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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

31
Mar13

Pecados e Picardias


 


Cheira a folar


 

Cheira a folar

E enquanto cresce a água na boca

voa um pensamento às origens

onde encontros no forno, prediziam futuros

e acordavam passados

 e Deus

(em vez de salivar)

vestido de mistério e semblante carregado

vigiava

aqueles que  tinham ideias clandestinas de adultério

 de  carne desejar…




cheira a folar

E a cabeça fica confusa de tão oca

da moral de sexta feira santa, o apetite dá vertigens

expondo-se alguns  descarados do forno e da forja aos esconjuros...

e agora sopram ventos que nem por ser Páscoa são menos atribulados

E Deus

 (em vez de cá voltar)

Vestia de jejum em espaços breves

 E Pensava

Deixar” troicas” continuar a filosofia da pobreza que nos torna mais leves

 para  subir a escada

já com a certeza de ascender a um céu que aparenta

um milagre sem véu

vedado  a alguns de  nós os hereges que sem crer

continuam a querer empreender com alma tenaz e lenta

a liberdade de poder clamar

Reciprocidades sem prisões relacionais,

mesmo que seja quaresma,  um aroma a todos e os demais

como quando no ar livre cheira a folar…

 

Boa Páscoa  a Todos

 

Isabel Seixas



30
Mar13

Curalha - Chaves - Portugal



Com a crise que atravessamos era um bom momento para analisar também as más políticas que nos conduziram até ela. Poderão dizer que a crise não é só nossa, pois não, mas as más políticas de muitos anos agudizaram-na. Eu, por cá, costumo dizer que tudo começou com o comboio(s), quando em vez de se modernizar a nossa rede ferroviária se optou por construir a torto e direito IP’s e autoestradas, em detrimento dos comboios e da sua modernização. Os grandes interesses, sempre os grandes interesses dos poucos que os podem ter, interesses do b€tão como se apenas no betão estivesse o desenvolvimento de um país. Grandes interesses de alguns que pobres e remediados têm de pagar.




Fico-me por aqui em lamentos para ouvidos moucos e, apenas o fiz, porque duas das imagens de hoje têm diretamente a ver com esse comboio que nos roubaram, um dos primeiros roubos que ao longo dos anos se viriam a repetir…




Ficam memórias desse comboio mas também imagens daquele que ao longo de alguns quilómetros o acompanhava no seu trajeto e se deixava atravessar precisamente em Curalha. Claro que é do Rio Tâmega que vos falo.

29
Mar13

Discursos sobre a cidade - Por Gil Santos


 

O POÇO DO BELÃO

 

Desde que se descobriram as Américas, uma das principais riquezas do Planalto, para além do eterno centeio, é a batata. O tubérculo, criado na montanha entre as fragas, não tem paralelo no mundo inteiro!


Dizem, com propriedade, que a batata do Brunheiro é a única que se ri quando cozida!


E falo da batata de consumo, porque a de semente, sua irmã, também criada escrava pelos corgos, em apanhando terra gorda e húmida, medra que se farta!


Quase todos de sequeiro, os terrões planálticos são pobres como Jó. Na coroa da serra não se espreguiça rio nem regato, e quem quiser lentura no renovo, para aumentar a colheita, que se desemerde! Abra um poço ou rasgue uma mina que sejam capazes de lhe varar o osso e chegar-lhes à veia. Caso contrário, em anos mais secos, as colheitas estrezicarão à míngua de água.


Ao centeio bonda a água da neve ou a da chuva que Deus manda. À batata também. Mas só para quem se contente com pouco. Quem quiser aumentar o pecúlio que trate de regar!


Fidalgos são os da Veiga que levam a vida derrengando polaina! O Tâmega dá-lhes de beber de graça! Mais ainda desde 1949 com o Açude de Vila Verde.


Da água tratou o Ti Moreiras do Carregal, na campina do Belão. Uma propriedade imensa, constituída por um extenso carvalhal de cuja esgalha se enchia o palheiro para o inverno; por uma touça que dava tojo e sargaço com que se fazia a cama dos animais e se estrumavam as terrinhas de cultivo; por um grande lameiro, guardado para feno pelo S. Brás; por um enorme giestal que o maio pintava das mais alvas cores e por uma terra de lavradio que produzia centenas de rasas de centeio e atulhava o armazém de batata.


