Chaves D'Aurora
- CARITÓ.
Quando Aurora fez 20 anos, a ausência de um rapaz de boas intenções em sua vida começou a preocupar os pais, além de chamar a atenção dos parentes, aderentes e meros conhecidos. – Te cuida, Aurita, olha que vais acabar ficando pra tia – ou, como dizia Mamã, à moda de sua terra natal – Vais acabar no caritó – o que em Tupi, língua dos índios brasileiros, vem a ser “uma gaiola para os pássaros”, mas na linguagem popular significa “ficar solteirona”.
Ora pois, engaiolada era a vida de muitas senhoras flavienses que, em rodas de chá, a degustar os pastéis de bacalhau e as bolachas de nata, repetiam, a suspirar, as frases recolhidas de algum desconhecido – “Ai-jesus, que o casamento vem a ser mesmo uma prisão! No início, um doce cárcere; alguns anos depois, uma clausura à qual ele e ela, no dia após dia, acabam por se habituar; já nos anos finais, é um porão sombrio e húmido, masmorra onde só as mágoas e queixumes servem de lenha para aquecer o frio”.
A tudo isso, porém, Mamã contestava – Pois eu e o meu Reis, embora não tanto como El-Rei Dom Manuel I, estamos sempre venturosos.
Diante de tais falatórios, Aurora se constrangia e tentava dar atenção aos possíveis pretendentes. Em belos papéis coloridos, circundados por figuras de flores ou anjinhos a tocar flauta, trocava cartas com aquele que estivesse na vez de um pretenso namorado. Não eram cartas portuguesas tão belas, como as de Soror Mariana Alcoforado, mas, nas suas, punha-se a transcrever, com sua perfeita caligrafia, versos de João Ruiz Castelo Branco:
“Senhor, me partem tão tristes
os olhos por vós, meu bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém”
Nem essas líricas palavras poderiam, no entanto, expressar o que de facto lhe ia n’alma. Carências, latências, vazio. Acabava por ocorrer, afinal, que qualquer Hans sem Gretel que se perdesse em seu bosque, a bruxa loura deitava ao caldeirão em poucos dias. Ainda por cima, pedia de volta suas cartas com florezinhas, anjinhos, versinhos e o mais.