O Homem Sem Memória
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
155 – Mas a sua carreira cinematográfica não acabou no “Trinta e Um”, era o que mais faltava. Além disso, um verdadeiro artista nunca se rende.
O José podia não ser um bom apreciador de cinema, nem sequer ter as qualidades suficientes para ser ator, mas sabia ler e interpretar as críticas cinematográficas bem melhor do que os filmes. Decidiu-se então pela realização. Já que não podia entrar nos filmes, podia, pelo menos, escrevê-los e realizá-los.
A oportunidade surgiu-lhe com a criação de um grupo dedicado à sétima arte por parte de um estudante da Escola Superior de Cinema que se encontrava em Névoa a cumprir o serviço militar e que se ofereceu para ministrar no Liceu umas aulas sobre o nobre ofício dos filmes a um grupo de interessados.
Depois de algumas abordagens, mais ou menos teóricas, apostólicas e romanas, o monitor desafiou os participantes a escreverem um guião. Dependendo da sua qualidade, ficou decidido que os mais interessantes iriam ser objeto de estudo e alguns podiam mesmo vir a ser subsidiados.
Foi o que o José quis ouvir. Era chegada a sua oportunidade de brilhar. Logo ali se formaram dois grupos: o dele e o dos outros. Iria sempre ser assim a sua vida: ele e os outros, ou os outros e ele, que, para o caso, tanto monta. Ou para sermos mais objetivos e rigorosos teremos de escrever: serão sempre os Outros contra Ele.
O grupo de cinema era misto, mas as raparigas limitaram-se a fazer o papel de observadoras, ficando a ver onde a disputa ia dar. No final, dependendo do grupo ganhador, as raparigas seriam agraciadas com o galardão da sua escolha para entrarem nos filmes subsidiados.
Basicamente, o grupo do José ficou constituído por ele e por meia dúzia de colegas da sua turma do Liceu. Ele encarregou-se de tudo. As colegas ficaram à espera. Naqueles tempos as raparigas ficavam quase sempre à espera. Ao contrário dos tempos que correm, em que cada vez são mais atrevidas.
O outro grupo era maioritariamente constituído por rapazes, quase todos parvos, gabarolas e um que outro craque de futebol ou proprietário de muitos discos de música rock, dois sinais de distinção juvenil que as raparigas adoravam e os paspalhos admiravam e cobiçavam. Resumindo: era o José contra o mundo e arredores. Mas a sua fibra de revolucionário solitário veio ao de cima.
Isolou-se em casa e pôs-se a escrevinhar uma ideia que pudesse ser colocada num filme de cerca de dez minutos, que era o tempo que durava a fita das três bobines de filme a cores Super8 com que poderia vir a ser obsequiado.
Escreveu, rescreveu e até “trescreveu” um argumento, mas não lhe agradou. Rasgou-o com toda a convicção. Começou então a ler com o propósito de que a inspiração lhe chegasse através dos livros. Mas a inspiração, essa traidora, teimava em nem sequer se abeirar dele. Mas o José, filho da Dona Rosa e do guarda Ferreira, não desesperou. Era o que mais faltava. O José não era de desesperar. Desesperar jamais. Por isso continuou a ler livros e algumas revistas de qualidade. Pelo meio assistiu a mais umas tantas aulas do grupo de cinema.
Basicamente, o grupo rival andava a ser ajudado pelo monitor a desenvolver um argumento baseado na “Barbarela”. Uma coisa mexeruca, sem tino, nem originalidade. O monitor tentava puxar a história para o picaresco, os elementos do grupo teimavam numa abordagem ainda mais pirosa, como se isso fosse possível. Uma coisa entre o folhetim “Simplesmente Maria” e a longa-metragem “A Piscina”. O José, a meio da discussão, riu-se discretamente, como era seu timbre e feitio. Foi o bastante para se virarem para ele e o desafiarem a elaborar uma ideia melhor. Ele fê-lo. E tão bem que o monitor pegou nela e desenvolveu-a como se fosse sua. Situação que se irá repetir ao longo da sua vida: ele a ter as ideias e os outros a apropriarem-se delas e a utilizá-las como se fossem suas.
A personagem principal continuava a ser uma rapariga tipo “Barbarela”, mas o José tinha-a transformado numa espécie de loba má que persegue o casaquinho vermelho, um rapaz tão ingénuo e tão virginal que até parecia santo, que vivia com o avô rico e que morria de amores verdadeiramente platónicos por um seu amigo pobre e feio, falsamente modesto e muito gozão. Basicamente, a história desenvolvia a ideia de uma rapariga trintona, a loba má (um misto de “lobimulher” e vampiro), que tomava conta do avô que tinha uma mansão na floresta, tentava comer o casaquinho vermelho e abusar sexualmente do tal rapaz pobre. Só que, a meio da história, os seus intentos eram descobertos pelos sete descendentes dos sete anões da Branca de Neve (que agora trabalhavam sob as ordens de uma descendente da alva personagem dos contos dos Irmãos Grimm, que se bronzeava compulsivamente nas praias do Norte de Portugal), que raptavam a loba má e a levavam para um circo onde a apresentavam, em noites de lua cheia, a um público previamente selecionado e cheio de dinheiro, ávido por extravagâncias e aberrações deste género.
