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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

31
Ago13

O Barroso aqui tão perto...


 

Direitos, liberdades e garantias cada vez são mais palavras sem significado, pelo menos na prática da vida dos nossos dias atuais, embora teoricamente a democracia as exija. Dizem que somos todos culpados da situação atual, mas na realidade bem sabemos que assim não é, os de Lisboa é que nos querem impingir essa e, embora eu até nem aceite a minha quota parte de culpa, que remédio tenho senão aturar os seus efeitos, mas às vezes até há males que vêm por bem e um deles, foi os senhores de Lisboa, este ano, terem-me privado de ir à praia com a família ou ir para outro lado qualquer. E ainda bem porque já estava a começar a ficar farto de ir à praia, mas mesmo assim, os sacanas de Lisboa estão longe de ter o meu perdão, pois gostava de ser eu a decidir se ia à praia ou não. Mas deixemos as lamentações que essa gentalha nem sequer merece que a gente se lamente, pois merecer, mas merecer mesmo, era umas estadulhadas bem dadas naqueles lombos, mas infelizmente até com os estadulhos conseguiram acabar, ou pelo menos com quem os faça e depois, mesmo que houvesse quem o fizesse, o negócio dos incêndios parece querer acabar com toda a matéria prima para uns bons estadulhos.



Barragem de Paradela - Montalegre


Mas ia eu dizendo que há males que vêm por bem, e um dos bens que resulta desta nova situação é de finalmente ter oportunidade de conhecer melhor o nosso Reino Maravilho de Trás-os-Montes, pelos menos os das terras mais próximas em que se possa sair de manhã,  levar uma sande no bolso,  e regressar à casinha para dormir, que como todos sabem, não há como um soninho na nossa caminha.



Paradela do Rio - Montalegre


Pois nestas… ia dizer férias, mas corrijo ainda a tempo. Pois neste tempo livre sem trabalho a que ainda tive direito,  resolvi reservar um dia para o Barroso. Coisa pouca, pois um dia para se desfrutar do Barroso nem a aperitivo sabe, mas como já conhecia grande parte dele, reservei esse dia para algumas aldeias que ainda não conhecia e para outras que embora já conhecesse não tinha registos fotográficos e, digo-vos sinceramente, que vale mais um dia no Barroso que uma semana na praia, oh se vale, pena que nem toda a gente goste da nossa ruralidade, do nosso ser transmontano e prefiram ir pavonear-se para o glamour dos centros comerciais das cidades. Eles lá sabem, cada um come o que quer, ou melhor, aquilo que tiver para comer.  Mas repito, mesmo com o gosto de ter gostado não perdoo aos sacanas de Lisboa, e até estou a ser meigo, porque não era sacana o que devia chamar a esses caralhos[1].



Ao fundo, a aldeia de Cela - Montalegre


E com esta me vou. O Barroso hoje aqui retratado é um pouquinho daquele que anda à volta da Barragem da Paradela,  em Paradela do Rio.

 

 



[1] Caralho – interjeição [Vulg.] indicativa de espanto, admiração, impaciência ou indignação (DO latim * caraculo, «pequena estaca» - In Dicionário da Língua Portuguesa 2006 – Dicionários Editora – Porto Editora.

 

Este esclarecimento para um transmontano até era desnecessário, pois qualquer um de nós sabe como e quando se deve aplicar um caralho e qual o seu significado no contexto em que se aplica, e às vezes até nem existe outro termo para o substituir, no entanto há por aí muito boa gente que desconhece que o caralho faz parte do léxico transmontano e,  quem não quiser entender isto, que haja por aí um caralhinho que o guie… 

 

 

 

 

31
Ago13

Pastoria - Chaves - Portugal


 

Vamos lá então a mais uma voltinha pela nossa ruralidade. Hoje, mais uma vez, um passagem pela Pastoria.



Sinto que tenho de lá voltar, principalmente para captar a vida da aldeia, porque ainda é uma das que vai tendo alguma vida e quando assim é, ainda dá gosto fazer estas pequenas incursões, mas com todo o respeito.




Mas só a vida da aldeia atrai, pois o casario, os campos e até a proximidade da montanha que a abriga dos ares de Barroso dão-nos motivos mais que suficientes para que a Pastoria seja uma aldeia a considerar nas nossas visitas.




Mas o registo também vale para memória futura e, só lamento, ter despertado para esta coisa dos cliques fotográficos há tão pouco tempo, pois se das primeiras vezes que visitei a aldeia, e já lá vão uns bons vinte e tal anos, hoje teríamos aqui outro motivo de interesse, mas enfim, é o que temos e as lamentações não nos levam a lado nenhum. Assim, fico-me por aqui.



31
Ago13

As Coisas Boas da Vida


 

As coisas boas da vida

 

 

Uma noite de verão, uma esplanada, uma boa companhia...

 

Agosto. Dias quentes e noites que convidam a reunir os amigos e a sair de casa para descontrair um pouco. Fazem-se alguns telefonemas, mandam-se SMS’s, chegam algumas respostas... E que melhor sítio para ir numa noite de verão do que uma agradável esplanada? Pode ser à beira rio, numa ruela do centro histórico ou num qualquer outro local da cidade… Juntemos-lhe agora a nossa bebida preferida (por mim, pode ser uma “Vidago” ou “Pedras”, bem fresca, com sabor a limão) e a companhia de pessoas bem dispostas e conversadoras. Temos, pois, uma agradável conjugação e a certeza de momentos bem passados. As conversas vão fluindo, soltas, descontraídas, sem compromissos nem receios, alternando entre temas mais sérios e outros mais banais, entrecortadas até, aqui e ali, por um comentário ou uma anedota que nos fazem rir. Tecem-se comentários, críticas e sugestões... e até se esboçam soluções para os problemas mais graves do país... Descontraímo-nos e sentimo-nos bem. O tempo vai passando e nem damos por isso até que alguém começa a mobilizar-se para ir embora. É então que olhamos para o relógio e tentamos demovê-lo das suas intenções com os habituais argumentos: “...ainda é cedo...” ou “...espera só mais um pouco...” Geralmente conseguimos e as conversas continuam...



No final, na hora de ir embora, discute-se quem vai assumir a despesa, mas na verdade isso pouco importa, pois já sabemos que brevemente haverá oportunidade para retribuir…


Experimente e depois diga-me qualquer coisa...

 

Luís dos Anjos



30
Ago13

Discursos sobre a cidade - Por Gil Santos


 

O PREGADOR

 

Naquela ocasião as palavras vertiam-se-me como água em cesto roto. Por muito que as peasse, remedavam cabras doidas entre penedos e galgueiras. E eu, na ingenuidade das minhas verdes primaveras, permitia-as soltas, selvagens e libertinas.


