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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

03
Mai17

Cartas ao Comendador


cartas-comenda

 

Meu caro Comendador (Post scriptum) (23)

 

 

O Comendador foi hoje a enterrar. Nem mal nem bem, nem mau nem bom! Acontecem estas coisas a quem está vivo e depois deles partirem fica em nós, a eles sobreviventes, uma espécie de nostalgia, nem bem isso, um arrependimento do que com eles não vivemos embora estando e do que com eles vivemos sem ter estado! Qualquer coisa de muito ténue e ao mesmo tempo decisivo e determinante, como se nos viessem parar às mãos as cinzas de uma incineração que nem pedimos, nem forjámos, nem quisemos e que talvez por isso não omitimos! Fica em nós um misto de lamento, dor e sofrimento pelo que não dissemos, pelo que não fizemos, pelo que não sentimos e, em oposição a isto, pelo que dissemos, fizemos e sentimos!

 

Por um momento a nossa vida para. Enquanto o corpo desce, sustentado por cordas que seres humanos seguram entre as mãos e alternando forças o deixam descer, enquanto não vêm outros com pás colocando ou repondo a terra que os seus corpos há-de cobrir, visita-nos um sentimento estranho de tomada de consciência: então era para isto que estávamos destinados?! Qual é agora a surpresa? Estávamos fartos de o saber, durante anos sabíamos e soubemos que um dia isto ia acontecer, mas acreditávamos que quando isso fosse já estaríamos, ao menos moralmente, preparados! Como se isso fosse possível!

 

Hoje, enquanto o canto gregoriano ecoava na igreja de Santa Clara, presentemente em obras de restauro, eu procurava nos bolsos do casaco um qualquer objecto que, junto consigo, o fizesse acompanhar ao Paraíso. E perguntava-me: o que diria Deus quando o senhor lá chegasse? Bateria por certo à porta antes de entrar, como ditam as regras da boa educação, até aí eu sabia, mas que diriam do outro lado? “Sim, entre!” ou apenas “Sim!” Entraria o senhor neste segundo caso ou aguardaria que de forma explícita lhe fosse concedido entrar ou ainda, dizendo melhor, que oficialmente se formalizasse o convite?

 

Bem sei, não passam de pormenores estas minhas questões, mas os dois sabemos como elas ou a resposta a elas é importante no estabelecer e desenvolver das relações humanas! Concordará talvez comigo se eu acrescentar: a pobreza das relações humanas!

 

“Sim, entre!”, é qualquer coisa que se diz quando se está seguro e se não teme qualquer invasão de privacidade por ela estar assumidamente bem guardada! Já o simples e isolado “Sim!”, reflete alguma insegurança no pronunciar de quem o diz e deixa algum constrangimento em quem espera do outro lado pela resposta. Instala-se a dúvida: devo ou não entrar!? E neste silêncio que dista a pergunta da resposta passa, às vezes, inutilmente a vida!

 

“Sim, entre!” É a única coisa que nos devia ser permitido dizer a quem tem a confiança de nos bater à porta. Nunca é atrevimento bater, mas sempre será arrogância o não permitir entrar.

 

Se a questão é ou foi de atrevimento, teremos depois tempo de o analisar! No momento, devemos ter abertura para receber seja o que for ou seja quem for que se nos dirije porque devemos por sempre a hipótese que a pessoa que o faz, pode precisar de nós e nós estamos cá também para isso ou deveríamos estar.

 

Mas falamos de Deus, um ser que não é terreno, do qual nem sequer sabemos se tem sentimentos posto que na ausência de um corpo, com que sentirá ele? Com o Espírito, o Santo? É com o espírito que se sente e que se tem as emoções? Na verdade Ele não precisa disso para nada! E pode perfeitamente bastar-Lhe a percepção dos sentimentos porque as pessoas que são muito inteligentes conseguem substituir umas coisas pelas outras e dar-lhe a mesma finalidade. Nem sempre nem nunca! Em tudo há excepções!

 

Mas, dizem as más-línguas, que Ele gosta de ser avisado e saber quem está, antes de abrir a porta.

 

Ironia das ironias, para não dizer injustiça consumada! Ele que sempre surge do nada, a todos nós, sem aviso prévio, sem consulta, sem perguntar se pode, sem as melhores notícias! Toma-nos de assalto, ceifa-nos a vida e da vida, não nos dá uma segunda oportunidade, não nos perdoa nem mesmo quando lhe suplicamos, não nos ouve quando imploramos, não nos estende a mão quando choramos ou a seus pés nos ajoelhamos e quer educação e respeito da nossa parte!? Então não é com o exemplo que se ensina? Não é dando-nos ao respeito que somos respeitados? Sim, o Todo-poderoso pode dar-se a estes luxos, mas está na nossa liberdade poder julgá-Lo, ou não! Quem é que Ele pensa que é, acaso Deus?! Quem faz Dele isso? Nós, sem nós Ele não é ninguém! E é esta lógica universal que é toda como nossa!

