Chaves, cidade, concelho e região - Uma foto por dia
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XI
O ser humano é versátil e inverosímil, se calhar quanto mais a primeira, tanto mais a segunda! Se esta história se tivesse passado com um amigo meu, mesmo de infância e íntimo, eu achava que ele me estava a contar isso mesmo: uma história, mas passou-se comigo. Só a posso escrever porque se a contar a alguém, as pessoas vão pensar que eu estou a contar uma história e não é disso que se trata.
A gaja não batia com o baralho todo, embora eu nunca percebesse qual era a carta que lhe faltava, decididamente o Ás de copas não estava lá, mas havia muitas outras.
Na primeira noite que passámos juntos avisou-me, antes de adormecer, que no dia seguinte tínhamos de acordar cedo, 8h30, porque tinha um jogo de badminton. Concordei, achando que aquilo era uma brincadeira porque a menina era divertida que chegasse para dizer coisas deste tipo.
No dia seguinte acordo com o despertador, por estúpida coincidência, à hora exacta que ela me tinha avisado. A menina salta da cama para a banheira sem hesitação e eu percebo então que, afinal, era a sério. Tentando não fazer um drama e aproveitar o bom das coisas más, comecei a pensar que roupinha ela iria vestir! Se uns calções brancos ou aquelas sainhas às pregas, lisas à frente e de trespasse, muito curtas em que se vêem as cuecas quando apanham as penas. Depois pensei se vestiria collants transparentes ou meias até aos joelhos e excluí rapidamente as duas hipóteses pensando que o estilo dela se encaixava muito mais nos soquetes com uma ou duas riscas cor-de-rosa. Depois pensei no cabelo. Será que leva totós ou vai meter uma faixa de feltro elástica na testa como os jogadores profissionais?
- Ainda aí estás? Despacha-te, não posso chegar atrasada, o meu parceiro não joga sem eu chegar!
Que cabeça a minha! Nisto dos desportos a dois, não se pode nem faltar nem chegar atrasado porque a prática de um depende da presença do outro. Havia de me explicar isto um dia, muito mais tarde, quando eu tive o atrevimento de lhe dizer que, uma vez por outra, se calhar, podia faltar para estar mais tempo comigo. Como é que eu lhe podia pedir uma coisa destas! Eram práticas muito antigas, faziam parte da sua vida!
Ela tinha uma capacidade inédita de me dizer de mil e uma formas que eu não fazia parte da sua vida, que a nossa relação não era uma prática a dois e por isso podia-se faltar e chegar atrasado, sempre.
Por exemplo, um café depois do almoço era com frequência sinónimo de tomado às 6h da tarde e eu tinha de a receber com um sorriso nos lábios, não pude vir antes ou atrasei-me um bocado, era só o que dizia. Claro que pedia desculpa baixinho, num timbre quase imperceptível.
Eu aguentava aquilo tudo num exercício de testar os meus limites ou o quanto gostava dela, ou as duas coisas.
Quando se chega a este ponto, está-se completamente perdido! Eu estava assim, sabia e não mudava nada para ser diferente. Sabia que se mudasse uma vírgula, a perdia para sempre e eu isso não suportava sequer pensar quanto mais arriscar.
Acabei por me levantar da cama e não assistir ao ritual de a ver vestir porque não havia tempo, era domingo de manhã e ela não se queria atrasar
Dirigiu-se então à cozinha para tomar o pequeno-almoço, leve por causa do jogo, chá e torradinhas com pouca manteiga ou bolachas, não me lembro bem. Sentou-se calmamente, como se tivesse acordado de uma noite perfeitamente normal e fosse para o trabalho, um dever a que não podia faltar. É claro que educadamente me perguntou o que é que eu queria tomar: nada, obrigado.
Aquela negação funcionou para mim como a defesa da honra, nunca saberei explicar isto, mas naquele momento se me tivesse sentado à mesa com ela a tomar o pequeno-almoço era o mesmo que ter aceitado uma nota pelos serviços prestados. Fiquei ali sentado a olhar para ela, surpreendido com a agilidade daquela rotina. Nenhuma referência à noite que tínhamos acabado de passar juntos e que, pelo menos comigo, era a primeira vez que ela tinha dormido.
Enquanto ela se alimentava com aqueles vulgares nutrientes, a mim só me vinha à cabeça o exacto momento em que o meu corpo foi projectado para fora do sistema solar, em que senti visceralmente o perder da gravidade, o sair da órbita, no preciso instante em que o meu corpo deslizou no dela e a palavra fi-nal-men-te, entrecortada, era deglutida e saboreada e deixei completamente de sentir o meu corpo para só sentir o dela, numa comunhão de corpo, o dela, e alma, a minha.
E quando instantes depois não resisti e quis partilhar com ela este momento, a meio do êxtase com que estava na descrição, ainda no recobro das forças, ela interrompeu-me dizendo, com um ar condescendente:
- Pronto, está bem.
Como quem diz, poupa-me os detalhes! E eu calei-me e fiquei a sentir sozinho o que podia ter sido a dois, mas se ela não queria saber, que direito era o meu de lho impor?
As pessoas têm sempre uma razão oculta para fazerem o que fazem e era este o princípio que me regia para eu ultrapassar tudo e não lhe levar nada a mal, pelo menos enquanto isso me fosse suportável.
Quando se gosta muito, adia-se isso ao limite, embora ele chegue inevitavelmente. Fica por saber se quanto mais tarde melhor ou pior. Isso, nunca havemos de o saber, não temos termo de comparação ou referência para isso, é simplesmente a nossa vida.
Depois do pequeno-almoço ofereceu-se para me dar boleia, uma vez que a minha casa ficava a caminho do complexo desportivo para onde ela se ia dirigir. Aceitei. Quando cheguei a casa enfiei-me na cama e dormi aquilo a que se chama o sono dos justos. Nunca percebi muito bem este conceito, mas acho que é aquilo a que se chama quando um gajo depois de uma noite mal dormida se enfia na cama enquanto a namorada vai jogar badminton!
Namorada é uma forma de dizer! Eu pertenço àquela cambada de otários que quando andam com uma gaja com quem têm uma relação mais íntima pensam que a podem chamar assim.
Cristina Pizarro
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Obrigado pela gentileza. Forte abraço.João Madurei...
Boa crónica.
Parabéns!Revivi o que já não via há muito tempo......
Linda fotografia.E aqui está bastante frio, também...
Bom pensamento.Mas é mesmo assim e espanta que a n...