Às segundas já ansiava os domingos. Aguardava-os como o renovo a água da rega. Os dias do senhor eram mágicos. Pela matina assistia à missa, no templo românico de Santa Leocádia. Acordava de madrugada e saía do Carregal aos primeiros acordes do galo. Sapatinho engraxado, calça vincada e camisa alva de terylene. Três quilómetros, à pata, que pouco custavam, pese embora a lama do inverno ou o pó do estio. Ouvir as larachas do padre Luís, era uma desobriga que se impunha, para expurgar os pecados, o mais das vezes veniais, e atestar a alma de fé. A liturgia pouco mais durava do que o concerto de um rouxinol num qualquer silvado. Não estivéssemos afeitos à obrigação, inconsciente, do culto e saíamos de Santa Leocádia menos católicos do que chegáramos!


A igreja matriz, onde ainda se diz a missa, é um respeitável templo do século XII, classificado como monumento nacional desde 1961[1]. Com a fachada principal singela, e sem ornamentos, ostenta um campanário simples, com duas ventanas e respetivos sinos. O maior usa-se para chamar os fiéis à oração e para tocar a sinais. É baloiçado por uma grossa corrente de ferro que com o tempo lavrou fundo canyon na padieira da porta principal. O mais pequeno toca apenas a rebate, no caso de incêndio ou de outras desgraças.

 

 

O exterior da igreja, rude e sóbrio, é de granito nu, aparelhado e muito musgado. O telhado de duas águas. As paredes laterais, no cimo, são rematadas de um lado e de outro, com temíveis gárgulas, que afugentam os atoleimados e as almas penadas. A parede nascente, contrária à entrada principal, apresenta uma seteira ricamente trabalhada. Para mim, a joia da coroa! Ao lado direito, encontra-se o cemitério, construído no tempo da reforma dos cabrais. O jazigo da família Morgado, à entrada do lado esquerdo, visitava-se, invariavelmente, para um padre-nosso por alminha de quem lá estava. A igreja é circundada por um adro amplo, e junto à porta lateral, a sul, um sarcófago de pedra encosta-se a à parede servindo de poiso aos homens antes do santo ofício. Uma dezena de degraus, muito gastos pelo uso e pelo tempo, dão acesso ao adro, desde o terreno fronteiro, onde um pelourinho de pedra, muito torto, testemunha a antiguidade do conjunto. Ao interior da igreja o acesso faz-se exclusivamente pela porta lateral do lado esquerdo. Somente em dias de festa, casamentos ou funerais se escancara a principal.

 

 

O espaço interior é pesado e misterioso. As paredes, antes caiadas, deixam hoje ver antiquíssimos frescos que um restauro recente deu à luz. O chão, de soalho de castanho, muito gasto, mostra um vasto conjunto de sepulturas e pedras tumulares. A única nave tem teto de madeira e é fechada por um arco triunfal abundantemente lavrado. O altar principal, para lá do arco em ogiva, é de talha dourada, muito simples, em que são protagonistas cachos de uva e os anjos papudos. Para cá do arco os altares secundários. Os do lado esquerdo estão dedicados não me lembro bem a que santinhos. O do lado direito à figura tenebrosa (que Deus Nosso Senhor me perdoe!) do Senhor dos Passos. Esta imagem mexeu sempre muito comigo. De tamanho natural, o Senhor ajoelha-se ao peso do lenho. Veste túnica roxa, atada à cintura por uma grossa corda de sisal. O seu tamanho desusado, a sua expressão de sofrimento e a feridas no rosto, marcaram-me! Nunca o consegui encarar sem que me sentisse agoniado. Hoje mesmo, ainda evito encará-lo! Abaixo da porta lateral, portanto mais longe de Deus, quiçá um castigo pelo pecado original, as mulheres de lenço ou de véu e xaile de merino. Acima os homens. Bancos não havia. Quem se quisesse alapar que levasse um moutcho de casa. Alguns assim faziam. O meu falecido avô, António Moreiras, como carpinteiro que era, não só construiu um, devidamente estofado de serapilheira para si, como para a minha avó um genuflexório que também servia de assento.

 

 

E assim se consumiam as manhãs de domingo. Terminavam, invariavelmente, com um lauto almoço de coelho estufado, frango de churrasco, engordado com os saltões das poulas das Padanas, ou com leitão no forno de lenha, quando as recas pariam para lá da capacidade de os vender. No tempo da caça, coelho bravo ou perdiz na brasa, com molho verde!


As tardes passava-as em Fornelos nas tropelias da meninice: jogando ao fite, ao rou-rou, fabricando cestinhas com parentes ou ouvindo estórias, quando o tempo não permitia ares livres. Contudo, o que mais me fascinava era a pregação!


É desta atividade que vos falo!


Desde tenra idade, alguém me topou faculdades oratórias invulgares. Acho que as ganhei ouvindo as pregações. As festas rijas não passavam sem um pregador, como as de hoje sem uma banda! Estes clérigos, sofistas, cobravam gorda maquia, e empanturravam-se, à tripa forra, na mesa das famílias mais abastadas. E eu ficava a ouvi-los, extasiado, o tempo que fosse, contrariando o que seria normal que era andar atrás das canas dos foguetes. Bebia-lhes as palavras, os gestos, bem como as demais ênfases da pregação, com avidez inusitada.


O meu sonho era também ser pregador!


Sonhava subir, devidamente paramentado, a um púlpito e fazer chorar os seixos da calçada como o padre Salgado fazia chorar as velhas beatas. O púlpito, para mim, tinha uma áurea mágica! Quanto mais alto fosse melhor! Mesmo hoje, se visito um templo, procuro sempre o púlpito e imagino-me desde lá puxando pela fé dos crentes. Os púlpitos, há muito abandonados, fascinam-me!


Então, a partir dos meus quatro anos, comecei a não ter papas na língua, nem vergonha na cara! Falando pelos cotovelos, rebuscava, nos recônditos da memória, ainda viçosa, coisas que não lembravam ao diabo! Quando não, inventava, com a mesma facilidade com que o melro inventa as melodias que canta. Daí que, primeiro em família e depois em público, viesse a dar em aspirante a pregador. Não havia festa íntima que não fechasse com uma pregação de natureza religiosa ou outra, mas sempre puxando ao sentimento. A um canto da sala, sobre a cadeira mais alta da casa, relatava a vida de um santo ou de uma santa que a minha avó Carolina me tivesse lido da Cruzada ou do Avé-Maria, ou outro qualquer acontecimento que tivesse escutado na rádio ou tivesse observado em qualquer banda. Dizem, as más-línguas, que não ficava a dever nada aos melhores pregadores da época, salvo seja!..

