O Factor Humano
10 contos de reis - sem notas - 5
Sobre o amor
Era uma enfermaria daqueles tempos, ampla e com grandes janelas, rasgadas na parede voltada para o sul. Várias camas, muita luz. Ala de mulheres, mais convívio do que intimidade.
Estava no começo da carreira e transbordava de entusiasmo humano. Gosto em ouvir cada história, atento a cada novidade clínica.
Chamou-me em especial a atenção, um velhinho digno, quase sempre sentado ao lado da cama da sua mulher, internada há vários dias, com uma trombose extensa. Aí permanecia horas, pegando-lhe na mão com ternura e aconchegando-lhe a roupa da cama. Por vezes monologava com ela, sem certezas de ser escutado, menos ainda compreendido.
Todos os dias explicitava, com palavras simples mas de forma nítida, o desejo de levar a esposa para casa, mal fosse possível: " Não quero que a minha mulher fique no hospital, nem mais um dia do que seja preciso".
Não era a postura mais comum nestas situações, menos ainda da parte de um homem. Não havia filhos, nem outros familiares próximos.
Entre nós comentámos o caso, com admiração e com respeito.
Nessa mesma enfermaria, no canto oposto, estava internada uma senhora, ainda na casa dos 50, segundo informava o bilhete de identidade. Era um caso típico de grande discrepância entre a idade aparente e a idade real. Mantinha o hábito de se pintar e de se maquilhar, insistindo em tentar disfarçar a tragédia que a destruía: insuficiência cardíaca em fase terminal.
Naquela época, o meu papel profissional era considerado menor, o que me dava alguma liberdade de tempo e de conversa.
Esta senhora pagava uma factura de uma vida difícil, de prostituição, na parte antiga da cidade. Muito tabaco, muito álcool, muitos excessos.
Tinha um sorriso que desarmava, mesmo quando faltavam à maioria dos dentes. Dei por mim a elogiar a dedicação do velhinho que acompanhava a mulher em coma. Confidenciei-lhe a sua vontade de acompanhar a mulher em casa. E de como me surpreendia uma tal dedicação. Respondeu-me num tom genuíno, que não deixou margem para quaisquer dúvidas, sobre a veracidade do que dizia: "Sempre foi assim doutor, mesmo quando ia ter comigo, era sempre dela que falava com carinho e com respeito".
Morreu, três dias depois, de me ter contado esta história.
Manuel Cunha (Pité)