O Belão era a menina dos olhos do velho combatente da Flandres, o bem mais precioso que lhe fartava a casa e a cria. Havia, por isso, que o estimar.


Foi nesta senda que se lhe meteu na cabeça mandar abrir um poço que fizesse o renovo mais viçoso. Corriam os anos quarenta.


Justou a obra com o Francisco Mineiro em cinco notas de cem, com garantia de água farta. O especialista, munido de uma gancha de salgueiro, sondou o terreno durante dois dias a fio para dar com o eido à água. O secular detetor inclinou-se quase até ao chão perto de um salgueiro que nascia no centro do Belão. Acertou em cheio na aorta que descia do Cabeço até aos prados de Adães. Porém, levou três longos meses a atingi-la. Até aos dois metros, e enquanto a terra deu em ser mais escura, bem te vai! A partir dali começou a dar saibro cada vez mais duro e pouca água. O desespero era crescente, contudo, passados os 15, a coisa começou a prometer. Aos 18, deu em fraga dura e saltou a dessorar água à fartazana.


Bastava de fundura!


O sucesso foi tal que o patrão Moreiras tratou logo de encomendar, ao mesmo artista, o empedramento do poço, para que não se esbardalhasse.


Mais cinco notas! «Que se cosesse o dinheiro, caraito, o que importava era obra bem-feita!», pensava o anfitrião!


Após mais três meses de labuta, o Mineiro apresentou um trabalho de respeito que ainda hoje pode ser visto!


O catano do poço até metia medo de tão fundo e de tão ancho que era. Mesmo o mais destemido pimpão que se aventurasse a desafiar-lhe as bordas, não evitaria uma tremedeira nas pernas como se estivesse com as maleitas!


Eu mesmo confesso que nunca lhe vi o fundo! Nem mesmo o motor de rega, a vomitar água o dia inteiro, o conseguia escoucar!


Onde acabava o empedrado e começava o saibro duro, crescia um salgueiro bravio no qual o paizinho tinha particular empenho. Até parece que adivinhava (mais tarde se saberá porquê). Certo é que aquela bendita árvore, bem alimentada de água, quase escondia por completo a bocarra do poço, o que o tornava ainda mais misterioso.


Para além disso, mais ou menos a meio, numa frincha entre as pedras, criava um casal de mochos todos os anos. Outro orgulho do proprietário António! De facto, não era para todos poder contar com a preferência da ave da sapiência. Além do mais, dava-lhe um certo gozo poder contribuir para que as noites de lua cheia do Carregal se preenchessem com o misterioso e agoirento pio deste noctívago pássaro. E mais a mais, quem haveria de beber o azeite das luminárias da matriz de Santa Leocádia?..


Poço feito, água a rodos, faltava um engenho que a trouxesse ao batatal. Pensou numa picota, depois numa nora! Porém, ambas as soluções, eram demasiado arcaicas para a visão vanguardista do Ti Moreiras. Lembro que este senhor, sem ser especialmente letrado, já lia o Comércio do Porto que lhe chegava recesso de oito dias. Aliás, foi aí que se deparou com o seguinte anúncio:


Não regue de regador, use antes um motor!

Motor Bernard uma bomba a regar!


Iluminou-se-lhe a alma!


Logo que pôde, encatrafiou-se no Texas em Vidago e parou no Porto. Queimou uma nota de cem na rua dos Almadas. Despachou o Bernard no comboio para Chaves.


Passados alguns dias, recebeu recado que já havia chegado. Jungiu os taludos bois galegos, engatou-os ao carro e tocou para a cidade.


Regressou após um lauto almoço de costeletas em sorça no Sr. Horácio do Tabolado.


Vinha todo croncho com a máquina!


Parou no relógio, em Vilar de Nantes, para o primeiro copo. Juntou logo ali uma dúzia de admiradores. Em Izei, mais de uma dezena, outra no Pêto de Lagarelhos. Em France então foi quase toda a aldeia. No Carregal, nem se fala! Decretou-se até descanso para o dia seguinte por mor de se ver o motor a trabalhar. Tratava-se seguramente de um dos primeiros motores de rega a chegar ao Planalto. Uma coisa que ninguém da aldeia tinha alguma vez visto ou sequer sonhado existir. Por isso, merecia que fosse feriado. Atrevia-me mesmo a dizer que não desmerecia que fosse dia santo de guarda!