 

Em público comecei, lembro-me bem, em Fornelos, teria uns cinco anos. Esta povoação, ínfima, situa-se no limite do concelho de Chaves, confinando com o de Valpaços no Alto da Cruz, a apenas 2 quilómetros. Aldeia natal da minha família materna, este lugar da freguesia de Santa Leocádia, juntava sempre muito povo nas tardes de domingo, não sei se por ser atravessado pela estrada nacional 314 que de Chaves conduz a Murça por terras de Montenegro, se pelo vinho da adega do Ti Balele que se escancarava para todos. A verdade é que a partir de dada altura começou a juntar ainda mais povéu, estou que para ouvir o tal aspirante a pregador. O Ti Morgado era o chefe de cerimónia. Quando sobre a parede poente do adro da capela se projetasse a sombra do edifício, fazia-ma subir. Emplouricado naquele púlpito improvisado e olhando a gente desde o céu, destravava as palavras que se evadiam em catadupa. A pregação durava e eu sentia-me o rei de uma festa em os crentes me escutavam com mais atenção do que ao padre Luís na igreja de Santa Leocádia! E eu puxava à lágrima quanto pudesse!


Assim aconteceu durante alguns anos. Raro era o domingo em que não havia sermão. Apenas a borrasca ou a neve do inverno me tiravam daquele púlpito, desde o qual terei subtraído muitas almas ao regaço de belzebú!..

 

 

Certa ocasião, com sete anos, fui de visita a uns parentes de Almeidinha, um pequeno lugar da vetusta freguesia do Jarmelo, situada para os lados da cidade da Guarda e a caminho de Vilar Formoso.


Impõe-se aqui um parêntesis para situar o leitor na história desta freguesia, com referência à obra de Leite de Vasconcelos.


«[Jarmelo] tinha honras de Couto com muitos privilégios no tempo do nosso primeiro rei D. Afonso Henriques, que lhe deu foral em Coimbra após o início do seu reinado. D. Manuel deu-lhe de novo foral em Santarém, no dia 1 de Junho de 1510. Em 1755 já estava desabitada, tendo apenas algumas casas, a da câmara e cadeia e mais duas moradias para dois beneficiados, além de três igrejas.

Nascera por má sina no Jarmelo, Pero Coelho, que foi gentil-homem da corte de D. Afonso IV - o Bravo, pai de D. Pero. Era filho de Estevão Coelho e de D. Maria Mendes Petite, que foi avó de D. Eleonora d'Álvini, esposa do Santo Condestável. Imensamente ricos, os pais de Pero Coelho deram ao jovem uma educação esmerada.

Pois foi justamente para o Jarmelo que Inês de Castro, amada de seu filho D. Pedro, foi desterrada a conselho de Pero Coelho. Ali seria vigiada com rigor. Então D. Pedro em mortal ânsia, não comia não dormia, não parava um momento, e buscava por toda a parte até que descobriu a sua Inês. E com mil cautelas e embustes, às escondidas, foi vê-la de noite, a cavalo, envolto na treva de uma longa capa negra. O corcel levava as ferraduras pregadas às avessas para assim despistar os seus perseguidores. Filou-a e trouxe-a por caminhos calçados de luar, à garupa do seu alazão e foi pousá-la em recônditos paços, no meio de jardins e fontes a cantarolar em tanques de azulejos esmaltados [em Coimbra].

Ora, quis a política desse tempo que três fidalgos, um dos quais Pero Coelho, invocando especiais razões de interesse para a grei e para o rei, praticassem o bárbaro assassinato de Inês de Castro na Quinta das Lágrimas em Coimbra, no dia 7 de janeiro de 1355. [Apenas] dois anos depois foram justiçados, bem mais cruelmente, dois dos assassinos. A Pero Coelho foi-lhe arrancado em vida o coração pelo peito. Ao outro foi-lhe arrancado pelas costas.

[Em retaliação] Pedro, nesse mesmo ano, ordenou que fosse completamente arrasada a vila do Jarmelo, o que se fez em virtude de nela ter nascido Pero Coelho. Depois da vingança de el-rei D. Pedro, determinou que no Jarmelo não ficasse pedra sobre pedra e que se salgasse o terreno, num gesto decisivo de maldição e extermínio. Excetuou-se porém uma pedra, tosca por sinal, onde os minúsculos pezinhos de Inês pousavam ao montar e desmontar o seu corcel de caça, a [pedra de montar]. Determinou-se que ela vencesse uma tença, de 5 reis por dia, segundo o vulgo à memória “daquela que depois de morta foi rainha”. Foi o próprio D. Pedro que ao visitar pela derradeira vez aquele lugar para ele sagrado e tão saudoso, dissera, num misto de ódio e de tristeza:

- Adeus Vila do Jarmelo, adeus pedra de montar, enquanto o mundo for mundo dinheiro hás-de ganhar!

E quando mais tarde deixou de se cobrar a tença estipulada, foi essa falta suprida pela caridade amorosa e sentimental da gente humilde das choupanas de colmo, únicas casas que então havia, cavando-se na mesma pedra uma caixa de esmolas, onde os fiéis antes ou depois da missa, iam botar alguns ceitis.

 

Hoje o Jarmelo não é sequer um povoado. Ninguém habita as suas casas totalmente desmoronadas. As muralhas da antiga vila, esfarrapadas e dispersas no cimo da alta colina pedregosa e abrupta, provocam-nos a saudade que é natural sentir-se por um varão ilustre, ao atentarmos nos despojos à maneira de Hamlet.

Ali resta apenas a lenda, nuvem vaporosa que sempre fica pairando nos lugares santificados pelas tragédias de amor!»

 

Escutei, pela primeira vez, esta trágica história de Inês num dos serões dessa estada, contada pela matriarca da casa. Provocou-me grande curiosidade. Gravei-a nos mais ínfimos pormenores para ocasião oportuna. Estava certo que o próximo sermão não andaria à volta de um tema religioso, mas do drama de Inês de Castro.


Assim foi!


No domingo que se seguiu, após a missa na igreja paroquial do próprio Jarmelo, o Ti Morgado guindou-me ao descanso mais alto da escadaria da torre sineira que é exterior à igreja de S. Miguel. A gente que deixava a missa juntava-se, curiosa, à volta da torre para ver o que é que um pimpolho de palmo e meio, de calções e suspensórios, teria a dizer lá do alto! Mesmo o prior, já desparamentado e de batina preta, estava curioso para ver onde paravam as modas!


Comecei de largo! Papagueei o amor e a tragédia nos seus mais ínfimos pormenores, indo muito para lá do que ouvira. Pintei o quadro o mais negro que pude. E quantas mais lágrimas se soltavam dos olhos piscos das velhinhas, mais me empolgava no relato. Escaquei a louça que pude, mas deixei tudo em pratos limpos! Durou mais de meia hora aquele sermão profano. Terminei-o com o célebre dito de D. Pedro:


Adeus Vila do Jarmelo,

adeus pedra de montar,

enquanto o mundo for mundo

dinheiro hás-de ganhar!


Arranquei uma ovação mais forte do que a de Tony Carreira ao acabar o Sonho de Menino. Estou até que se teria ouvido na Serra da Estrela!..


Senti-me empertigado por ter sido capaz de contar a histórica trágica de Inês de Castro no próprio sítio onde ela teria estado e para as pessoas de lá!


- O rapaz tem jeito para pregador - diziam as pessoas que não se cansavam de parabenizar a família!

