foi quase toda a aldeia. No Carregal, nem se fala! Decretou-se até descanso para o dia seguinte por mor de se ver o motor a trabalhar. Tratava-se seguramente de um dos primeiros motores de rega a chegar ao Planalto. Uma coisa que ninguém da aldeia tinha alguma vez visto ou sequer sonhado existir. Por isso, merecia que fosse feriado. Atrevia-me mesmo a dizer que não desmerecia que fosse dia santo de guarda!
Tratava-se de uma máquina enorme e pesada. Nada ficava a dever ao motor da camioneta do Ti Antoninho Morgado de Fornelos!
O Ti Moreiras construíra mesmo uma casa para o acolher no Linhar do Pêto e que ficou conhecida como a casa do motore. Passaria a ser a morada definitiva do Bernard. Ficava por cima de um poço coberto por enormes lajes de granito que servia para regar a horta, a lameira e encher o tanque de lavar. Aí mesmo haveria de ser experimentado pela primeira vez para gáudio da gente da povoação.
No dia aprazado, o povo madrugou e juntou-se, como para uma festa, no adro da capela que era contíguo à casa do motor. Estou que nem a festa do padroeiro S. Bentinho juntara alguma vez tanto povéu!
O Ti Moreiras encheu o depósito do petróleo e meou o da gasolina. Sangrou-o. Meteu a manga no poço e enroscou-a à bomba. De seguida, ferrou o motor. Atarraxou a vela de incandescência, ligou-lhe o cachimbo e com tudo prontinho, encaixou a manivela de ferro no volante, como se fazia para pôr as arrastadeiras a trabalhar antes da descoberta do motor de arranque.
Ordenou ao povo que se afastasse. Deu à manivela com tanta força, mas com tão pouco jeito, que nem o motor pegou nem sequer o volante deu uma volta completa. Tentou segunda vez. Com tal convicção o fez que a manivela, saltando-lhe da mão, foi disparada à cabeça do Gripino. Esmoucou-o, ao mesmo tempo que o Ti Moreiras esfolou os nós dos dedos na pedra áspera do chão. Contudo, nem o Gripino se incomodou com o lanho, nem o Ti Moreiras com a esfoladela! O importante era mesmo que o bichinho trabalhasse!
À terceira foi de vez! O Bernard pegou numa roncadeira infernal. O povo, na expetativa de ver a água a sair, não se continha, soltando expressões de pasmo!
Que maravilha! Uma coisa nunca vista!
A água jorrava cristalina e num caudal apreciável. Tanto que não levou dez minutos a encher o tanque de perpianho.
A experiência estava feita e bem-feita! O motor aprovara!
Para festejar, o Ti Moreiras espargiu figos secos e nozes à rebatina e passou a lingureta da aguardente feita do bagaço das uvas de Cova do Ladrão. Naquele ano era de estalo!
– Que bebam miúdos e graúdos, festa é festa! – dizia o Ti Moreiras, radiante.
Entretanto, aproximava-se o tempo da rega. Para o efeito, era preciso transportar a avantesma até ao poço do Belão. O Ti Moreiras não perdeu tempo. Também quem sabia fazer tonéis e dornas haveria de dar um jeito a uma carroça que fosse azadinha para o levar.
Meu dito, meu feito!
Botou mãos à obra e não tardou a apresentar uma gerigota carroça escarlate, para atrelar à égua Espuleta. A primeira vez que foi usada resultou tão bem que nem era preciso desmontar o motor para o pôr a trabalhar junto ao poço! Serviço feito, a Espuleta era desatrelada e passava tardes santas pastando à sombra do carvalhido. Que boa vida levava, agora, o animal! Tirando o transporte do patrão para as feiras de Carrazedo ou de Chaves, nada mais fazia do que levar o arcanho para o Belão de manhã e recolhê-lo pelo ocaso.
O batatal até se via medrar!
A colheita de setembro prometia!
O Ti Moreiras, de vez em quando, arrancava um pé aqui e outro acolá para monitorizar a medração. Chegava a contar mais de dez batatas em cada pé e, de uma semana para a outra, quase dobravam de tamanho. De facto, o arranque demonstrou quão eficaz fora o investimento no poço e na rega. Só naquele ano, mais de metade do custo, seria coberto com o acréscimo da produção.
Meteu-se o inverno e com ele o descanso das pessoas, dos animais, das alfaias e das terras. Agora, também do motor.
