Discursos sobre a cidade - Por António de Souza e Silva
QUE CIDADE (DE CHAVES) ESTAMOS CONSTRUINDO?
Deixemos-lhes recordar. Nos idos anos 90 do século passado, na febre da planificação e do ordenamento do território [a cargo das autarquias, face à demissão e à nova postura (tardia) do poder central quanto à problemática do território e do seu ordenamento e ao (novo) papel, nesta matéria, das autarquias, (muito embora as críticas e os reparos a fazer quanto aos instrumentos, entretanto postos em prática, no sentido de contribuírem eficazmente para o ordenamento e desenvolvimento harmónico e sustentável do território)], Chaves tinha duas ferramentas de crucial importância susceptíveis de poderem inverter a sua fragilidade face a um poder central todo-poderoso, alavancando propostas catalisadoras não só de uma nova postura ou cultura de encarar o território como de «apostas» (com objetivos e ações) que concitavam o seu desenvolvimento como cidade e concelho. Não era tudo; contudo, sempre representava alguma coisa.
Estamos a falar, concretamente, do Plano Diretor Municipal (PDM) e do Plano Estratégico de Desenvolvimento da Cidade de Chaves (PEDCC).
Vamos deixar o primeiro e fixemo-nos, embora que muito esquemática e sucintamente, no segundo, esquecendo-nos o(s) diagnóstico(s) entretanto feitos para, tão somente, nos fixarmos, genericamente, nas suas «apostas».
Refira-se à cabeça – pois se trata de um facto não tão pouco despiciendo – que este segundo instrumento – PEDCC – foi sufragado (votado), por unanimidade, na Câmara e Assembleia Municipais, sendo na altura Presidente da Câmara Alexandre Chaves e líder da oposição – futuro Presidente da mesma – João Batista.
Era um instrumento importante e decisivo para o desenvolvimento da cidade (de Chaves) e do seu concelho, embora os reparos com a sua pouca e ativa participação cidadã de um documento muito técnico, feito por reputados peritos e, por conseguinte, na circunstância, de certa forma, ser «imposto» de cima para baixo, bem assim o falhanço, na sua primeira fase de vigência, da ação do Gabinete da Cidade – um órgão consultivo da Câmara, saído daquele estudo e instrumento – quanto ao papel que poderia ter e desempenhar no aglutinar e «animar» de vontades dos principais agentes, inter, trans e intramunicipais, como atores e animadores fundamentais, em ordem à execução das suas 7 «Apostas» que, naquela altura – e porventura ainda hoje – tinham e faziam algum sentido.
Recapitulemo-las:
- Chaves, município da água e do lazer termal – cidade capital de uma região termal transfronteiriça;
- Chaves, concelho plataforma de fixação e placa giratória de difusão de recurso turísticos transfronteiriços e internacionais;
- Chaves, concelho plataforma de suporte de criação de novos empregos, qualificações e com potências ao serviço da animação e da descoberta do Alto Tâmega, região com tradições vivas e susceptíveis de valorização de novos produtos para novos mercados;
- Chaves, cidade encruzilhada de geometrias variáveis e de relacionamento intra e inter-regional e plataforma de atração de novos instrumentos e investimentos e atividades em termos de uma nova lógica de distribuição;
- Chaves, cidade centro político, cultural, económico e institucional das relações transfronteiriças;
- Chaves, cidade centro sub-regional com património e imagem urbanas a valorizar numa escala mais alargada;
- Chaves, cidade centro de cultura, participação e animação cívica.
Quanto à participação democrática e animação cidadã dos munícipes para o desenvolvimento da sua cidade e do seu concelho, é o que se vê!
Dos programas e ações mais relevantes que pudessem dar corpo e algum sentido ao desiderato daquelas 7 «apostas», temos, na atualidade, o Parque Empresarial, e mais outros nomes pomposos com ele relacionado, para os lados de Outeiro Seco e Vilela Seca, que custaram uma fortuna ao (nosso) erário público municipal (e que nem sequer aqui vale a pena fazer o seu triste e desastroso historial) e a criação da Eurocidade Chaves-Verín (uma «habilidosa» fuga para a frente com escassos, poucos, resultados no sentido de corporizar e contribuir para a realização de alguns objetivos das «apostas» constantes naquele instrumento. Ah - já nos íamos esquecendo - a transformação das Caldas de Chaves numa «empresa» municipal!...
