Quem conta um ponto...
336 - Pérolas e diamantes: Tragédia e comédia
Uma quadra de Omar Khayyam reza o seguinte: “Fui à mesquita, roubei um tapete. / Muito mais tarde senti-me um malandrete. / Voltei à mesquita: o tapete estava roto, / Precisei de arranjar outro.”
Naqueles velhos tempos os tapetes ainda voavam pacificamente transportando jovens príncipes ou velhos sábios.
Depois começaram a voar mais alto e transformaram-se em enormes aviões que se arremessaram contra altas torres no império das américas. As mil e uma noites transformaram-se em horror.
Consumou-se mediaticamente o combate das civilizações, que mais não é do que a guerra das religiões.
Deus e Alá tentam provar qual deles é o maior.
Alá, de espada em punho e pela mão dos seus guerreiros-mensageiros, entretém-se a degolar infiéis.
Já Deus contemporizou na sua raiva e no seu ciúme e tornou-se o grande inimigo dos carneiros.
Ainda nos perguntamos por que medonha razão, ou objetivo divino, resolveu trocar, no momento do sacrifício, o filho de Abraão por um cordeiro e não por uma galinha, um grilo, uma gipsófila ou um cravo vermelho.
Dessa sua divina opção resultou a enorme perseguição aos ovinos por séculos e séculos. E ainda hoje se mantém, com o sucesso que todos conhecemos, e prosseguimos. O cordeiro pascal é ainda a nossa forma de celebrar a ressurreição do seu filho.
Por falar em animais, não se sabe ao certo por que razão o homem se afeiçoou aos cães. Sabemos que Wagner leu “O Mundo Como Vontade e Representação” de Schopenhauer em setembro de 1854, precisamente no momento em que começa a compor Tristão e Isolda. Um dramalhão que dá seguimento ao mito dos amores pecaminosos e terríveis que apenas podem terminar em morte.
Dizem que Schopenhauer nunca amou ninguém como amou Atma, o seu cão. Contam também que o filósofo alemão nomeou o seu cão herdeiro universal.
A loucura não é apenas coisa de deuses. É também privilégio dos humanos.
Álvaro de Campos, essa criatura criada pelo semideus Pessoa, tenta seguir Apollinaire, que era amante do Oriente e de paquetes e que também fumava ópio, misturando drogas e viagens.
Na sua bíblia, que um amigo me ofereceu em dezembro de 1983, com uma dedicatória de Álvaro Cunhal, este um semideus do comunismo, leio no Opiário: “É antes do ópio que a minha’alma é doente. / Sentir a vida convalesce e estiola / E eu vou buscar ao ópio que consola / Um Oriente ao oriente do Oriente.”
Afinal é de lá que nos chega tudo aquilo que somos. Para o bem e para o mal. Valha-nos Deus, o divino pai de Jesus, o salvador e Alá, o misericordioso, e Maomé o seu profeta dileto.
O problema foi quando os deuses nos começaram a fazer favores. Thomas Bernhard ouviu-os e resolveu registar uma sua frase célebre: “As pessoas vingam-se dos favores que lhes fazemos.” Não sabemos é se o divino autor do desabafo foi Alá, o misericordioso, ou o divino Deus da cristandade. Seja quem seja, a confissão aí ficou como aviso.
A condenação caiu sobre os artistas europeus, em forma de tuberculose, a maleita pública e social, ou sífilis, a doença íntima e vergonhosa.
Primeiro alinho os tuberculosos mais conhecidos: Rimbaud, Gauguin, Goethe, Miguel Ângelo, Brahms, Picasso e Hesse.
Agora os sifilíticos: Nerval, Van Gogh, Rückert, Proust, Roth, Musil e Hesse, que era ambas as coisas. E muito provavelmente Beethoven, daí a sua surdez, e a quem descobriram outros males: hepatite e cirrose.
E Pessoa também tinha muitas doenças. E adições. E ainda por cima amava a poesia de Khayyam. Este parece ter sido feito depois de beber uns copos e de ler algumas quadras do poeta persa: “Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta. / Ora o vinho bebemos porque é festa, / Ora o vinho bebemos porque há dor. / Mas de um e de outro vinho nada resta. “
Que os deuses nos apanhem confessados.
João Madureira