O Homem Sem Memória - 175
O Homem Sem Memória
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
175 – Todos ficaram incrédulos e num silêncio profundo a olhar para o José. Deitado no catre parecia Cristo estendido no santo sepulcro, mas ainda por limpar e cheio de sangue e equimoses. O Graça começou a chorar baixinho e a perguntar: “Porquê, porquê, meu Deus. O que fez ele de mal.” O camarada funcionário tentou racionalizar: “A sua traição parece-me agora evidente. O apóstolo da dúvida e da incerteza, finalmente encontrou o seu calvário.” O Graça dirigiu-se para a beira do amigo e pediu água para lhe lavar as feridas. Ninguém lha deu. Os guardas limitaram-se a cantarolar umas incongruências.
“Pai, pai, porque me abandonaste?”, perguntou o José. “Mãe, mãe, porque me abandonaste?”, voltou a perguntar o José. De seguida entrou em delírio. Por fim adormeceu. Ou desfaleceu, ainda não apurámos ao certo. Quando acordou e reparou que o Graça estava a seu lado, tratou-o por Pedro, mas injustamente, como todos sabemos. Entretanto voltou a desfalecer, ou a adormecer, ainda não apurámos ao certo. Quando acordou de novo pôs-se a falar com a mãe.
“Disseste-me que falei dentro da tua barriga, agora falo dentro da tua cabeça. Eles vão-me matar. Vão-nos matar. Fizeram-me confessar tudo. Tudo. E eu não tinha nada para confessar. Mas confessei tudo. Tudo o que eles exigiram.”
O Graça voltou a chorar. O José, tratando-o novamente por Pedro, disse para poupar as lágrimas, pois acreditava na sua amizade, apesar de o ter negado três, trinta, ou trezentas vezes: “O seguinte és tu.”
Todos os camaradas estavam encostados às paredes, hirtos e brancos como a cal. Apenas o camarada funcionário palrava: “Não tenhais medo camaradas. O Partido apenas quer apurar a verdade. Quem não é culpado não deve temer represálias. Vão ver como tudo se resolve por bem. Agora que descobriram o traidor, vão-nos libertar.”
O Graça pôs-se então de pé e correu caras a ele: “Meu grande sacana. Como és capaz de dizer uma coisa dessas de uma pessoa como o José. Ele traiu o quê? A verdade é que não, todos somos testemunhas. E muito menos a sua consciência de homem livre. Tu é que te trais a ti próprio quando pensas pela cabeça dos outros.”
Quando ia para lhe assentar uns murros nas ventas, foi impedido pelos outros camaradas que lhe disseram que não devia fazer o que outros fariam por ele.
De novo se abriu a porta da cela, desta vez para chamarem pelo Graça. Ele recusou-se. A haver porrada que começasse o mais cedo possível. Além disso não tinha nada para confessar. E foi isso que gritou bem alto durante todo o trajeto.
No catre o José gemia e delirava. Os outros camaradas pareciam rezar. Apenas o funcionário continuava a tentar justificar a situação do ponto de vista marxista-leninista: “Só a verdade é revolucionária. Por isso temos de tentar sempre encontrá-la. Mesmo que o processo seja doloroso.” E lá continuou a debitar outras idiotices do género. Alguém perguntou: “Achas que o Graça também é traidor? Algum dia viste ou soubeste algo que o possa incriminar?” Ao que o camarada funcionário respondeu: “Eu assim diretamente não. Mas nunca se sabe. Quem tem amigos traidores é potencialmente um traidor também.” “Então todos somos traidores.” “Todos não. Eu não sou amigo do Graça e muito menos do José. Tratei-os durante algum tempo por camaradas, pois pensei que o eram. Mas nada mais do que isso. Limitei-me a cumprir com as ordens do Partido. Quando soube da dissidência do José fiz aquilo que qualquer dirigente pode e deve fazer, transmiti essa informação aos organismos dirigentes. Eles depois lá fizeram o resto. E acertadamente, como se vê.”
A pesada porta voltou a gemer nos gonzos. Por ela entrou outro cristo ensanguentado e cheio de chagas. Nisso os camaradas tinham sido exemplares, ninguém conseguia distinguir um cristo do outro, de tão maltratados que estavam.
“Afinal o Graça também é traidor. Veem camaradas, como tinha razão”, gritou o camarada funcionário apontando na direção do segundo cristo. Os restantes camaradas já não lhe passaram cartão nenhum, dirigiram-se ao Graça e trataram de o amparar e de o estender no catre. Alguém pediu água para lhe lavarem as feridas. Responderam-lhe que o fizesse com a saliva, pois a água no Alentejo é um bem muito escasso.
Também o Graça gemeu e delirou. Quando se abeirou de si o camarada funcionário para tirar alguma informação, ele apelidou-o, e com razão, de Judas e cuspiu-lhe na cara um jato de sangue. Depois chamou os outros camaradas e confessou-lhes com as lágrimas nos olhos: “Também eu confessei tudo.” “Tudo o quê?”, perguntaram-lhe incrédulos. “Tudo o que eles queriam. Agora todos somos traidores.” “Mas nós não traímos nada, nem ninguém.” “Por isso mesmo. Quando lhes disse isso, responderam-me que estava a esconder algo de muito grave. Por isso é que estávamos presos. O Partido, argumentaram eles, nunca se engana. Por isso ou confessamos os crimes ou a tortura continua até obterem a reconhecimento da verdade. Dali não saem. O melhor é confessar o mais depressa possível o que eles querem. No entanto subsiste um problema, é conseguirmos acertar com aquilo que eles pretendem que a gente confesse. Quando existe culpa, não é difícil acertar com a resposta. O problema é quando se está inocente e nos culpam de algo que não sabemos bem aquilo que é.”
Alguém confidenciou: “Isto é bem mais complicado do que eu pensava.” “Pois. Se confessas rápido desconfiam que lhes estás a mentir. Se nada lhes confessas, suspeitam que lhes estás a encobrir a verdade. Pois para eles nenhum de nós é inocente. Se todos dizemos o mesmo imaginam que estamos todos combinados na mesma mentira. Se cada um diz coisa diferente, desconfiam que estamos todos a mentir com o propósito de lhes indicar pistas falsas, o que ainda os põe mais furiosos.”
Alguém mais impaciente perguntou-lhe como tinha ele acertado com a confissão. Ao que ele respondeu que foi por tentativa e erro. Quando depois de uma resposta sua lhe batiam ainda mais, deduzia, e bem, pensamos nós, que ia no caminho errado. Então tentava nova resposta. Se a porrada continuava com grande intensidade, tentava inventar outro tipo de resposta. Se a bordoada diminuía seguia esse caminho e assim sucessivamente até a porrada cessar e eles se darem por satisfeitos.
Perguntaram-lhe então que tipo de resposta é que eles deviam dar para não levarem tanta cacetada. O Graça, como bom camarada, disse-lhes que se lhes explicasse o que ele tinha confessado era certo e sabido que levavam tanta porrada ou ainda mais do que ele e do que o José. A melhor estratégia era mesmo irem tenteando as respostas pela intensidade da sova. Muita sova queria significar que se tinha de mudar de rumo. Porrada de criar bicho, todos tinham de levar. O estratagema era não morrer no interrogatório ou ficar paralisado para a vida inteira.”
Abriu-se de novo a porta e foi gritado novo nome. O camarada respondeu presente. E lá foi cumprir com o castigo. Apurar a verdade é, como estamos a tentar provar, uma tarefa dificílima.
176 – Depois de mais alguns ...
(continuar)