Tratava-se de uma máquina enorme e pesada. Nada ficava a dever ao motor da camioneta do Ti Antoninho Morgado de Fornelos!


O Ti Moreiras construíra mesmo uma casa para o acolher no Linhar do Pêto e que ficou conhecida como a casa do motore. Passaria a ser a morada definitiva do Bernard. Ficava por cima de um poço coberto por enormes lajes de granito que servia para regar a horta, a lameira e encher o tanque de lavar. Aí mesmo haveria de ser experimentado pela primeira vez para gáudio da gente da povoação.


No dia aprazado, o povo madrugou e juntou-se, como para uma festa, no adro da capela que era contíguo à casa do motor. Estou que nem a festa do padroeiro S. Bentinho juntara alguma vez tanto povéu!


O Ti Moreiras encheu o depósito do petróleo e meou o da gasolina. Sangrou-o. Meteu a manga no poço e enroscou-a à bomba. De seguida, ferrou o motor. Atarraxou a vela de incandescência, ligou-lhe o cachimbo e com tudo prontinho, encaixou a manivela de ferro no volante, como se fazia para pôr as arrastadeiras a trabalhar antes da descoberta do motor de arranque.


Ordenou ao povo que se afastasse. Deu à manivela com tanta força, mas com tão pouco jeito, que nem o motor pegou nem sequer o volante deu uma volta completa. Tentou segunda vez. Com tal convicção o fez que a manivela, saltando-lhe da mão, foi disparada à cabeça do Gripino. Esmoucou-o, ao mesmo tempo que o Ti Moreiras esfolou os nós dos dedos na pedra áspera do chão. Contudo, nem o Gripino se incomodou com o lanho, nem o Ti Moreiras com a esfoladela! O importante era mesmo que o bichinho trabalhasse!


À terceira foi de vez! O Bernard pegou numa roncadeira infernal. O povo, na expetativa de ver a água a sair, não se continha, soltando expressões de pasmo!


Que maravilha! Uma coisa nunca vista!


A água jorrava cristalina e num caudal apreciável. Tanto que não levou dez minutos a encher o tanque de perpianho.


A experiência estava feita e bem-feita! O motor aprovara!


Para festejar, o Ti Moreiras espargiu figos secos e nozes à rebatina e passou a lingureta da aguardente feita do bagaço das uvas de Cova do Ladrão. Naquele ano era de estalo!


 – Que bebam miúdos e graúdos, festa é festa! – dizia o Ti Moreiras, radiante.


Entretanto, aproximava-se o tempo da rega. Para o efeito, era preciso transportar a avantesma até ao poço do Belão. O Ti Moreiras não perdeu tempo. Também quem sabia fazer tonéis e dornas haveria de dar um jeito a uma carroça que fosse azadinha para o levar.


Meu dito, meu feito!


Botou mãos à obra e não tardou a apresentar uma gerigota carroça escarlate, para atrelar à égua Espuleta. A primeira vez que foi usada resultou tão bem que nem era preciso desmontar o motor para o pôr a trabalhar junto ao poço! Serviço feito, a Espuleta era desatrelada e passava tardes santas pastando à sombra do carvalhido. Que boa vida levava, agora, o animal! Tirando o transporte do patrão para as feiras de Carrazedo ou de Chaves, nada mais fazia do que levar o arcanho para o Belão de manhã e recolhê-lo pelo ocaso.


O batatal até se via medrar!


A colheita de setembro prometia!


O Ti Moreiras, de vez em quando, arrancava um pé aqui e outro acolá para monitorizar a medração. Chegava a contar mais de dez batatas em cada pé e, de uma semana para a outra, quase dobravam de tamanho. De facto, o arranque demonstrou quão eficaz fora o investimento no poço e na rega. Só naquele ano, mais de metade do custo, seria coberto com o acréscimo da produção.


Meteu-se o inverno e com ele o descanso das pessoas, dos animais, das alfaias e das terras. Agora, também do motor.


Chegou o mês de abril. Com ele vieram as águas mil e as primeiras orelhas do batatal. O poço de tão cheio quase transbordava. E mesmo que o verão fosse seco, às batatinhas nunca haveria de faltar o molho.


Assim aconteceu durante alguns anos!


