Chaves D'Aurora
- PRETENSORA.
Aldenora valeu-se do pretexto de ir até ao irmão, a perguntar de que riam tanto e nem ao menos se deu conta de sua tamanha ousadia. Estava a sair do grupo de raparigas e a se fazer intrusa no restrito e tradicional espaço masculino. Tal ato, certamente, poderia causar maledicências às suas costas ou, até mesmo, redundar-lhe em um baixo conceito social. O estratagema deu certo, no entanto. Afonso apresentou a irmã a António Sidónio e os pombinhos logo se viram a sós. Após um pequeno iceberg de titânico silêncio, os barcos de cada um singraram as águas aquecidas pelo mútuo encanto e, de imediato, puseram-se os jovens a palestrar, com as bocas e as palavras soltas, a deixarem fluir o que, antes, a timidez dos olhos apenas esboçara.
Enquanto alguns miúdos, como inoportunas osgas ou lagartixas, passavam aos corre-corres por entre o jovem e a bela rapariga, antes que seus papás respetivos lhes aplicassem uns generosos cascudos para se aquietarem, Nonô punha-se a trocar com Sidónio algumas ideias de interesse mútuo. Os breves instantes (assim diria o rapaz a Afonso, mais tarde) foram suficientes para lhe revelar que a menina era dotada de um admirável lustre intelectual. Esse era um dote incomensurável, mais raro do que a simples beleza, pois, ao contrário desta, não era fácil encontrar amiúde, entre as arcas de enxoval das jovens flavienses, um mínimo de erudição.
Ao contrário de Aurora, com sua paixão e sensibilidade à flor da pele ou, conforme já mencionamos, a sentir pela cabeça e a pensar com o coração; diversa de Aurélia, que não queria crescer nunca, feito um Peter Pan de saias; e posto que Arminda ainda estivesse a se pôr, para que dela já se pudesse analisar o jeito de ser; Aldenora era de uma personalidade forte e determinada, especialmente nos modos de controlar suas ações e emoções e de conciliar pejos com desejos. Quando percebeu que já estava a conversar mais tempo do que devia com o jovem Sidónio, pediu licença e voltou ao sítio das meninas. Não tivesse o rapaz um mau juízo dela, menos ainda se ele a comparasse a essas estrangeiras do novo século, a que tanto o Papá costumava aludir, após a ceia.
Era sobre isso, a uma outra roda formada por respeitáveis cidadãos de Chaves, que João Reis estava a comentar, naquele exato momento, com base no que estivera a folhear em um jornal do Porto. Exaltava-se – O que estão a querer, por certo, essas raparigas libertinas a fumarem, beberem e de tudo falarem às escâncaras, como os homens? Alcançar que elas venham a ser iguais a nós, ou, o que seria uma tontice bem pior... superiores?! – ao que outro convidado concordava – Uma imoralidade!!! – e outro mais suspirava – É, desses modos e feitios, para onde vai este mundo?! – uma vez que se fazia questão, ora pois, de se preservarem na Vila as boas tradições e os bons costumes.
Eram, certamente, posições avessas aos ares de liberação desses anos 20, quando se iniciavam tantos avanços femininos que, por algumas mulheres carismáticas, em suas reflexões sobre a vida e o modus vivendis, seriam defendidos em várias partes da Terra. Com o seu livre pensar e agir liberto, algumas se tornariam famosas nessa década, como Dorothy Parker, Anaïs Nin, Zelda Fitzgerald, as brasileiras Pagu e Chiquinha Gonzaga, a mexicana Frida Kahlo e, entre as portuguesas, a alentejana Florbela Espanca. Decerto que, a seguirem os passos de tais pioneiras, tais ventos libertários estariam ainda muito longe de arejar por aquelas paragens trasmontanas.
Ao resto da noite, não deixaram Aldenora e Sidónio de se entrecruzarem as pupilas e, com elas, exibirem um brilho especial de encantamento. Recíproco, pois. Quando, à hora de se fazer um brinde ao aniversariante, os dois ficaram lado a lado, por alguns instantes, com suas mãos a se roçarem levemente, ele murmurou – A que missa vais, aos domingos? – Sem lhe ver a face, ela sussurrou – À do meio-dia, na Santa Maria Maior.
Igreja de Santa Maria Maior. Postal público. Autor desconhecido.