 

 

Para ultrapassar o estatuto de aspirante e poder ser pregador a sério, mal completei a 4ª classe em 1966, fui para o seminário de Vila Real.


Malfadada hora! Dei-me tão mal na imensidão daquele casarão amarelo! Chorei lágrimas de sangue pelos cantos!


Lá conheci o padre Max, que faleceu na Cumieira a 2 de abril de 1976. Dele levei muita pancadinha; o padre Minhava, grande músico e compositor, autor da bela marcha de Vila Real que aprendi e ainda hoje canto com nostalgia; o padre Gilberto, santo homem, diretor espiritual; o padre Hélder, responsável pela paróquia de Santa Maria Maior em Chaves; o padre Santos que me obrigava, à força do marmeleiro, a deglutir o intragável latim e tantos outros, que prefiro nem recordar!..


Estive lá ano e meio, afastado da minha infância livre!


Sim, porque que eu cresci aos ninhos, sentindo o cheiro do feno e da carqueja; aprendendo a assobiar com o melro e o rouxinol; fazendo-me gente à força dos nevões; sentindo o uivo do vento norte cortado por navalhas do sincelo; fabricando os meus próprios brinquedos; insultando o vento suão; fazendo dos dias infinitos escola e das noites estreladas sonhos; vendo parir a reca e a burra e a vaca; botando a cria ao monte e indo cá botá-la; jungindo parelhas de bois galegos e atrelando-os ao arado; sentindo o cheiro do esterco e da terra lavrada; vendo raposas e lobos e texugos; aparelhando cavalos e galopando na poeira dos caminhos; capando grilos e sacrificando saltões e lagartixas; estudando as formigas, os cágados, as abelhas e as vacas loiras; armando pescoceiras e fazendo magustos com fronças húmidas; rasgando calças a subir às cerdeiras; abrindo buracos em penedos para fazer vinho de amoras; sentindo nos pés descalços a força telúrica do Brunheiro; adoecendo e sarando com rezas e mezinhas; chamando as plantas, os animais, os lugares, as pessoas e os caminhos pelos seus nomes próprios; aprendendo palavras que já não se usam e expressões que já não se ouvem; enfim, fazendo os meus benditos sermões!


Afortunadamente, vá-se lá saber porquê, fui convidado a abandonar o malogrado seminário. Fim de suplício!


Naquela casarão ninguém me deu oportunidade de ser pregador!..


Foi um desgosto de morte para a minha avó Albertina! Dizia que quando me ordenasse, mandaria matar duas vitelas, encomendaria uma camioneta de arroz e outra de açúcar e convidaria a freguesia inteira de Santa Leocádia para ouvir o meu sermão numa festa no Lameiro Grande!..

 

Nem tudo se perdeu!..


A vida, afortunadamente, concedeu-me, em parte, o privilégio de ser pregador. Pois enquanto mo permitam, o meu púlpito continuará a ser o da sala de aula e os fiéis ouvintes os meus pacientes alunos!


Gil Santos



[1] Decreto nº 44075 publicado em 5 de dezembro, no DR 281/61 série I.

 

 

29
Ago13

O Homem Sem Memória - 168


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

168 – As mães têm em relação aos filhos um sexto sentido que as faz adivinhar os perigos que eles vão correr no futuro. De facto, a aventura revolucionária do José só podia terminar mal, quer os comunistas triunfassem, quer fossem derrotados, como foi o caso.


Lá na cela, o José fazia por não pensar em nada. Sozinho como um cão, o nosso herói entretinha-se a pensar no futuro. E, se para alguns dos seus camaradas, o futuro se lhes apresentava, apesar das adversidades, risonho e solarengo, para o José o seu futuro não tinha futuro nenhum, que é a pior coisa que um revolucionário encarcerado pode pensar. Os outros bem lhe diziam que desesperar jamais, mas ele desesperava mais um pouco a cada hora que passava.


Quando olhava para trás apenas sentia uma tremenda saudade de rever os amigos e de passear pela sua cidade. Sentiu que a revolução adiada, ou perdida, pouco lhe dizia. No fundo, os seus impulsos revolucionários foram sempre um pretexto para a amizade, não para a ação. Bem vistas as coisas, o José sempre fora um revolucionário pacífico. As revoluções violentas não se enquadravam na sua forma de ser.


Sentiu-se ridículo. Afinal fora perseguido e preso por nada. Limitara-se a andar a passear uma arma de um lado para o outro sem nunca ter disparado um tiro na direção de uma pessoa. A revolução para ele sempre fora bonita nos livros. Neles havia esperança, coragem, sentido de futuro, necessidade de libertação, determinação, arbitrariedades que tinham de ser combatidas, amores quase perfeitos, líderes exemplares, e um povo que sabia o que queria, que seguia sempre os seus libertadores e que os ajudava em tudo o que era necessário. Mas a realidade, a puta da realidade, essa megera mentirosa, revelava tudo de forma distinta.


O que mais o entristecia era o facto de ninguém, a não ser o louco e o burro, terem aderido à revolução. E nem esses dois o tinham feito de forma voluntária. Uma revolução que não mobiliza os operários e os camponeses, não é revolução nem é nada. De facto, aquela dúzia de revolucionários transmontanos tinha que desistir, ou da revolução ou da realidade, ou mesmo de ambas, para poderem continuar a subsistir como seres humanos.


Temos que ser sinceros, o José começava a duvidar seriamente da sua vocação comunista. Não era propriamente dos ideais, mas sim da sua exequibilidade. Uma sociedade forçosamente igualitária para todos devia de ser, além de praticamente impossível, uma tremenda chatice. O que dava beleza ao ser humano era a diferença. Ao chavão “todos diferentes, todos iguais”, ele gostava de contrapor o de “todos iguais, todos diferentes”.


Na verdade, o José iniciou mais um processo de dissidência, mesmo dentro da prisão. Apesar de levar bofetadas da mesma forma e feitio dos seus restantes camaradas começou a isolar-se, a não participar em pequenas reuniões conspirativas, a furtar-se às discussões ideológicas, a preferir a companhia dos outros prisioneiros à dos seus camaradas de partido.


Por causa da estranha conduta do José, quem foi chamado à responsabilidade foi o camarada Graça, seu amigo e controleiro de longa data, a quem foram transmitidas orientações precisas para o conduzir de novo ao seio da organização do Partido.


O Graça, sabendo do feitio obstinado e individualista do seu amigo e camarada José, tentou deferir o assunto para outro camarada. Mas o camarada funcionário logo lhe lembrou que o camarada controleiro é tão, ou mais responsável, pela conduta do camarada controlado do que o próprio camarada. Ele bem resmungou, dizendo que essa é que era boa. Mas lembraram-lhe o ditado popular que diz que tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta. E lá foi o Graça cumprir com o seu dever.