Contudo, a idade não perdoa e o Ti Moreiras, aos setenta, teve de entregar a lavoura ao Fernando, seu filho mais novo, meu ditoso pai.


A partir dos meus cinco anos, muito eu gostava de o acompanhar na rega do Belão! Para além de me sentir um homem grande, ele deixava-me ir em cima da carroça e acavalo no motor. Depois punha-me ao fundo do rego para dar sinal quando a água chegasse. Mal a topasse gritava:


– Torna!


O meu pai virava-a para outro rego. Entrementes, eu cantava tardes inteiras as cantigas da moda, cuja letra se comprava em folhetos aos ceguinhos, no cimo das escadas da velha praça das Longras. Lembro-me da cantiga preferida: ó tempo volta p’ra trás, de António Mourão. O meu pai gostava de me levar. Dizia que o distraia o meu canto de rouxinol!


Fui crescendo e a coisa foi perdendo a graça. Também o corpo já podia com outros trabalhos, pese embora me isentarem quase sempre dos mais pesados.


Teria uns 10 anos, quando, no fim de uma campanha de rega, o Bernard faleceu de acidente. O meu avô António, já muito idoso, teve tal desgosto que pouco mais tempo durou. A estória conta-se em poucas palavras.


Tínhamos lá em casa um estupor de uma égua, a Rola, que tinha um medo inexplicável aos automóveis. Nem precisava de os ver, bastava sentir-lhe o roncar e entrava em pânico. Não importava se estava montada ou atrelada, desinvestia como uma louca campos fora e nem as paredes a detinham. Ora, como para levar a carroça do motor para o Belão era preciso atravessar a estrada nacional, antes de o fazer, era sempre necessário verificar se viria algum carro nas curvas das Padanas, para o lado de France, ou nas do Cabeço, para o lado de Fornelos!


Numa bela tarde do fim de um qualquer junho, depois de dormir a respetiva sesta, decidiu meu pai ir regar para o Belão. Era costume manobrar de marcha à ré para colocar, a preceito, carroça e motor nas bordas do poço. O meu pai, de frente para o dito, deu meia volta ao carro e à Rola e com mão firme, à barbela, foi mandando:


Sasta Rola, sasta! – para a fazer estacionar onde bem queria.


De repente, começou a ouvir-se, ao longe, um ronco surdo de um motor de camião. Era a camioneta das cinco do António Magalhães que fazia a carreira de Chaves a Carrazedo e que, naquele dia, vinha com o escape livre. O som foi-se tornando cada vez mais nítido, até que a égua, apercebendo-se que se trataria de um carro, começou numa agitação incontida a espumar, a remoer os dentes e a querer relinchar!


Temendo o pior, o meu pai tentou sossegá-la e fazê-la avançar.


Não foi a tempo!


Assustada, a besta pôs-se em pé nas patas traseiras. Quando pousou as da frente, recuou com tal impetuosidade que o motor, a carroça e ela própria se precipitaram no abismo.


O motor, pesado, só parou no fundo do poço, onde ainda deve estar. A carroça e a Rola ficaram suspensas nos galhos mais grossos do salgueiro bravo que enraizava nas paredes do poço. O meu pai, muito zangado, ponderou não chamar ninguém e deixar o animal a espernear como merecia! Porém, lá se decidiu e pediu ajuda.


O Carregal acudiu em peso. Com cordas carrais, juntas de bois e a força de braços, lá se conseguiu tirar daquelas proparos o animal e a carroça!


A partir desse dia o veículo teve novo uso!


A Rola foi vendida aos ciganos na feira de Carrazedo.


O motor, jazendo no fundo do poço, nunca seria substituído porque, entretanto, o meu pai mudou de vida. Deixou a lavoura e empregou-se na cidade para dar futuro aos filhos.


O meu avô António faleceu em 1976, quem sabe se de desgosto por ser incapaz de resgatar o Bernard do fundo daquele poço do Belão!


Justificaria, contudo, o empenho que sempre teve naquele bendito salgueiro!

 

Gil Santos



28
Mar13

O Homem Sem Memória - 146


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

146 – O José foi formalmente dispensado das suas obrigações partidárias e compelido a cumprir uns meses de militância unitária, frente que andava muito descurada, quer pela deserção dos militantes mais sérios, que já não conseguiam disfarçar por mais tempo a sua militância comunista, quer porque a gente que por ali se encontrava ao deus dará era realmente sensaborona, titubeante e muito complicada de gerir, quer no espaço político propriamente dito, quer dentro do seu núcleo social.