Chegou o mês de abril. Com ele vieram as águas mil e as primeiras orelhas do batatal. O poço de tão cheio quase transbordava. E mesmo que o verão fosse seco, às batatinhas nunca haveria de faltar o molho.
Assim aconteceu durante alguns anos!
Contudo, a idade não perdoa e o Ti Moreiras, aos setenta, teve de entregar a lavoura ao Fernando, seu filho mais novo, meu ditoso pai.
A partir dos meus cinco anos, muito eu gostava de o acompanhar na rega do Belão! Para além de me sentir um homem grande, ele deixava-me ir em cima da carroça e acavalo no motor. Depois punha-me ao fundo do rego para dar sinal quando a água chegasse. Mal a topasse gritava:
– Torna!
O meu pai virava-a para outro rego. Entrementes, eu cantava tardes inteiras as cantigas da moda, cuja letra se comprava em folhetos aos ceguinhos, no cimo das escadas da velha praça das Longras. Lembro-me da cantiga preferida: ó tempo volta p’ra trás, de António Mourão. O meu pai gostava de me levar. Dizia que o distraia o meu canto de rouxinol!
Fui crescendo e a coisa foi perdendo a graça. Também o corpo já podia com outros trabalhos, pese embora me isentarem quase sempre dos mais pesados.
Teria uns 10 anos, quando, no fim de uma campanha de rega, o Bernard faleceu de acidente. O meu avô António, já muito idoso, teve tal desgosto que pouco mais tempo durou. A estória conta-se em poucas palavras.
Tínhamos lá em casa um estupor de uma égua, a Rola, que tinha um medo inexplicável aos automóveis. Nem precisava de os ver, bastava sentir-lhe o roncar e entrava em pânico. Não importava se estava montada ou atrelada, desinvestia como uma louca campos fora e nem as paredes a detinham. Ora, como para levar a carroça do motor para o Belão era preciso atravessar a estrada nacional, antes de o fazer, era sempre necessário verificar se viria algum carro nas curvas das Padanas, para o lado de France, ou nas do Cabeço, para o lado de Fornelos!
Numa bela tarde do fim de um qualquer junho, depois de dormir a respetiva sesta, decidiu meu pai ir regar para o Belão. Era costume manobrar de marcha à ré para colocar, a preceito, carroça e motor nas bordas do poço. O meu pai, de frente para o dito, deu meia volta ao carro e à Rola e com mão firme, à barbela, foi mandando:
– Sasta Rola, sasta! – para a fazer estacionar onde bem queria.
De repente, começou a ouvir-se, ao longe, um ronco surdo de um motor de camião. Era a camioneta das cinco do António Magalhães que fazia a carreira de Chaves a Carrazedo e que, naquele dia, vinha com o escape livre. O som foi-se tornando cada vez mais nítido, até que a égua, apercebendo-se que se trataria de um carro, começou numa agitação incontida a espumar, a remoer os dentes e a querer relinchar!
Temendo o pior, o meu pai tentou sossegá-la e fazê-la avançar.
Não foi a tempo!
Assustada, a besta pôs-se em pé nas patas traseiras. Quando pousou as da frente, recuou com tal impetuosidade que o motor, a carroça e ela própria se precipitaram no abismo.
O motor, pesado, só parou no fundo do poço, onde ainda deve estar. A carroça e a Rola ficaram suspensas nos galhos mais grossos do salgueiro bravo que enraizava nas paredes do poço. O meu pai, muito zangado, ponderou não chamar ninguém e deixar o animal a espernear como merecia! Porém, lá se decidiu e pediu ajuda.
O Carregal acudiu em peso. Com cordas carrais, juntas de bois e a força de braços, lá se conseguiu tirar daquelas proparos o animal e a carroça!
A partir desse dia o veículo teve novo uso!
A Rola foi vendida aos ciganos na feira de Carrazedo.
O motor, jazendo no fundo do poço, nunca seria substituído porque, entretanto, o meu pai mudou de vida. Deixou a lavoura e empregou-se na cidade para dar futuro aos filhos.
O meu avô António faleceu em 1976, quem sabe se de desgosto por ser incapaz de resgatar o Bernard do fundo daquele poço do Belão!
Justificaria, contudo, o empenho que sempre teve naquele bendito salgueiro!
Gil Santos