Entretanto, volvidas que foram quase quatro décadas de poder municipal, que cidade temos e que cidade somos?
Atentemo-nos na política de solos urbanos. Volvidos quase quarenta anos de poder autárquico, onde está essa mesma política plasmada na criação de uma reserva estratégica de solos por forma a dimensionar e estruturar as novas funções e os novos equipamentos urbanos, face às novas necessidades da sociedade e da sua cidade, criando novas centralidades? Um olhar mais atento para esta realidade só nos pode trazer uma profunda desilusão e dura crítica quanto à visão e estratégia dos autarcas que elegemos para dirigir os destinos da nossa cidade e concelho. Exemplos? Infelizmente não nos faltam. De uma gestão dos recursos municipais feita de uma forma voluntarista, errática, muitas vezes paranoica, a reboque, quase sempre, da especulação imobiliária, dos puros interesses patrimonialistas e individuais e de uma certa e tacanha mentalidade da nossa «intelligentsia» local.
Sem pretensões de sermos exaustivos, comecemos pela Veiga de Chaves. Considerada um «património agrícola nacional», ela é o que aí esta: «rios de dinheiro» gastos em canais de irrigação e nem uma proposta/solução consequente com a sua aptidão agrícola, usada de uma forma rentável do seu solo e com estrutura(s) de distribuição dos seus produtos, capazes de constituírem uma efetiva mais valia e fonte de riqueza para os seus proprietários! Que, por isso mesmo, entraram no «jogo» da especulação dos solos para fins imobiliários, deixando-nos a «manta de retalhos» que aí se vê!
Viremo-nos para o primeiro parque industrial da era de Branco Teixeira. E deixemos de lado os considerandos quanto ao imbróglio da constituição dos seus lotes e a «escandalosa» venda dos mesmos. Onde está, neste, aliás como nos outros que se lhe seguiram, qualquer vislumbre de política industrial para o concelho com aptidões transfronteiriças? O que aí vemos, e temos, não passa de uma amontoada, e anárquica concentração, de instalações de empresas que trabalham na área dos vários serviços. E pouco mais!
Quanto à estrutura viária urbana, e respetivas ligações às principais redes viárias regionais e nacionais, nem vale a pena falar! Chaves deixou de ser um espaço «aberto» e «arejado». E, circular, em certas horas do dia na cidade, é uma «despaciência» e incomodidade (como é o caso do «cancro» do «Monumento» para uma cidade que, no concerto da rede urbana nacional – e que se quer considerada como cidade-média – deveria ter outros predicados e conter outros atributos. Para além de que entrar nas principais redes viárias (v. g. A24) é o que está à vista!
Quanto aos equipamentos urbanos. Vê-se algum sentido e lógica na sua distribuição? Exemplos? Vejamos alguns, como:
- a inconsequente decisão da localização do espaço da feira semanal;
- a inconsequente decisão da escolha do espaço para a realização da Feira (anual) dos Santos;
- a disparatada decisão de localização da feira do gado;
- a incauta escolha do local para a sede de uma Fundação, dedicada ao mundo da arte e da cultura, num solo considerando «reserva ecológica», porque sita no «leito de cheia» do rio Tâmega;
- ou o de se «desterrar» a localização das instalações daquilo que não passa de um «aborto» de ensino superior em Chaves para os confins do termo da freguesia de Outeiro Seco, sem se ter a preocupação de ligar este equipamento comodamente à cidade, ampliando-a, e, no seu espaço (urbano) – público e privado – construir mais e melhor cidade (enquanto, por outro lado, o nosso património construído, adquirido pela autarquia, como a Quinta, designada dos «Montalvões», com o seu solar, está em ruína, a cair de velho e sem qualquer serventia!);
- e tem alguma lógica o colocar-se as piscinas municipais na outrora Quinta do Rebentão? Têm alguma comodidade para a maioria dos residentes da cidade, porventura a grande fatia da população que utiliza aquele equipamento ao ar livre, enquanto outro (a piscina municipal coberta) ocupa um dos espaços mais nobres da cidade? Não haveria, porventura, outras e mais ricas ambições para aquele espaço? Exemplos espalhados por alguns municípios do país não faltam?