O José detestava-os, não porque possuíssem a estranha mania da independência, mas porque faziam disso uma máscara para se protegerem especialmente dos ataques da esquerda e também para não serem hostilizados pela direita, onde tinham os amigos ou maior parte dos familiares. Afirmando-se de esquerda, davam-se bem com a direita e inclinavam-se para o centro.


Além da sua versão independente na associação de estudantes do Liceu, o José vestiu este seu novo fato unitário para conceder a si próprio um ar mais credível. E, de facto, cresceu em prestígio aos olhos da sua querida amiga Isabel, que, bem vistas as coisas, era o que mais lhe interessava no momento.


Por isso dedicou-se ao trabalho associativo com muito afinco, organizando principalmente sessões e eventos culturais. E cumpria as tarefas com satisfação. Quando calhava estar por perto a sua querida presidente, o prazer era redobrado. À falta de melhor tática, tornaram-se companheiros inseparáveis que estudavam emparelhados, passeavam muito e até se apalpavam e beijavam com tanto afinco que não era raro terem orgasmos simples e sinceros que lhes sabiam pela vida. No entanto, que nós saibamos, nunca chegaram a vias de facto, mas andaram lá muito perto. E foi isso que estragou tudo.


A Isabel, prudente como era, travava sempre a tempo. Ou melhor, refreava o José quando ele já estava tão empenhado no ato que nem dava conta que a Isabel fechava as pernas para lhe impedir a ousadia. Quando finalmente se apercebia da conjuntura, barafustava muito, mas sempre em vão. A Isabel prezava, e protegia, a sua virgindade com toda a perseverança de mulher de princípios. Não queria perder a sua independência, não queria ficar presa a alguém vítima de um ato irrefletido. Para casar ainda era nova e primeiro tinha de tirar um curso para poder escolher com quem queria viver a sua vida. E esse alguém, quando a levasse, “tinha de a levar inteira”, como gostava de afirmar.


O José porfiou e tornou a porfiar, chegando a confessar-lhe que a amava muito, que queria casar com ela, que mais isto e mais aquilo. Mas a Isabel, quando chegava o momento decisivo, fechava as pernas e dava por terminada a sessão. O José ficava colérico e, muitas das vezes, desorientado. Explicava que lhe custava sair daquele tipo de situações sem sofrer. Contava-lhe que sofria como um cão. Não terminar o ato deixava-o quase sem ar, vermelho e ofegante. Mas a Isabel não cedia, contrapondo que também ela sofria de um mal muito parecido, mas que nestas coisas do amor, quem fica com as marcas e as sequelas são sempre as mulheres. Ele disse-lhe que quando vinha ter com ela trazia sempre no bolso um preservativo, que por isso nada tinha a temer. A Isabel sorriu e disse-lhe que com ela o prazo de validade da camisinha ia ser ultrapassado, com toda a certeza. Ele explicou-lhe que tinha comprado não só um mas uma caixa deles. Ao que ela respondeu que ele era um rapaz com expectativas muito elevadas, mas que nestas coisas do amor carnal é preciso a concordância do par. Ele apelidou-a de conservadora e reacionária, que os tempos que viviam atualmente eram de liberdade, fraternidade e igualdade e que por isso mesmo estava na hora de destruir alguns tabus, nomeadamente esse da virgindade. Ela então perguntou-lhe se era virgem. Ele disse que não. Que não era homem para lhe dizer que a virgindade era um tabu e um mito reacionários sendo ele virgem. Ele era lógico. Ele aliava a teoria à prática. Ele era científico. Mesmo não parecendo, era um revolucionário coerente. A Isabel respondeu-lhe que também ela era coerente, mesmo não sendo revolucionária. Que para si a virgindade era como um escudo protetor. Era uma coisa que se partilha apenas com alguém muito especial. Era a prova de fogo do amor. Ele então perguntou-lhe se não o amava. Ela sorriu. Ele voltou a perguntar. E ela voltou a sorrir. Ele insistiu na pergunta mais uma vez. Ela então respondeu-lhe que sim, que o amava, mas que ainda não sabia se o amava o bastante para lhe dar o que pretendia. Ele beijou-a e tornou a beijá-la. Beijou-a copiosamente e com benefício. Ela respondeu na mesma moeda. Engalfinharam-se com muito empenho e com intensa loucura. E estiveram naquele enlevo de alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito tempo bastante para atingirem o ponto de ebulição. O José então pegou no preservativo, colocou-o como ensinavam as regras das boas práticas sexuais e mais uma vez tentou. E tentou. E voltou a tentar. Mas as coxas da Isabel, depois de fechadas, eram como as portas da gruta do Ali-babá, só uma palavra mágica as podiam desatravancar de modo a deixar que lá penetrasse quem devia penetrar. E, pelos vistos, nem o José era o Ali-babá e muito menos sabia a palavra mágica que abria o que devia abrir.