O José, quando o viu a dirigir-se na sua direção, tentou afastar-se. Um monge em meditação não fala com outro monge, apenas fala com Deus. Alguns dos seus novos conhecidos ainda tentaram barrar o caminho ao Graça, mas o José, lembrando-se da velha e sadia amizade, que é o que continuava a honrar, enviou um gesto discreto na direção dos seus novos amigos no sentido de o deixarem aproximar.


“Andas bem protegido! Depressa arranjaste novos amigos. E estes parecem ser dos bons e leais. Têm toda a cara disso. Estás de parabéns”, disse o Graça carregado de ironia. “Não são piores nem melhores do que os teus. São apenas diferentes”, respondeu-lhe asperamente o José. “Os meus! Os meus? Então não são os nossos?”, teimou o Graça. “Para mim já não são camaradas. Não prestam. Não prestamos. Além de fracos comunistas, são gente sem préstimo. Mas a culpa não é deles. É nossa”, avisou o José. Ao que o Graça contrapôs: “Não te esqueças que estamos todos aqui pela mesma razão: a revolução. Isso é aquilo que nos une…” “Ou o que nos separa…” “O que nos une… O que nos unia. Eu não desisti da revolução, de transformar o mundo, de o tornar mais justo…” “Ou injusto…” “Como podes dizer uma coisa dessas?” “Basta ler…” “Tu muito lês! Pensas que a verdade está nos livros?” “Alguma deve estar. Depende dos livros que lemos…” “Então os que tu lês são melhores do que os meus? É isso?” “Pelo menos são diferentes. Eu leio livros diferentes uns dos outros. Tu limitaste a ler sempre o mesmo livro. Tu só lês a cartilha marxista e os seus sucedâneos. Por isso não te dás conta da realidade. A verdade é que os nossos camaradas de Leste são uns verdadeiros assassinos. Transformaram os países onde triunfaram em asilos de alienados e em açougues humanos. São uns bárbaros que não têm perdão de Deus.” “Perdão de Deus? Já não te conheço, José. Vieram-te agora todas as dúvidas? Pobre de ti.” “Por que é que te desiludiste com a revolução?” “Tu chamas a isto uma revolução. Foi apenas uma brincadeira de mau gosto. Nisso, os portugueses são exímios. Em tudo o que mexem, estragam. E este arremedo de revolução é disso o exemplo acabado. E eu só me desiludi com a revolução porque alguém me iludiu. Mas eu perdoo-te, pois não o fizeste por mal.” “Olha, José, eu não preciso do teu perdão. Tenho ordens para te comunicar que tens vinte e quatro horas para te decidires a regressar ao seio do Partido e à nossa organização. Após esse período, e se a tua resposta for negativa, serás expulso e declarado rachado.” “E isso o que é?” “Colaboracionista.” “Eu não preciso de 24 horas, dou-te a resposta já…”, mas não lha deu porque o Graça foi-se embora a correr.

 

169 – Quando estamos presos, alguns momentos que vivemos entre grades são ...

 

(continua)

 

28
Ago13

Chá de Urze com Flores de Torga - 4


 

Desde que iniciei esta rubrica que ando para aqui a falar de “Um Reino Maravilhoso” de Miguel Torga e pouco dele ainda deixei. Pois sem mais demoras aqui fica hoje na íntegra.


É um texto de leitura obrigatória, mesmo para aqueles que já disseram que o leram ou que o leram mesmo, principalmente se é transmontano, e seja de que terra for está ou sentir-se-á retratado neste reino maravilhoso.


Quanto às ilustrações, optei pelas que se seguem como poderia ter optado por milhares de imagens, mas até nem eram necessárias, pois ao acompanharmos o texto as imagens retratam-se-nos na memória.

 



UM REINO MARAVILHOSO

(TRÁS-OS-MONTES)


Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.



Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:


— Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...


Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?


Mas de nada vale interrogar o grande oceano é megalítico porque o nume invisível ordena:


— Entre!


A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.


Reino, nestes livros sinistros que são os dicionários, é um substantivo masculino com rei à frente. Imaginem!... Como se fossem suficientes um léxico e um monarca para definir e governar uma realidade irreal!


Pelo que diz respeito a mandar, é o que sabemos


— Para cá do Marão...


Montanhas de Freixo de Espada à Cinta


Mandam todos. O poder que atravessa a muralha e penetra ali,  se tem corpo, se tem nome, ou perde a marca individual e se transforma em símbolo, ou morre. Tem de ser sempre, quer sela Pio X ou Pio XII, o «nosso Santo Papa Leão XIII», que é quem a Maria Purificada elege em cada conclave na sua Vila de Freixo de Espada à Cinta...


Incapazes de uma obediência imposta de fora, os habitantes da terra apenas consideram naturais e legítimos os imperativos da própria consciência. O eco duma ordem estranha à sua harmonia interior desliza pela crosta das almas sem as perturbar. As mais altas dignidades de além fronteiras nada mais representam do que puras expressões nominais de valores abstractos. Meta-se um cristão por qualquer dos caminhos que levam ao coração geográfico desse mundo encantado. De certeza que lhe aparece um semelhante de aguilhada na mão, socos pregados e roupa de saragoça, a perguntar:


— O meu Senhor, sempre é verdade que o nosso rei agora é o Doutor Afonso Costa?


Faça o que fizer o Tamerlão invasor, a mesma vontade que ele julga dobrar o deseroíza e vence. É ela que, a bem ou a mal, acaba por dispor das riquezas que lhe pertencem: das águas de regadio, dos baldios, da mulher e dos filhos, e de si. De tudo o que na vida material e espiritual tem grandeza e sentido. No pormenor, no que não é seiva de ninguém, dão sentenças o Regedor e o Senhor Abade, que, afinal, pregam editais nas portas e sermões nas igrejas...


Vale (veiga) de Chaves


A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Montalegre, de Montalegre a Chaves, de Chaves a Vinhais, de Vinhais a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Freixo, de Freixo à Barca de Alva, da Barca à Régua e da Régua novamente a Vila Real, mas a que pertencem Foz-Côa, Mêda, Moimenta e Lamego — toda a vertente esquerda do Doiro até aos contrafortes do Montemuro, carne administrativamente enxertada num corpo alheio, que através do Côa, do Távora, do Torto, do Varosa e do Balsemão desagua na grande veia cava materna as lágrimas do exílio.


Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.


Terra Fria - Algures entre Soutelinho da Raia e Montalegre


Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas.


Nos intervalos, apertados entre os lapedos, rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta aridez. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Veigas que alegram Chaves, Vila Pouca, Vilariça, Mirandela, Bragança e Vinhais.


Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.


Montanhas de terras de S.Vicente (Chaves) e Vinhais vistas desde Roriz (Chaves)


Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho. Mas é por isso que os naturais o beijam quando ele cai no chão...


