Discursos Sobre a Cidade - Por Tupamaro
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“O lencinho dos Namorados”
Os anos eram os dos Cinquenta, do pós-Guerra.
A Srª. da Livração abençoava a Escola do Professor Monteiro e da D. Corinta, logo ali ao lado, mesmo em frente à porta principal, e o manto das paredes da sua Igreja cobria os afagos e os beijinhos dos enamorados quando, pela tardinha, vinham colher água na fonte, calhadinha logo à entrada do caminho para o Eiró.
O Professor Monteiro era dos rapazes. A D. Corinta, das raparigas.
O recreio era comum, mas havia uma fronteira invisível que raparigas e rapazes viam, nitidamente, não poder ser ultrapassada.
Contudo, antes da entrada e depois da saída, por aquela portinhola de ferro, não havia limites nem fronteiras.
Do lado de fora era zona franca, e os rapazes mai-las raparigas, nas cidades chamados meninos e meninas, e agora, no século XXI, chamados Jovens, misturavam-se ao balanço daquele vaivém de atracções que só as tardes da vida saberiam explicar e compreender.
Era prazenteiro, bom aluno, e o professor até o punha a ler os textos da Revista do SNI ou do Livro de Leitura, em pé, em cima do banco da carteira, na qual havia uma ranhura para o ponteiro, o lápis e a pena, de aparo nº2 ou nº4, e havia, também, na esquina direita da carteira, um tinteiro de esmalte….de um branco brilhante.
E elas formavam um grupo de colegas que o apreciavam.
Souberam do dia de anos dele.
Na «loja» da rua principal, antes de chegar à ponte sobre o rigueiro onde costuma ser instalado um S. Cristóvão grandalhão, com o Menino Jesus às carranchulas e uma cana de pesca armada com uma guita e um peixito raquítico pendurado na ponta, cada uma do grupinho comprou um lencinho bordado.
E no Largo da Srª da Livração, onde a canalhada dava largas à sua alegria de viver, jogando à macaca, ao eixo-baleixo, ao trinca-cevada, aos reis-e-rainhas, ou à pancada, no Dia de Anos, ele, o prazenteiro, recebeu três lencinhos bordados. Meteu um num bolso das calças, outro noutro bolso das calças e outro no bolso da blusa (agora chamada só camisa).
Estremecido, correu pela estrada de Sapiãos. Saltou um muro e vagueou por umas cortinhas. Parou junto de umas macieiras de onde se penduravam algumas maçãs raquíticas, mas perfumadas e gostosas. Nos ramos mais altos, os cascarrolhos fizeram ninhos. Trepou pelas macieiras acima a espreitá-los. Num ainda havia uns passarinhos de berço. Furiosos e valentes, os cascarrolhos – pais começam a fazer um barulhento chilreio dos diabos. Ganharam coragem e de voos rasantes passaram ao ataque dando umas bicadas no toutiço e nas mãos do mirone.
O rapaz dos Três Lencinhos saltou abaixo da macieira. E confuso pelos tremores das prendinhas e pelos temores dos cascarrolhos, continuou a vaguear pelas margens do Noro, sem saber lá muito bem porque se via à nora com a turbulência da sua cabeça e o galopar do seu coração.
Bem gostaria de ter um casaco par vestir no domingo e levá-lo à missa. E se ao menos o casaco tivesse três bolsinhos!...
Bem, mesmo com um só, talvez até fosse possível pôr lá os três lencinhos, nem que fosse só a ver-se o biquinho de cada um.
O amor não escolhe idade!
Tupamaro