O José, vendo que mais uma vez dali não levava nada, foi-se embora prometendo que era um adeus definitivo. Que não estava para aturar mais atitudes preconceituosas da Isabel. Ela então encolheu-se dentro do seu desejo, e da sua desilusão, e disse-lhe que se fosse embora o mais rápido possível, que ali já não fazia nada. Que o seu amor era como uma ejaculação precoce. Quem declara que pensa em amor mas apenas pretende sexo, não passa de um animal vítima dos seus próprios instintos. Depois chorou. Ele então guardou o seu desejo no sítio recomendado às pessoas sensatas e tentou beijá-la de novo, mas foi parado com um grito tão intenso que até o cão da vizinha se pôs a ladrar como se tivesse visto um salteador. O José ficou sem pinga de sangue. E foi-se dali tão desgostoso como quando acabou de ler o livro de poemas “Só”, de António Nobre, que o próprio autor definiu como o livro mais triste de Portugal.


Escusado será dizer que o seu trabalho unitário na associação de estudantes acabou mesmo ali. E sem honra nem glória.

 

147 – Mais uma vez o José foi ...

 

(Continua)

 

26
Mar13

Intermitências


 

A Lotaria

 

… E hoje, de quem será a vez?


“Ele tinha a paixão de defender, era um dos melhores a defender os outros”, não se cansava de repetir o sócio. E era. Quando estava na fila, não seguia por rodeios, não lia nas entrelinhas, não baixava o tom. Não autocensurava as acções, e saía-lhe sempre a estrelinha da força. Tornou-se um excêntrico, e a estrela tornou-se decadente. “É triste que alguém tão talentoso como ele não tenha conseguido encontrar os recursos para se defender a si próprio de si próprio…”


Hoje não há censura nem tabu. Foi a vez dele. E hoje, de quem será a vez?


“Ele fazia sempre a sua própria lei, gravitava sempre à volta da própria norma”, não se cansava de repetir a mãe. E era. Nunca chegava a estar na fila, estava sempre no último sítio onde imaginavam que ele estivesse, num paraíso ou numa selva, mas sempre num lugar surreal. Não autocensurava as vontades, e saía-lhe sempre a estrelinha do inesperado. Tornou-se um excêntrico, e a estrela tornou-se decadente. “Se segue a regra, não se auto-satisfaz. E como nunca se auto-satisfaz, segue a sua trajectória, completamente imprevisível, indiferente a tudo, não a todos, mas sem nunca poder ser apanhado por ninguém…”


Hoje não há censura nem tabu. Foi a vez dele. E hoje, de quem será a vez?


"Ele vivia numa época diferente da nossa, num mundo à parte. Era bom homem, mas pobre, coitado, e estava quase sempre só…”, não se cansava de repetir a vizinha. E era. Também não se metia na fila, mas nunca saía do lado dela, não fosse perder alguma sorte ou uma explosão de alegria humana. Não autocensurava o coração, e saía-lhe sempre a estrelinha da compaixão. Tornou-se um excêntrico, e a estrela tornou-se decadente. “É triste que o nosso tempo tenha ficado órfão deste tipo de personagens, com novas formas de compreender a vida…”



Fotografia de Sandra Pereira


Hoje não há censura nem tabu. Foi a vez dele. E hoje, de quem será a vez?