O vinho é de moscatel, alvarelhão, penaguiota, malvasia fina, emana das fragas à ordem de vozes imperiosas como a de Moisés quando feria a pedra do Horeb — a vara mágica do patriarca substituída agora por um alvião de saibramento. Por toda a parte apetece saboreá-lo, porque mesmo onde a neve, o sincelo e o suão crestam a esperança, mesmo aí ele parece veludo no paladar. Mas há lugares santos onde a santidade é maior. Assim acontece no Roncão, Samos de todos os Samos.


Rio Douro visto desde a Galafura


Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.


Mas a terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão. Produz batata, azeite, cortiça e linho. Batata farinhuda, que se desfaz na boca; azeite loiro, que sai em luz da almotolia: cortiça que deixa os sobreiros nus para agasalhar os enxames; e linho fresco, fino, que, tecido em lençóis, faz o bragal das noivas.


Uma nogueira e os seus frutos - Couto de Ervededo (Chaves)


De figos, nozes, amêndoas, maçãs, pêras, cerejas e laranjas nem vale a pena falar. São mimos dum pomar variegado, que nenhuma imaginação descreve quando a primavera estala nos ramos. Ver uma encosta de Barca de Alva coberta de flores de amendoeira, ou o solar de Mateus a emergir dum mar de corolas sortidas, é contemplar o inefável. Mas o fruto dos frutos, o único que ao mesmo tempo alimenta e simboliza, cai dumas árvores altas, imensas, centenárias, que, puras como vestais, parecem encarnar a virgindade da própria paisagem. Só em Novembro as agita uma inquietação funda, dolorosa, que as faz lançar ao chão lágrimas que são ouriços. Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de espinhos deixam ver numa cama fofa a maravilha singular de que falo, tão desafectada que até no próprio nome é doce e modesta: — a castanha. Assada no S. Martinho, serve de lastro à prova do vinho novo. Cozida, no Janeiro glacial, aquece as mãos e a boca de pobres e ricos. Crua, engorda os porcos, com a vossa licença...


É destes que se tem de partir para chegar à trindade tradicional do reino: os presuntos, as alheiras e os salpicões.



Por alturas do Natal, começa a matança. Ao romper da manhã, a paz de cada povoado é subitamente alarmada. Um grito esfaqueado irrompe do silêncio. Dias depois desmancha- se a bisarma, e um pálio de fumeiro cobre a lareira.


Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai o perfume das graças dadas por alma dos que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou da índia.


Mas o panorama zoológico não se fica pelo animal de vista baixa que se desfaz em torresmos e chouriços. Passando pelo lobo do Eusébio Macário, que só por si vale um tigre do Kipling, pelo boi de Miranda, que só lhe falta falar, e pelo bicho da seda que de Bragança aveludou em tempos Ceca e Meca, temos ainda a perdiz, a fera da Mantelinha, que nenhum forasteiro deve deixar de ver. Em Outubro, quando o sol ainda a espreguiçar-se de sono lava a cara na fonte de Casal de Loivos, certo perdigueiro, que sobe o monte colado ao chão, já com um aceno perfumado a fazer-lhe cócegas no nariz, pára de repente siderado. Manda-se-lhe dar a pancada. O navarro entra, e só então Sua Senhoria aparece. Cabeça alta de quem olha o mundo de cima, peito largo aberto ao vento, pés seguros de almocreve. — Pfrrruu..u..u. Lá vai ela! Quando o tiro lhe acerta e cai, parece uma deusa morta... No cinto, ainda se lhe tem respeito...


Ribeiro da Torre de Ervededo - Chaves


A truta, que representa com dignidade e bravura o mundo da barbatana, é nos açudes que mostra o que é. Sobe por eles acima como os rapazes pelos mastros ensebados, e só com sofismas a pescam uns filósofos sem filosofia, que vale a pena observar, de cana em riste e saltão no anzol. Quem for a Boticas, coma um peixinho desses e beba-lhe «vinho de mortos» em cima. Pelo que houver,  fico eu. Acudo-lhe com o único remédio decente que se conhece para moela fraca — um quarto de Pedras ou de Vidago, águas minerais que nascem perto. A terra é de tal natureza que, não contente com as dádivas a céu aberto, encerra nas entranhas riquezas que não têm conto. Entra-se no ventre duma serra, e é ferro, é oiro, é chumbo, é estanho, é volfrâmio, é zinco, é urânio, é tudo quanto Vulcano forjou. Caldas, então é um benza-te Deus. São famosas as de Carrelão, as de Moledo, as de Alfaião, as de Chaves, as Carvalhelhos e as de Sabroso — porque de todas elas fazem milagres perfeitos. E vêm então peregrinos de muito longe — gente que arrebentou ou se envenenou a comer um boi e a beber um tonel — curar nelas o estômago, o fígado, a gota, os eczemas e a melancolia. Tomam-nas durante quinze dias. Ao cabo, regressam, de corpo novo e alma nova.


Os naturais é que raramente precisam delas, por serem homens de muita saúde e sobriedade.



Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei! Usam todos bigode e alguns suíças. E põem naqueles pêlos da cara uma dignidade tal, um sentido tão profundo da pessoa humana, que é de a gente se maravilhar. Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê- se que os motiva apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:


— Entre quem é!


Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.



Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.


Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.


Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura, aos vinte anos (se não tiver sido antes), depois da militança, alguns emigram para as Arábias de além-mar. Brasis, Africas e Oceanias. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Mourejam como leões, fundam centros de solidariedade humana por toda a parte, deixam um rasto luminoso por onde passam, e voltam mais tarde, aos sessenta, de corrente ao peito, cachucho no dedo. e com a mesma quimera numa mala de couro. Gastam cem contos numa pedreira a fazer uma horta, constroem um casarão com duas águias no telhado, e respondem com ar manhoso a quem lhes censura um amor tão desvairado às berças:


— Infeliz pássaro que nasce em ruim ninho…


E continuam a comer talhadas de presunto cru.



Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemitérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito. Alegrias gratuitas têm poucas. Embebedam-se nas festas e nas feiras, batem a cana-verde nos dias grandes, e gozam os robertos e as vistas que levam de povo em povo um sofisma de ventriloquia e a irrealidade serôdia das terras do Preste João.


— Ó Zé Roberto:


Queres casar comigo, que sou uma rapariga bem boa?


Bem boa! Bem boa! Bem boa!


Olha o «Vaticano», olha o «Vaticano», com as suas 365 janelas e o Papa a olhar a uma delas… Quem quer ver? Quem quer ver?


Nas romarias, verdadeiramente, não se divertem. Pagam nelas o dízimo espiritual ao santo ou à santa com quem têm contratos pelo ano fora, e fazem a barrela das suas relações humanas.



A capela da devoção fica no alto do mais alto monte que rodeia a freguesia. E eles sobem então pela serra acima, quer à vara do pálio, quer a alombar o andor, quer de joelhos, a abrir uma chaga de sofrimento no corpo pecador — mas sem tirar os olhos do inimigo com quem hão-de medir forças no arraial. Sobem numa penitência inteira. Ao descer, vêm numa manta, esfaqueados.