 

Perdoe-me estes devaneios, afinal é do dia do seu funeral que estou a falar, mas o senhor conhece-me e sabe que não é por mal, começando a pensar nem os tambores africanos me impedem o concluir das coisas ainda que, nas mais das vezes, isso não seja de todo sinónimo de ter encontrado a verdade ou nem sequer de seguir uma lógica ou até de ser racional! Dedução apenas, associação de ideias, como quem instintivamente come cerejas, umas atrás das outras, mas que só decidiu comer a primeira!

 

Estranhei o facto de que, enquanto o caixão descia, eu não sentir qualquer remorso ou inquietação por não cumprir com o seu último desejo, do qual eu era o único e fiel depositário e com documento escrito! Ao contrário, senti uma espécie de libertação ao ter consciência de não poder decidir sobre a minha vida, mas poder fazê-lo sobre a sua morte! E a circunstância foi exactamente esta: que diferença é que isso faz?! As promessas têm, ou deveriam ter, garantia vitalícia e, com tudo o que estava a acontecer, eu não sentia que se tratasse de nada disso!

 

Ainda que de início a ideia me tenha parecido perversa, como se de alguma forma eu me estivesse a apropriar de uma coisa que não era minha, embora o caso fosse apenas o tratar-se do manifestar de uma vontade, instantes depois ignorei-a com uma facilidade e ligeireza que de novo me preocuparam e perguntava-me intimamente: o que diabo se passa comigo para não dar importância nenhuma àquilo que, em determinada altura, me chegou a parecer um elogio que, vindo de si, contava sempre a dobrar! E foi crescendo em mim um sentimento estranho a que não sei dar nome, que vacilava entre a indiferença e o desprezo, mas que não era nem uma coisa nem outra porque eu seria incapaz das duas! Seria?!

 

Quando dei por mim estavam já as pás a alisar o terreno, o Sol estava forte nesse dia e eu senti uma tontura tão aguda que teria mesmo caído ao chão, no mesmo que o cobria, não fosse alguém que reparava em mim ter-me segurado com firmeza pelo braço! Demorei anos a compreender a sua atitude e não me refiro a uma em particular ou isolada, refiro-me à que tinha perante a vida!

 

Passa também por aí ou sobretudo por aí este sentimento anacrónico que hoje me invadia. Em determinada fase da nossa vida temos absoluta necessidade de que os outros nos compreendam, para aprovar depois, os nossos actos, mas não é absolutamente necessário que assim seja!

 

É no dia, exactamente no dia, em que prescindimos disso que se torna em nós claro a gratuidade com que até aqui vivemos! Dar satisfação de quê, a quem? Nunca isso nos foi claramente pedido e, ainda que o tenha sido, porquê? E, sim, levo ao limite, ainda que tenhamos uma qualquer necessidade inexplicável de responder a isso, para quê?

 

Foi isso que eu hoje percebi enquanto o que agora morto se substituía ao que foi vivo em si! A morte de um Deus! Parasita em todos os sentidos!

 

Esta mudança de estado físico foi-se entrando em mim numa permeabilidade que por certo eu permitia, mas da qual não me dava conta. Dou-lhe agora conta disso a si, embora em mim eu tenha a dúvida com que sempre ficarei de se isso adianta alguma coisa para o bem entender das coisas! Dessas e de outras, posto que agora me refiro a todas! O senhor tinha a resposta a isto e nunca ma fez saber, esperou que fosse eu a descobri-la para que não pudesse esquecê-la. E, sei agora que teria sido importante na altura tê-la comigo quando não a tinha e que agora, que a tenho, não me faz diferença nenhuma!

 

Chegámos a horas diferentes ao mesmo sítio, porque partimos de pontos diferentes, talvez até do mesmo ponto, mas de outro pressuposto!

 

Tenho hoje como verdade, nunca absoluta porque a isso me não atrevo, de que o presente nunca será vivido no tempo certo, adequado ou ajustado a ele, porque a realidade nunca a esse tempo é conhecida! Vagueamos entre o extremo do que queremos e aquele do que nos achamos com direito a ter e nunca, é verdade isto, conseguimos determinar o tempo, o espaço e com quem isso pode acontecer! Dá pena, anos depois, ver essa verdade surgir à nossa frente quando já não podemos fazer com ela nada!

 

O corpo dentro do caixão desceu às profundezas da terra e não tive ocasião de lhe dizer em vida, embora as oportunidades não faltassem, de que o que queremos, sentimos e desejamos está sempre aquém da nossa realidade física!

 

Há certamente uma forma, um como e um tempo certos para isso, e nunca poderei compreender como tão sábio que era e foi, o senhor nunca conseguiu encurtar a distância, travar o momento, indicar-me o caminho, dizer-me por onde eu devia ir ao meu encontro! Não o sabia!

 

A desilusão está aí.

 

Paz, neste dia, à sua alma.

 

Do seu para sempre amigo

José Francisco

 

 

 

 

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