Quanto ao aparcamento na cidade. Sinceramente, então aqui nem vale a pena falar, tal foi – e ainda é - a sua errância! Aqui, uma vez mais, se reflete a falta de cuidado, e atempado planeamento, da incúria, de uma gestão autárquica na reserva de solo urbano para, com ela, «cerzir» a cidade. E, a este propósito, vem à colação o Largo do Arrabalde, antessala da sala de visitas que é o nosso Centro Histórico. Para quando o «derrube» daquele «muro da vergonha»? Sabemos que tudo quanto diga respeito à preservação e salvaguarda da «memória» e do património deve-se fazer sem pressas e com critério. Contudo, já não passa, em demasia, do tempo razoável? De trazer aquele espaço ao convívio e partilha dos seus residentes e de quem nos visita?
Toquemos agora num ponto sensível a uma certa «intelligentsia» local – o Quartel de Chaves. Abra-se um parêntesis – tenho a maior estima e consideração pelos profissionais que por lá passaram e pelos que, na atualidade, ocupam as suas instalações. Mas, convenhamos, não é disso que, aqui e agora, se trata. Justifica-se, na entrada do século XXI, numa Europa que se quer construída sem fronteiras, e com livre circulação de pessoas e bens, em Chaves, um quartel? Para nos guardar de quem e contra quem? Temos, como país, alguma estratégia quanto à localização de instalações militares? Ditada com que critério? Já não temos na nossa cidade – e não só – suficiente «memória militar» que nos lembre da nossa vocação de «guarda fronteiriça», quer material, quer imaterial, e da nossa função militar de guarda e de proteção do nosso território ao longo da história? Para quê um quartel que nos coarcta as possibilidades de crescimento mais para norte, na continuação da Avenida Nun’Álvares, e porque não lhe dar, por sua vez, àquele equipamento, outras funções tão nobres, compatíveis e mais ajustadas a outras necessidades decorrentes da evolução dos tempos que correm? Esta discussão não pode ser um assunto-tabu. Hoje, como em tudo, tudo está (deve estar) em aberto!
Mas regressemos ao Plano Estratégico de Desenvolvimento da Cidade de Chaves dos anos 90 do século passado. É bem certo que, aquele plano, na nossa modesta opinião, por que feito por tecnocratas, e numa perspetiva a «raiar» o neoliberalismo, dá-nos a imagem da (re)construção e organização de uma cidade como se de uma pura mercadoria se tratasse.
Estamos com Maribel Mendes Sobreira quando, no seu artigo «Para uma compreensão da cidade», constante do livro «Filosofia e Arquitetura da Paisagem – Intervenções», coordenado por Adriana Veríssimo Serrão, e publicado em 2013, pelo Centro de Filosofia da universidade de Lisboa, nos diz:
“Nunca, tanto como hoje, as questões de valorização, salvaguarda e recuperação do património urbano mereceram tão ampla atenção e preocupação dos vários agentes sociais, numa época em que a globalização dita o mercado, o modo de agir e pensar, as cidades tornaram-se em elementos estéticos de fruição individual e coletiva, «objetos de desejo» mercantilizados”.
E mesmo quanto a estes «objectos de desejo» mercantilizados, será que algumas intervenções, ditas estéticas, ou elementos estéticos, de fruição individual e coletiva, não serão «objetos de desejo» de duvidosa mercantilização?
Concordamos ainda com Maribel M. Sobreira quando, no mesmo passo, afirma:
“Uma ética da cidade terá de passar por encontrar ou reencontrar-se com o seu propósito primordial (…) É necessário uma nova consciência, uma (re)educação, um voltar à origem, onde o lugar era sentido e apreendido como propriedade coletiva, onde cada indivíduo «trabalha» para a concretização da sacralização da Cidade, do lugar que habita (…) Como recuperar a infância perdida da urbe, que no jogo das escondidas se desiludiu com a qualidade de vida da sua própria casa? (…) A ideia de apropriação territorial, no sentido de ocupação física e afetiva do espaço, leva a que um grupo procure o que o caracteriza, para que se possa distinguir do vizinho (…).