“Ele acreditava que a censura não tinha acabado, que a censura económica era pior do que a de lápis azul. Era um inconformado”, não se cansava de repetir o neto. E era. Insistia em estar sempre na fila, e não entendia porque o queriam pôr de parte, quando só ele sabia como fazê-la andar para a frente. Não, não tinha passado a vez dele. Não, não se tratavam de detalhes burocráticos. Não autocensurava a perseverança, e saía-lhe sempre a estrelinha da “missão cumprida”. Tornou-se um excêntrico, e a estrela tornou-se decadente. “É injusto que, depois de tantas horas de espera, no final não lhe aceitem a senha, coitado…”


Hoje não há censura nem tabu. Foi a vez dele. E hoje, de quem será a vez?


“Ele acredita que hoje só há felizes contemplados, mas esquece-se que é preciso escolher duas estrelinhas para acertar uma vez em 116 531 800 de sortes”, não se cansava de repetir a avó. E é. Hoje não há censura nem tabu. Hoje há só mundos de parte.


Hoje ele vive num mundo onde ninguém faz fila, onde todos gravitam à volta do nada, à procura da estrelinha da excentricidade. Não há autocensura face à imensidão e variedade do tudo que existe, e todos falam por citações, fingindo nem dar por isso. Todos podem ser obscenos, descarados, imorais, indecentes, desavergonhados, e sai sempre a estrelinha do egoísmo. “Tornaram-se todos excêntricos, ele também coitado, e a estrela tornou-se decadente…”


E hoje, de quem será a vez? ...


 

Sandra Pereira



25
Mar13

Quem conta um ponto...


 


Pérolas e diamantes (30): a loucura de Nietzsche

 

 

Começo esta crónica quase sem palavras, claramente tão poucas como as que existem no filme “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, película que conquistou o Urso de Prata – Grande Prémio do Júri no Festival de Berlim em 2011 – e foi, segundo o autor, o filme que encerrou a sua carreira.

 

O filme começa com o ecrã em negro e com as seguintes palavras do narrador: “Turim, 3 de janeiro de 1889. O filósofo Friedrich Nietzsche sai de casa. Ali perto, um camponês luta com a teimosia do seu cavalo, que se recusa a obedecer. O homem perde a paciência e começa a chicotear o animal. Nietzsche aproxima-se e tenta impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo. Naquele momento perde os sentidos e é levado para casa, onde permanece em silêncio por dois dias. A partir daquele trágico evento Nietzsche nunca mais recuperará a razão. Ficando aos cuidados da sua mãe e irmãs até ao dia da sua morte, a 25 de agosto de 1960.”

 

A seguir vê-se um cavalo a puxar uma carroça e um velho em cima dela. Depois o filme tenta recriar o percurso do camponês, da sua filha, do velho cavalo doente e a sua vida miserável. E não sai disso, metido quase sempre dentro de quatro paredes, numa contemplação aflitiva do vento e das folhas feita através de uma janela minúscula. De Nietzsche nunca mais se ouve falar, nem se sabe muito bem porque foi citado.

 

Eu, ao contrário de Béla Tarr, até vos queria falar do filósofo alemão, designadamente porque queria chegar a Freud, devido ao facto de andar a ler o livro de Michel Onfray, onde o autor pretende demonstrar que o pai da psicanálise é uma fraude, inspirada, sobretudo, imaginem só, em Friedrich Nietzsche. As voltas que a ciência dá!

 

Mas resolvi deixar essa abordagem do “Anti-Freud” para outra altura, porque a figura de Nietzsche a aproximar-se do camponês que chicoteava o cavalo e a tentar impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo, me fez olhar para as notícias dos últimos dias e ficar em estado de choque.

 

Eu explico. Com a crise que o atual Governo da Nação está a impor, a golpes de chicote, ao país, e com o sucesso que todos sabemos, agora já não nos enganam vendendo gato por lebre, como nos bons velhos tempos, mas sim enfiando-nos carne de cavalo por carne de vaca.

 

Eu sei que a carne de cavalo até é mais barata e saudável, que é rica em ferro pois possui um maior teor de hemoglobina, sendo por isso uma forma de tratamento das anemias e até usada por atletas de alta competição. Sei ainda que tem um baixo teor calórico, ao contrário das carnes vermelhas, e que possui, comparativamente, a mesma gordura da coxa de um frango, sendo boa para prevenir, ou mesmo tratar, problemas relacionados com o colesterol.

