O factor humano
10 contos de reis, sem notas - 4
Solidões
Finalmente podia começar uma nova vida. Foi com este pensamento que entrou num convento. Não o movia qualquer fé ou crença em qualquer deus. Apenas o desejo de liberdade. Por isso, levantava-se todos os dias às 4h00 e cumpria um extenso ritual. Uma ladainha, para ele sem nexo, mas que fazia com a mesma aparente devoção que os demais monges. Do que ele gostava mesmo era de meditar. Livre de obrigações para com os outros, livre da dominação do tempo. Simplesmente estava ali para sempre.
Ao fim de uns meses, perdeu-se mesmo no calendário. Sem fio de ariadne que o guiasse, foi confundindo as semanas e as estações. Até ficar em nenhum sítio para todo o tempo. O mais difícil foi fugir da memória. Esta tinha estabelecido conexões complexas aparentemente impossíveis de desligar.
Isolado do mundo para sobreviver. Sem metas, a não ser a rotina da monotonia.
Passava horas a observar os movimentos das formigas. Mas o seu prazer preferido era o de conversar com o cão. Calmamente e sem discussões. Adormeciam ambos com frequência, sempre sem discordarem.
Para esvaziar a memória, reescrevia as canções com novos versos cada vez mais simples. Também foi escrevendo contos, memórias de histórias ouvidas ou de histórias vividas.
Começou a ganhar tranquilidade como se simplificasse as conexões das suas sinapses.
Foi isso que me contou na primeira consulta de psiquiatria. Nunca soube qual era a verdade.
Nunca mais voltou.