(…) a degradação do modelo das cidades contemporâneas, advém da falência ético-moral do ser humano por este ter dado primazia aos elementos artificiais que foi conseguindo construir, através da técnica sobre a Natureza. E com isso as cidades foram-se afastando-se da sua relação com a natureza, criando-se paisagens e relações artificiais com o elemento natural, afastando-se do seu propósito, o diálogo com o seu meio (comunitário) ”.
Na esteira e suscitação da leitura do artigo «Regeneração urbana e arte pública», 2010, Caleidoscópio, Edição e Artes Gráficas, de Antoni Remesar e Fernando Nunes da Silva, perguntamos:
- qual o contributo do autarca/político – arquiteto paisagista num tipo de intervenção artística urbana que renuncie «à materialidade extrativa» (referência aos processos com base na escultura) e, mesmo aqui, no que concerne a Chaves, quase nula, para nos apresentar e propor «um paradigma “meio-ambiental” com o uso dos recursos naturais capazes de qualificar o território»?
- Onde está o «momento expansivo da cidade» que apele à conservação da memória do passado (quer de um passado histórico propriamente dito, quer da sua inserção rural, quer, ainda, e nalgumas facetas da sua atividade industrial, ou seja, a «paisagem integral», o tratamento material, assumindo a cidade de onde vem (a sua memória) e para onde vai (o futuro e a sua sustentabilidade)?
- Onde está «o duplo movimento de recuperação e de projeção» ao efetivo serviço da dimensão cultural de Chaves?
- Onde está a regeneração urbana e valorização do rico património histórico e arquitetónico da cidade de Chaves ao serviço da revitalização urbana e da valência turística? Será que a qualidade de vida urbana dos cidadãos flavienses se mede apenas por algum mobiliário urbano numa das artérias principais do seu Centro Histórico e pelo tratamento (incipiente) das margens ribeirinhas do Tâmega?
- Onde se criou, na cidade de Chaves, espaço público material de vivência/convivência, fruição e participação cidadã dos flavienses?
- Onde está o comércio, enquanto atividade predominantemente urbana, para além da sua função estritamente económica e funcional, desempenhando uma dimensão social e artística que possa desempenhar um papel chave no planeamento da cidade (de Chaves)?
- Que papel o comércio (de Chaves), como espaço privilegiado para o estabelecimento de ações cooperativas entre o setor público e o setor privado na compatibilização e alavancagem mútua de investimentos e estratégias organizacionais, deixando de viver algumas das iniciativas públicas quase só «à sombra» do orçamento público autárquico?
Será que o autarca/político – arquiteto paisagista, durante tantos anos de poder e de convivência com o seu correligionário e companheiro/engenheiro, antigo autarca brigantino, não foi reparando em algumas práticas urbanistas por ele levadas a cabo no seu território citadino (veja-se, a este propósito, um dos posts no meu blog «Andarilho de Andanhos», no endereço eletrónico - http://andanhos.blogs.sapo.pt/23234.html)?
Será que o autarca/político – arquiteto paisagista se dá conta que sendo o comércio um dos aspetos da alavancagem da cidade de Chaves, em vez de andar ao colo com o representante deste setor (infelizmente como outros no passado, que inauguraram esta prática) não procura construir um novo relacionamento entre o comércio e a cidade, explorando uma nova e moderna política da cidade de Chaves, ao implementar uma nova perspetiva sobre o papel que o comércio pode representar para a coesão da cultura urbana e a qualificação do espaço público (veja-se, à sua escala, evidentemente, o que se fez em Allariz, província de Ourense, na vizinha Galiza)?
É na forma de ter (construir) uma cidade que se afere a qualidade (ser) da vida dos cidadãos que ocupam (habitam) um determinado espaço territorial.
Passaram-se quase vinte anos sobre a cidade de Chaves, e, ao contrário de outras épocas, que criaram novas e duvidosas centralidades – por isso, hoje em decadência pela sua pobreza arquitetónica e urbana – continuamos cada vez mais pobres, desordenados e endividados.
Urje, assim, uma vez mais, um grande, autêntico e decisivo debate sobre a cidade que queremos ter e que cidadãos queremos ser neste cantinho flaviense que nos é dado viver. Porque a cidade e o seu espaço/território não é «coutada» de uns tantos, mas espaço de vida para aqueles que nele habitam.
António de Souza e Silva