Dessas mortes ficam pelos caminhos memórias de pedra com alminhas do purgatório a pedir orações, que são a História intima do reino resumida em padre-nossos. A outra, toda feita de lendas e fantasia, tem o seu tombo no coração dos que são poetas, e conta-se nas fiadas. Na loja dos bois, ao calor aconchegado da bosta quente a fermentar a palha, envolto na luz pacífica de uma candeia de azeite, o rapsodo mais velho começa:


No tempo da Princesa Clarimunda...


A meia-noite o fuso pára nas mãos adormecidas das fiandeiras. Erguem-se todos. Mas no dia seguinte chega-se ao fim.


Ponte Romana - Chaves (Madalena)


De Celtas, lberos, Romanos, Moiros, etc. e tal, e dos do tempo dos afonsinos, os velhos dão pouca relação. Em todo o caso mostram os dólmens do Alvão, a Porca de Murça, a ara do deus Aerno, os castros desfeitos, os altares de Panóias, a ponte romana de Chaves e a Domus Municipalis de Bragança. O tempo mudou os símbolos da fé, deliu as inscrições sagradas, e relegou para a penumbra da arqueologia o que foi vivo e útil. Por isso, olham todas essas relíquias numa espécie de melancolia esquiva, Renúncia inconformada, que, num desesperado esforço de encontrar os secretos tesoiros da unidade eterna, às vezes os leva a meter um cartucho de dinamite nas pedras veneráveis, a ver se elas resistem à inquietação do presente.


É certo que há escolas pelo país a cabo onde as leis inexoráveis do perecível e do imperecível são explicadas. De uma sei eu em que certa palmatória de cinco olhos faz decorar tudo quanto no mundo se descobriu até à raiz quadrada. Mas mesmo nos remos maravilhosos acontece a desgraça de o povo saber duma maneira e as escolas saberem doutra. Acabado o exame da quarta classe, cada qual trata de sepultar sob uma leiva, o mais depressa que pode, a ciência que aprendeu.


A não ser o Senhor Varatojo, que dá sota e ás ao mais pintado doutor. Na inquebrantável decisão de levar tudo ao fim, na teimosia que, uma vez segura da sua verdade, não cede a nenhum argumento, e no gosto inquieto de conhecer, podia ter sido um novo Fernão de Magalhães. a dar a volta aos mundos de agora. Mas como infelizmente a pátria não convida os filhos para tais empresas, empregou-se na Câmara, come do bom e do melhor à custa de quem lho vai meter no bico, toca bandolim. e lê quantos romances se escreveram. Depois conta-os na farmácia, e pinta o diabo se alguém o desmente.


— Tenho a certeza matemática! — grita congestionado.


E tem, porque sabe de cor as vírgulas e as peripécias. Outro dia chegou mesmo a ir a Paris, só para ver num parque público o banco onde uma heroína qualquer deu um beijo ao namorado. Entra esbaforido na estação da Vila, pede um bilhete, e ai vai ele. Chegou lá, não quis saber de mais nada:

— Faça favor: onde é o Bosque de Bolonha?


Olhavam-no todos como quem olha um fenómeno, mas sempre lhe disseram.


Parecia um tiro pelas ruas a cabo. Ao fim duma hora de caminho, chegou ao sítio. Examinou, calculou, andou, virou, tornou, até que deixou sair do peito um arranco de triunfo:


— Foi neste!


— Neste, o quê?!


Ele então explicou. Assombrados e cépticos, os de lá puseram-se a rir. Felizmente que o romance estava escrito em francês...


E como alguém duvidasse, já não do juízo do homem, mas de tudo se ter passado mesmo, mesmo naquele banco, o Senhor Varatojo mostrou a página do livro, tirou do bolso do colete o relógio, e provou:


— A cena passa-se no dia 24 de Agosto, às quatro horas. Ora bem: estamos a 24 de Agosto e são quatro horas em ponto. O banco onde os dois se sentaram tinha sombra. Não há mais nenhum com sombra. Portanto...


Meteu-se outra vez no comboio, cabeçudo, e retomou as suas funções, sentado à secretária, sempre com as virtudes do povo na ponta da língua, a garantir que Camilo é o cronista do Reino, e a confessar que vai todas as noites ao jardim da Carreira ouvi-lo sobre política, religião e literatura. Ainda não encontrou fonte onde bebesse com tanto gosto...


Os contribuintes pagam a décima e riem-se. Que diz o Senhor Varatojo? O Camilo! O Camilo levou mas foi uma grande coça na Senhora da Azinheira, outra na Senhora da Saúde, outra na Senhora dos Remédios... Fazia-se fino!


Engole em seco e muda de conversa. Como é também da mesma laia, capaz de cobiçar a mulher do próximo e varrer uma feira a estadulho, não insiste. Sabe muito bem que vive entre irmãos que não mudam de camisa para esbofetear o mais pintado, seja ele o autor do Amor de Perdição, mas que também lhe tiram o chapéu, caso o mereça. Fracos em letra redonda, sabem todos honrar a grandeza verdadeira. E a prova é que lá o têm, a esse trágico inventor de tragédias, entronizado no coração das fragas, a receber o carinho eterno da terra onde foi menino e génio. Bateram-lhe realmente nas romarias, mas deram-lhe o maior bem que se pode ter:


O nome de Transmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama Reino Maravilhoso de que vos falei.


Miguel Torga, In «Portugal», 1950.



27
Ago13

Intermitências


 

 

O Egoísmo

 

São dois egoístas.


Ele gosta de estar só, mas não quer estar só. Ela diz que ele brinca com os sentimentos dos outros, que ora vem, ora vai, que ora dá, ora tira. Como as ondas do mar. Incertas. Inseguras. Imprevisíveis. Incontroláveis.


Ele defende que só assim se sente livre, dono de sua vontade, e não de sua majestade. Para ela, isto é crime contra a humanidade.


São dois egoístas.


Ela só vê o que quer ver. Da sua ação, considera sempre que não obtém a justa e sincera reação. Como, pergunta ele, se ela própria não reage com justiça à ação dos outros.


Ela defende que sempre se coloca no lugar dos outros antes de agir, justamente: para agir em conformidade com a sua consciência. Ele acha que, assim, ela acaba sempre por agir em conformidade com ela própria, e não com os outros. Tal como os outros fazem. Para ele, isto é crime contra a humanidade.



Fotografia de Sandra Pereira


São dois egoístas.


Ela acha que ele tem de retribuir o mesmo amor que ela lhe dá para haver justiça. Da sua ação, quer obter a justa e sincera reação, pelo menos da parte dele.


Ele defende que ela está cega. Que ela não devia focar falsa e ilusoriamente a imagem que a sociedade lhe transmite nos outros, apenas para tentar – injustamente – ser justa. Que a sociedade não é de fiar. Que pelo menos frente a ele, ela devia agir em conformidade com ela própria. Para ela, isto é crime contra a humanidade.


São dois egoístas.


