Quem conta um ponto...
342 - Pérolas e diamantes: O admirável mundo liberal… e outras tretas
É num sistema económico admiravelmente liberal que uns quantos acumulam fortunas consideráveis enquanto outros, muitos outros, apodrecem no desemprego e na miséria.
Esse liberalismo económico, acompanhado por um sistema sexual perfeitamente liberal, é a extensão do campo da luta a todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade.
Perplexos? Pois não devem ficar já que é essa a “Extensão do domínio da luta” de Michel Houellebecq, no seu primeiro romance, agora editado em Portugal.
Essa é a odisseia de um informático de meia-idade que observa os movimentos humanos e as banalidades que se desenrolam nos cafés bares ou em desinteressantes reuniões de trabalho. É aí que ele elabora uma teoria completa sobre o liberalismo, seja ele económico ou sexual.
No fundo, é um romance de falhados e abandonados responsáveis por elevarem a rotina a modo de vida.
Logo no início, o seu herói luta contra a ideia de ser paspalho por ter de admitir que perdeu o carro. Ele sabe que, a partir desse momento, passará a ser considerado anormal, ou fantoche. O que redundaria em nítida imprudência. O seu software não está preparado para isso.
Entretém-se então a escrever diálogos entre animais, onde se aprende muita coisa, nomeadamente sobre vacas bretãs.
A vaca bretã, por exemplo, ao longo do ano não pensa senão em pastar. O seu focinho brilhante sobe e desce com uma regularidade impressionante… “e nem um tremer de angústia lhe vem perturbar a expressão patética dos seus olhos castanhos-claros”.
No entanto, em determinados períodos não especificados, uma espantosa revolução ocorre no seu ser. “Os seus mugidos intensificam-se, prolongam-se, a sua própria textura harmónica modifica-se até relembrar, por vezes, de maneira espantosa, algumas queixas que escapam aos filhos do homem. Os seus movimentos são mais rápidos, mais nervosos, por vezes assume um trote curto.”
E o que pretendem as vacas bretãs? Pois, “encher-se”. E os criadores enchem-nas, “mais ou menos diretamente; a seringa da inseminação artificial pode, de facto, se bem que às custas de algumas complicações emocionais, substituir, nesta função, o pénis de um touro”.
Depois o animal acalma-se, regressa ao seu estado anterior de “meditação atenta, pois, após este feito, alguns meses mais tarde, dará à luz um esplendoroso pequeno vitelo. O que é, diga-se de passagem, benéfico apenas para o criador”.
Houellebecq tem razão: “A escrita não alivia nada. Traz à memória, delimita. Introduz uma suspeita de coerência, a ideia do realismo.” É como quando nadamos, que a cada movimento que exercemos nos deixa mais perto do afogamento.
De facto, mais vale observar sapateiras a trepar umas por cima das outras dentro de um aquário de uma marisqueira, prontas a ser consumidas.
E o mundo lá se vai uniformizando. “Os meios de telecomunicação progridem; o interior dos apartamentos enriquece-se com os novos equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis (…) O terceiro milénio promete.”
Esta mediocridade é penosa. Boa vida e repleta de qualidade e interesse é a dos quadros superiores. Uns gostam de ténis, outros apreciam a equitação e muitos são praticantes de golfe. No entanto, enquanto uns “são doidos por filetes de arenque; outros detestam-nos”. Apreciam ter “os pés enraizados” em “espessas alcatifas cinzento pérola”. E os escolhidos anunciam-nos, através de um graffiti: “Deus quis desigualdades, não injustiças”.
De facto, o terceiro milénio promete.
João Madureira