XX
Acordei num hospital com o diagnóstico de ataque de pânico, eu que nunca tinha sabido o que aquilo era, apesar de já ter ouvido falar inúmeras vezes, tanto em adolescentes, filhas de amigos meus, que tinham perdido o ano escolar por causa desta coisa, como em gente adulta, moderadamente equilibrada, o suficiente para eu falar com ela sem dar conta de nada e agora estava ali, na cama de um hospital e o médico a perguntar-me: Então, conte lá o que se passou! E eu a olhar para ele e a pensar que, em circunstâncias idênticas, talvez o médico, na idade dele, não tivesse resistido e em vez de ter um colega à frente a fazer aquela pergunta, talvez ela fosse ligeiramente diferente, talvez no caso dele encontrasse um guardião de asas brancas a perguntar-lhe: Acha que está preparado ou prefere estagiar algum tempo no purgatório? Sim, com a sua profissão e a exercê-la durante tanto tempo deve, com toda a certeza, ter mandado alguns para o galheiro por negligência! E como eu não respondia, posto que me mantinha em silêncio e para ele isso não era uma resposta, insistiu, modificando ligeiramente a pergunta: O senhor lembra-se do que aconteceu?
Um não era perfeitamente pacífico, servia as duas partes. Mas eu naquela altura já tinha o cérebro descongelado, disponível e funcional e comecei a pensar que se o médico achasse que eu tinha tido um episódio de amnésia, ainda que ligeiro ou momentâneo, ia enfrascar-me de medicação, perfeitamente escusada.
Sorri. Quebra de tensão, já me aconteceu mais vezes, perante alguma emoção.
O médico sorriu de volta. Havia no seu sorriso um misto de cumplicidade e comprometimento. Ele era casado, eu não. Bem sei, preconceitos. Dele, não meus. Ele corou e escondeu a mão onde tinha a aliança, eu não tinha nada para esconder. Aliás, tinha imensa coisa para esconder, mas não a exibia nas mãos, fingindo ser uma coisa e sendo outra. Juízos de valor, talvez, que atire a primeira pedra quem os não faz!
Depois de uma noite em observação, na sala da urgência, deram-me alta: O doente está estabilizado.
Claro que a avaliação era meramente física, melhor dizendo, orgânica. As análises efectuadas estavam normais, isto é, dentro do intervalo de valores apresentado pela população estudada, saudável, com peso e estatura normais, atendendo à idade e ao sexo. Tenho de especificar que neste conceito de população saudável, não entra a definição de saúde da OMS: não apenas a ausência de doença, mas o bem-estar físico, psíquico e social. Eu só respeitava o primeiro, sendo tolerante, o segundo também seria satisfatório, mas no que dizia respeito aos dois últimos, as condições não eram minimamente satisfeitas. Também não era no serviço de urgência que a coisa podia ser avaliada. Isso não corria no sangue, não se eliminava na urina, nem no esperma, nem no suor, nem no ar expelido pelos pulmões. Nenhum dos dois dá sinais exteriores suficientemente visíveis para que possam ser facilmente avaliados.
Fui para casa. Não sei o que me incomodava mais, se o diagnóstico de ataque de pânico, se a imagem impensável daquele quarto de hotel. E as palavras, outra vez, que não me saíram! Desta vez dava graças a Deus por isso! O que é que se pode dizer numa situação destas! Qualquer palavra é demais, qualquer silêncio é de menos!
Como é que eu nunca dei conta! Na minha cabeça o turbilhão de pensamentos e emoções fervilhava. De tudo o que me vinha à cabeça, o ter sido enganado era o menor dos males. Não tinha sido ela a enganar-me, tinha sido eu a enganar-me, deliberadamente, por excesso de sentimentos, por amor, por paixão, por dádiva, por entrega, por gratidão, por dedicação. Engana-se quem quer e eu tinha querido com unhas e dentes. Com toda a minha força, com todo o meu poder, com tudo o que era eu.
Mas ela não tinha querido. O que é que se pode fazer quando uma pessoa não quer? Nada, rigorosamente nada! E vinha-me à cabeça a frase do meu avô materno que não cheguei a conhecer: Até para cagar é preciso vontade!
E era isto o que me desmembrava, eu não ter conseguido despertar nela o desejo de me querer. E perguntava-me porquê! O que é que eu tinha ou o que é que eu não tinha!
Se fosse mais novo, podia alimentar-me a esperança de que, quando fosse mais maduro, talvez adquirisse as competências que me faltavam, mas na minha idade isso já não fazia sentido.
Cristina Pizarro