O monitor, entusiasmado, tentou passar a pequena história para o cinema, mas depressa chegou à conclusão de que a ideia era muito avantajada para um grupo de rapazes que mal sabia distinguir um plano de um contraplano, um fundido de um encadeado, e muito menos pronunciar Ingmar Bergman ou Akira Kurosawa sem se enganar.
Por isso deu-se por satisfeito com o dramalhão. Limitando-se o filme a reproduzir imagens pouco criativas do corpo, decorado com um biquíni, de uma rapariga loira e de olhos azuis que frequentava o Liceu, que acaba assassinada por uma morena e de olhos castanhos, que frequentava a Escola Industrial, à beira da piscina do Aeroclube, enquanto o namorado da loira, agora craque da equipa de futebol de Névoa, que tinha sido namorado da morena, quando era estudante repetente do Liceu, dança na discoteca, também do Aeroclube, com uma mulata filha de um retornado proprietário de uma ourivesaria que, insinua-se, abriu com o rendimento dos diamantes que contrabandeou de Angola para Portugal em bisnagas de dentífrico com proteção de chumbo para não serem detetados pelos aparelhos dos aeroportos.
O filme esteve para não ser realizado porque no grupo existiam dois galos para o mesmo poleiro. Um, curiosamente, era o namorado da rapariga loira escolhida para entrar no filme; e o outro, também curiosamente, era o namorado da morena. Como os dois ambicionavam ser, ao mesmo tempo o realizador e o ator principal, o monitor teve de se impor e distribuir o mal pelas aldeias. O namorado da loira, por sorteio, ficou com a tarefa de realizador e ao namorado da morena tocou-lhe o papel de galã. Quem amuou foi o namorado da mulata, que ficou de fora a rachar lenha. Mas não se deu por vencido. Exigiu que para a sua namorada entrar no filme a dançar agarradinha ao namorado da loira, que na verdade era namorado da morena, ele tinha de participar, quanto mais não fosse, como cameraman. O que foi aceite pelo monitor, mas com o voto contra do realizador que também desejava ser ele a manipular a câmara, pois o namorado da mulata era um desastre no manejo de material mais sofisticado do que um lápis, mas mesmo para esse tinha de pedir ajuda, sobretudo para que lho afiassem, senão era rapaz para reduzi-lo a aparas sem conseguir escrever uma palavra que fosse.
A rodagem da curta-metragem correu sem sobressaltos. Isto até ao momento da filmagem da cena da dança na discoteca entre a mulata e o futebolista, o tal que era namorado da morena. Aí foi o cabo dos trabalhos. Quando o realizador, que era o namorado da loira, dizia “ação”, logo o cameraman, que era namorado da mulata, se virava para o ator principal, que fazia de futebolista e era o namorado da morena, e lembrava que devia usar a sua namorada como atriz, mas que não devia abusar.
E avisava: “Porque, apesar do cinema ser cinema, é sempre muito difícil a quem vê, e sobretudo a quem participa nas cenas, distinguir a realidade da ficção, diferençar o que é real e o que é imaginário, apartar o trabalho da paixão, o fingimento do sentimento e… alto lá, não a apertes tanto, não a beijes assim, não a apalpes… faz antes que a apalpas… não a beijes, faz que a beijas… não a… não… corta… corto… vou cortar… cortei.”
E o realizador, o tal que era namorado da loira, afirmou perentório: “Mas aqui quem manda cortar sou eu.” E o cameraman: “Mas a namorada é minha.” E o ator, que fazia de futebolista e que era namorado da morena: “Ninguém te quer a namorada para nada.” E a namorada do cameraman: “O ciúme mata o amor.” O realizador: “Isso não está no guião. O filme é mudo.” O cameraman: “Dizes isso porque a tua namorada só faz de assassina e ao único a que se tem de agarrar é à navalha de ponta e mola.”
Depois de uma pausa, voltou-se ao trabalho. E o realizador, o tal que era namorado da loira: “Ação.” E o cameraman: “Não te meneies tanto, Manuela. Parece exagerado. Parece que estás a gostar.” E o realizador: “Ainda bem que o filme é mudo, senão em vez de um drama seria uma comédia.” E o cameraman: “Corta… corto… vou cortar… cortei. Parece que em vez de dançar estão a… estão a…” E a namorada do cameraman: “Na minha terra é assim que se dança.” E o cameraman: “Pois na minha não é. E ou o filme acaba aqui ou acaba o nosso namoro.“
Para abreviar, podemos relatar aos nossos estimados leitores que o filme foi para diante e que a sua dimensão plástica melhorou significativamente. Nisso teve toda a responsabilidade o José, que acabou por ser o escolhido para servir de cameraman.
No final, aconteceu tudo como na vida real. A mulata enamorou-se do seu colega de trabalho e a sua namorada, em ato de vingança, apaixonou-se pelo primeiro cameraman.
O José ainda pensou fazer desta rodagem o guião para o seu filme. Mas desistiu por causa dos direitos de autor. Os seus rivais não lhe perdoariam o plágio da realidade. E ele não era homem para plagiar. Copiar, sim. Plagiar jamais.
156 – Foi na banda desenhada que procurou também a ...
(continua)