 

Mas que, por causa da crise, andem a abater cavalos puro-sangue lusitano e garranos aos milhares, para consumo, deixa-me à beira do desespero.

 

O preço de um potro garrano varia entre os 75 e os 100 euros e o do puro-sangue lusitano atinge certamente valores mais altos.

 

Em 2012 foram abatidos 2.803 cavalos, quatro vezes mais do que em 2011, um aumento de 312%. No que diz respeito aos garranos, a carnificina atingiu mais de metade dos poldros do Minho.

 

Parece que já ninguém sabe muito bem aquilo que há de fazer. Neste estado de coisas, além de se abaterem cavalos (o que seria de Nietzsche se lhe tocasse viver em Portugal), também se abatem empregos aos milhares todos os dias. Mas, nesse aspeto, há sempre gente inteligente que sabe muito bem aquilo que tem de se fazer.

 

João Salgueiro, ex-ministro do PSD e membro do Conselho Económico e Social, possivelmente depois de ter lido o capítulo “Do homem superior” (“Assim Falava Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche), resolveu citar Keynes: “Se não sabem o que fazer, ponham metade dos desempregados a abrir buracos e a outra metade a tapá-los. O que interessa é que estejam ocupados.”

 

Não sabemos é se com o dinheiro que vão receber, esses fazedores e tapadores de buracos, conseguirão amealhar o suficiente para conseguirem chegar à carne de garrano, pois a de vaca para eles está ao preço do caviar para Cavaco Silva. Por isso tememos que, depois dos cavalos, sejam os burros as próximas vítimas. O problema é que em Portugal os asininos de raça, não os de condição, estão em vias de extinção.

 

Mas voltemos a Nietzsche (“A Ceia”- “Assim Falava Zaratustra”).

 

“E a propósito: não me tinhas convidado para uma refeição? E repara, todos os que aqui estão tiveram de percorrer um longo caminho. Por certo não vais alimentar-nos com discursos!”

 

“E já todos vós falastes demasiado do perigo de se morrer congelado, afogado, ou de qualquer outro mal; mas nenhum de entre vós pensou no mal de que, pela parte que me toca, sofro, e que é a fome.”

 

“Assim falou o Profeta, mas quando os animais de Zaratustra ouviram estas palavras, fugiram apavorados; pois eles bem viam que tudo o que tinham conseguido trazer durante o dia não era suficiente para encher o estômago àquele único profeta.”

 

“ (…) Assim falava Zaratustra – mas o Rei da direita replicou: “É estranho! Já alguma vez se ouviram palavras tão razoáveis sair da boca de um sábio?”

 

“E em verdade, o que de mais estranho se pode encontrar num sábio, é ele ser razoável e não um burro.”

 

“Assim falava o Rei da direita, surpreendido. Mas o burro sublinhou as suas palavras com um I-han! descontente.”

 

Pelos vistos, com o caminho que isto leva, só nos resta juntarmo-nos ao burro do Zaratustra e

fazer: I-han! I-han! I-han! I-han!

 

Nesta época de vacas anoréxicas, está um tempo para cavalos gordos, economistas inteligentes e para burros filosóficos, tenham eles a condição que tiverem.

 

João Madureira

24
Mar13

Pecados e Picardias


 

Como o som de uma morna

 num dia chuvoso,

balança a solidão no copo que entorna

por um corpo frio só triste e saudoso,

e não  há  nenhum Deus que nos mande embora

apenas  a teimosia  do lado de fora

 e a sós contigo

como aquele tempo, que  já só vive

escondido num livro…

 

Como o som de uma morna

 num dia chuvoso,

andam  sem querer pelo mundo fora

numa dança suave que já só  se demora

na  despedida lenta ,no caminho tortuoso

e Não há Deus que chame os nossos  jovens de volta

E mais sós ficamos

Como condenados na nossa revolta

Desesperamos…

 

Como o som de uma morna

 num dia chuvoso,

passamos pelas brasas e em bicos de pés

num destino tão recalcado quanto  rancoroso

 

e não há Deus, nos novos rumos oriundos de outrora

que venha de mansinho pedir contas às novas ralés

ficamos sem norte

como pessoas despidas num mar de vergonha

sucumbimos sem porte…

Como o som de uma morna

 num dia chuvoso…

 

 

Isabel seixas

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