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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

08
Jun16

14 – Era uma vez um comboio


800-texas

 

“O Nosso Comboio”

 

Tudo é negro. Os edifícios têm veias escuras que lhe escorrem pelos alçados, as crianças têm rostos enegrecidos. Tudo é negro do fumo das fábricas, do ferro utilizado na cidade, da angústia iminente que a sufoca. O ar é tão denso que mal se respira, a poluição e desgraça entra-nos pelos pulmões como uma película viscosa que asfixia. Os sons da cidade misturam-se numa cacofonia irritante que eu já não consigo reconhecer. Mas no fundo, lá bem ao fundo eu ouço. Ouço um som que reconheço. Não me traz boas memórias mas, no meio da perdição, traz-me uma lembrança. Ouço os sons estridentes, metálicos, quase sofríveis. O fumo sai negro, tenebroso, expelido de forma violenta. À medida que me aproximo vejo a velha estação ferroviária, em ferro retorcido, onde o comboio engole impiedosamente aqueles que partem.

 

Algumas crianças riem, excitadas, ansiando pela viagem. Os adultos, esses, choram em silêncio pelos que ficam e pelo que deixam. Fazem-se promessas, que sabem que ninguém vai cumprir, dão-se beijos e abraçados, tentam-se aquecer corações já há muito gelados, destinados a estilhaçar.

 

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O comboio apita, estala e geme quase obscenamente no meio de tanta dor. Os revisores correm e gritam ordem, quase tão automaticamente quanto a velha máquina metálica ruge, desejosa de partir. De olhos vidrados, num rosto apagado pela angústia, já não se permitem ver o que se passa em redor, sentir o sofrimento dos passageiros. Tudo o que veem, tudo o que ouvem, perde-se nesse vazio sentimental que todos aprendemos a ter. E é assim que continuam, dia após dia, a encaminhar os passageiros para o comboio, como se de um carrasco se tratasse. Apáticos, tristes, miseráveis como todos nós.

 

Por fim, a maquineta maquiavélica já engoliu todos os seus passageiros. Contrastando com o metal enegrecido, veem-se bracinhos alvos de crianças a acenar, rostos lívidos de quem parte e já não volta. Rostos de revolta, de sofrimento, de uma saudade ainda precoce.

 

O comboio arranca, sacudindo as suas almas fervorosamente. A paisagem desvanece-se rapidamente pela janela, sem termos tempo de a absorver nos sentidos, para que, um dia mais tarde se nos for permitido, a possa recordar. Lembro-me de ter aberto uma janela e timidamente esticar-me para sentir o cheiro dos campos, o cheiro da chuva na terra acabada de plantar, o cheiro da minha cidade.

 

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Depois fiquei, junto a tantos outros, cabisbaixo a matutar, enquanto os soluços do comboio embalava o meu próprio choro e me roubava à minha vida.

 

 

PS: O texto pretende transmitir o ponto de vista de pessoas que tiveram de partir para outras cidades e outros países de comboio. Refere-se, sobretudo, às fugas consequentes da Segunda Guerra Mundial, altura em que o medo e a opressão sugavam a felicidade das pessoas. Esta visão, pesada e triste acerca de um comboio, pretende transmitir o lado negativo de uma invenção que trouxe muitas mais-valias. No entanto, como há sempre o reverso da medalha, há que evidenciar também as coisas más para que nunca nos esqueçamos que nem tudo é perfeito.

 

Numa visão claramente exagerada, pode-se também ilustrar um problema actual e cada vez mais comum – a emigração. Retrata aqueles que trabalharam para construir uma vida, num país que amam, junto aqueles que amam e têm de abandonar tudo porque já nada é certo.

Nordeste.AL.

 

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

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