- LUZIA CARRAPATO.
Após o fim do concerto da Banda de Infantaria 19, com uma apoteose ovacionada pelo público, estava a menina Aurora a deixar o Jardim com a família, quando viu, pela segunda vez, a velha demente, que fora recém-apupada pelo magote de putos. Desgrenhada, suja, continuava perdida em seus solilóquios e a gritar sem parança. Era, de hábito, inofensiva. Enfurecia-se bastante, porém, quando a malta vinha molestá-la, provocando-a com palavras e gestos indecentes. A pobre mulher retribuía, então, com gestos e palavras ainda mais agressivos.
Como Aurita viesse mais atrás dos Bernardes, ao lado de tia Margarida, esta contou-lhe a história da louca senhora.
Luzia Carrapato, outrora de Avelar e Guimarães, tradicional família minhota, apaixonou-se perdidamente por um judeu polaco, paixão logo correspondida. O pai da moça, de arraigada fé cristã, negou aos jovens qualquer possibilidade de um enlace matrimonial. Transportou-a para uma quinta longínqua de sua propriedade, onde a rapariga ficou reclusa.
O jovem semita foi-lhe ao encontro e com ela fugiu para Viana do Castelo, de onde seguiriam até à Galiza e, depois, para a Polónia. O senhor Matias de Avelar e Guimarães, todavia, contratou os serviços de um bandoleiro, para seguir no encalço dos amantes, matar o rapaz e trazer a fugitiva de volta à casa paterna.
A menina Luzia estava grávida. Ao lhe nascer o filho, o avô minhoto pagou a um nómada cigano uma tarefa imediata: desaparecer com a criança pelo mundo afora e nunca mais passar por aquelas bandas do Minho. Deu-lhe ainda um manhuço de réis a mais, para atender ao sustento do petiz. Esse era um costume bem antigo, desde a Idade Média, sobretudo entre os nobres e abastados.
Afirma-se que provém, dessa forma de alienação de crianças bastardas, uma parte do ancestral preconceito contra os ciganos. Alimentou-se, por toda parte, a lenda de que estes roubavam miúdos, cujos pais nunca mais os tornariam a ver. A propagação dessa lenda foi aumentando, cada vez mais, mormente quando se viam nos acampamentos gitanos, sem que lhes soubessem a procedência, crianças de olhos azuis e de tez bem mais clara do que a pele dos demais integrantes do clã.
O que resultou dessas bárbaras ações do pai de Luzia é que a menina enlouqueceu. Em seu desvario, saiu pelo mundo afora a falar de sua dorida história, enquanto ninava panos enrolados como se fosse o filho perdido, para o qual ficava a cantarolar sem harmonia nem pausa. Uma algaravia a que ninguém alcançava compreender.
Essa história deixou a menina Aurora tão impressionada que, nessa noite, perdeu o sono até ao alvorecer. Sentia a modos que o estômago se lhe revirava e dava um nó. Não parava de pensar nos padecimentos da pobre mulher, a sofrer unicamente pelo facto de se entregar aos ditames do amor, até suas últimas consequências. Quando, enfim, conseguiu dormir, viu-se a correr suja e com as melenas desgrenhadas pelas ruas de Chaves, com um bebé de verdade nos braços. Era perseguida por pessoas muito más, que acabavam por encurralar a si e à criança, em um beco escuro e sem saída, onde, ao fundo, havia um homem encapuzado, sinistro e aterrador. Ao se revelar sua face, com olhos encarnados e riso sardónico, ele não era o Papá, mas parecia o Papá, tinha a cara de Papá... e isso fez, de tal sonho, um pesadelo ainda maior.