Ele acha que não dá, nem tira nada a ninguém e que essa é a atitude mais justa para com os outros. Não vende ilusões a pessoas sós. Não se deixa iludir por pessoas sós.


Ela defende que é injusto da parte dele mantê-la tão perto, mas ela não consegue libertar-se da consciência. Nem de si, nem dos outros. Precisa de dar para sentir-se bem. Precisa de receber para sentir-se bem. Para ele, isto é crime contra a humanidade. 


São dois egoístas.


Sandra Pereira



26
Ago13

Quem conta um ponto...


 

Pérolas e diamantes (52): o momento da poda

 

Depois do fiasco da feira do pastel e do festival de música (quem é que gosta de degustar os saborosos pastéis de Chaves polvilhados de poeira?), António Cabeleira resolveu apostar em mais dois eventos para fazer campanha eleitoral.

 

Vai daí pegou na anterior feira medieval, mudou-lhe o nome para “Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano”, agarrou em peças do museu da cidade e resolveu distribuí-las pelas lojas comerciais, edifícios públicos e hotéis do centro histórico.

 

É caso para escrevermos como diz o nosso povo: não há fome que não dê em fartura. De facto, depois de sucessivos ciclos autárquicos de imobilismo e ineficácia cultural, eis que, de repente, a Câmara de Chaves, subchefiada por António Cabeleira, se desmultiplica em propaganda política, ajaezada de dinamização cultural.

 

A autarquia, vá-se lá saber porquê, resolveu gastar 40.000 € na promoção de um evento de duvidosa qualidade cultural. E mais estranho é que o fez em fim de ciclo político e em tempo de contenção orçamental, austeridade e vacas magras. É caso para dizer que António Cabeleira, qual administrador romano, apenas aprendeu a entreter o povo com panem et circense. Quem assim se comporta bem pode dar ao Diabo aquilo que sabe.

 

Além disso, o candidato António Cabeleira, numa manobra de propaganda parola e ilegal, publicou num grupo do facebook, ajudado por um apaniguado, disfarçado de independente, o seguinte texto: “PPD/PSD – Todos por Chaves / Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano. Viagem ao Império Romano com mais de mil figurantes, 78 expositores muitas recriações históricas.” E etc. Depois segue-se um texto explicativo. E no final: “Nós acreditamos em Chaves / Nós acreditamos nos flavienses. / É hoje. / Todos por Chaves, com o PSD. / Verdade – Trabalho – Competência. “

 

Aqui fica a prova provada de que a tal Festa dos Povos foi um evento pago por todos nós para servir de propaganda eleitoral encapotada, ou já nem isso, ao PSD de António Cabeleira. O descaramento, o abuso e a iniquidade já tomaram conta dos apaniguados e dos propagandistas, à boa maneira soviética, da fação do PSD do senhor arquiteto. 

 

E na própria página de António Cabeleira aparece a confirmação: “PPD/PSD - Todos por Chaves / Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano. Viagem ao Império Romano...”, etc.

 

António Cabeleira, com o desespero, já não consegue distinguir a Câmara de si próprio. Já não faz distinção entre o PSD e a autarquia. Já não sabe às quantas anda, nem a que terra pertence.

 

Decididamente, o senhor vice já não sabe o que mais inventar para combater o pânico. Agora meteu-se-lhe na cabeça que enfiar trajes romanos nos funcionários da autarquia, pô-los a fazer de figurantes e distribuir a esmo peças do museu ao deus dará, lhe vai trazer votos e, dessa forma, combater os estragos que o senhor vice provocou no seu partido e, sobretudo, na cidade.

 

O título da notícia define o evento: “Chaves viaja no passado.” Sim, de facto a nossa cidade, com esta Câmara, não só viaja no passado como voltou a ele sem ter necessidade de outros adereços, além da crua realidade.

 

Até porque uma coisa é viajar ao passado, outra, bem distinta, é viajar no passado. Ou melhor: viver no passado. Todos o sabemos: os últimos doze anos de gestão autárquica foram ou de imobilismo ou de atraso de vida.

 

Pegando na prosa jornalística, a intenção do senhor vice é transformar a nossa cidade “numa página arrancada de um livro de história romana, habitada por imperadores e imperatrizes, legionários, gladiadores, senadores, escravos, mendigos, músicos e bailarinos”.

 

Eu quando vejo alguém arrancar páginas de um livro fico arrepiado, mas temos de convir que o verbo até está bem escolhido. De facto, esta gestão autárquica tem arrancado do livro de Chaves páginas e páginas de orgulho, racionalidade, verdade, transparência, memória e liberdade.

 

Só esperamos que, e pegando um pouco na história do Império Romano, este ato serôdio de aproveitamento político, travestido de evento cultural, seja o princípio do fim do “Império” destes senhores, que se fartaram de distribuir benesses e empregos pelos apaniguados, mandando às malvas a democracia, a lealdade, o sentido de justiça e de serviço público que juraram defender quando tomaram posse.

 

Olhando para a nossa cidade, e para a dupla que gere os seus destinos, sentimos que, ao contrário de outras cidades, ou países, em vez dos nossos políticos serem entrevistados por humoristas, por aqui acontece uma coisa bizarra: os nossos políticos parecem cada vez mais personagens criadas por humoristas.

 

Por isso é que há sempre o risco de os mais indignados com o estado do país e da cidade se retirarem da participação cívica e democrática. Hoje ainda é atual aquela frase do filme “A Canção de Lisboa”: «Vamos embora que isto é uma aldravice.»

 

É difícil nos dias de hoje dispensarmos a ironia. Eu prefiro-a, ou cultivo-a, por vezes mansa, por vezes irada, mas exijo-a sempre colada à realidade e, para mal dos meus pecados, encostada ao absurdo da existência. Manias!

 

A quem me procura compreender sempre informo que me pode encontrar já não, como dizia Natália Correia, “entre o riso e a paixão”, mas sim entre o “riso e a compaixão”.

 

Por falar em riso, humor e compaixão, relativamente a esta gestão camarária, um verso de Alexandre O`Neill vale mais do que mil fotografias: “Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.”

 

Doze anos de António Cabeleira como vice camarário é muito tempo. Todos pensávamos que esse seu percurso era um caminho para chegar a algum sítio, quer se tratasse de um ruela tortuosa ou, então, de uma autoestrada socratista. Mas, neste caso, para mal dos nossos pecados, tratou-se apenas de um caminho para não sair de sítio nenhum.

 

Ele não percebeu o óbvio. É que há uma altura na vida das cidades, dos partidos e das pessoas, que se assemelha à vida das árvores: um dia chega o momento da poda. Ele, definitivamente, era o ramo que necessitava de ser podado para a árvore poder tornar a medrar e a dar frutos. Como não percebeu, só nos resta desejar-lhe que a derrota lhe seja leve.

 

João Madureira

 

PS – Deixe, estimado leitor, que o convide para em conjunto fazermos um brinde. Mas só ao passado e ao futuro, pois este presente não merece brinde nenhum. 

 

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