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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

23
Out11

Treze Contos do Mundo que Acabou - As voltas que o mundo dá


 

 

 

 

Conto XII

As voltas que o mundo dá

 

          - Vinde ver um carro sem bois, que está lá baixo à beira do Santo!


As chispas daquele alvoroço rastilharam pelas ruas e canelhas mais depressa que as línguas do fogo lambem a agulheta ressequida pelo chão dos pinhais em Agosto. Daí a nada, quem não era manco corria caras ao fundo do povo com quanto fôlego as pernas podiam desgastar, antes que a estranha coisa sumisse ou a levassem de volta as artes do mafarrico. Embora, em boa verdade, não deixasse de causar estranheza que o chisme estivesse aparcado à sombra da capelinha do Santo, sendo que fosse cilada do tinhoso, que estas coisas, como se sabe, não costumam emparelhar…


          - Andai lá, desamparai-me a loja e deixai espaço para a manobra, que o recado está dado e a mim não me falta que fazer ainda hoje!

 


Era o vozeirão do Domingos Lomba a ditar sentenças, empertigado de prosápia, boina descaída sobre os olhos, camisa espeitorada, os braços arremangados de roda do volante e o pescoço torcido para trás, a medir a distância às pedras da parede, enquanto o escape arrotava a fumaceira negra da gasolina em que se empanturravam os cilindros do Prefect. Nunca antes ali tinha aportado semelhante coisa, e muito embora já todos tivessem escutado dizer que havia carros que não precisavam que os puxassem as bestas, contavam-se pelos dedos de uma só mão os que tinham posto os olhos num automóvel. Fosse como fosse, não cabia dúvida, era coisa bonita de se ver, apesar da muita poeira a deslustrar os cromados e um que outro buraco ratado no tecido puído dos estofos. Aquele era o primeiro frete que o Lomba fazia, desde que, aqui a atrasado, tinha ido ao Porto pelo carro - transportar a Berrande os cinco músicos galegos de Castrelos que a Comissão dos Solteiros chamara para animar o povo na festa do Santo, mais as gaitas de foles e o restante instrumental, como pertencia. Bem atacadinho, coube tudo, bem embora o bombo reboludo, de aduelas tamanhas como as de uma pipa, tivesse que ir amarrado na dianteira contra a grelha, de modo que o Domingos por diversas vezes, enquanto durou a viagem, se viu obrigado a verter uns canecos de água do regueiro no fervilhar esbaforido do radiador. Sobre a pele retesada do bombo, maçada de milhentas pancadas, avultavam escarrapachados em perfeita caligrafia uns dizeres a tinta azul, de roda de uma vieira peregrina - Gaiteiros do Camiño. A chusma de canalha que ali se juntou é que não quis saber de gaitas nem de gaiteiros e correu desaustinada, rodeira abaixo, atropelada pelo caincar desesperado dos rafeiros, a enfarinhar-se no polvorinho mágico que os rodados levantavam. Agora, que finalmente o espanto embasbacado cedia lugar à risada das mulheres e os mais entendidos na matéria até botavam faladura de assombrar os pategos, já os mordomos podiam dar ordem para os gaiteiros começarem a arruada. Pagara a pena, sim senhor, aquele desassossego no fim da manhã, e o mais certo era o senhor abade, que havia de estar a chegar para rezar a missa, falar do assunto na prática, mal acabasse de decifrar as leituras sagradas.

 

          A capela não tinha dentro espaço onde todos coubessem, mas a alguns menos devotos pouco se lhes dava ficarem em pé, arrimados às colunas do coberto exterior, que sempre estavam mais à larga e podiam continuar a alanzoar à boca pequena sobre o sucedido, e ao fim, cumpriam a santa obrigação como os demais.


          -Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, que padeceu por nós e foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia e subiu ao céu, onde está sentado à mão direita de Deus Pai, com a multidão dos santos, dos anjos e arcanjos de redor da Trindade Santíssima, viestes hoje aqui para honrar o divino arcanjo São Miguel, vosso padroeiro, guardião das almas e carrasco do ardiloso Belzebú, a quem Deus permite desde o princípio dos tempos a tentação dos homens, pobres mortais peregrinos neste vale de lágrimas, filhos do pecado que maculou a harmonia do paraíso terreal, a fim de que neles se possa operar o mistério da redenção, pelo qual enviou até nós o seu próprio Filho, para que a todos nos resgatasse das garras peçonhentas do pecado e nos fizesse partilhar da sua divina glória, até à consumação dos tempos …

 


O Ramiro, sentado cá fora num degrau do cruzeiro, estava em pulgas para ouvir o padre esconjurar um vade retro sobre o carro mais o diabo que o trouxera, e não parava de chiscar o Artur que arreguichava as orelhas para não perder pitada do sermão.


          - Esta conversa já nós a escutámos um cento de vezes… Será que ninguém lhe contou do carro do Lomba?!


          - Espera mais um cibo, escuta até ao fim. Não me finto que as bedeiras das mulheres não lhe tenham já levado a novidade. Até rebentavam, se lho não dissessem!


O certo é que o abade deu por terminada a prática, nos modos e responsos habituais, e nem no assunto tocou. Cá fora, entre a admiração e a desencanto dos que se sentiam defraudados, começava a debandada sorrateira muito antes do ite missa est.  Uns, porque tinham de ir espertar o forno para assar o anho, outros, porque ainda iam botar um olhinho às crias, rápido o largo de roda da capela ficou deserto que nem um final de feira, e só os que estavam dentro, mais por vergonha, que por devoção, mastigaram com impaciência o resto das jaculatórias num latinório mal engrolado, até desandar cada qual à sua vida, a dar conta do almoço melhorado.


          O padre Alfredo estranhou o desassossego das velhas, que não paravam de bichanar, mas não se deu por achado e breve despiu a paramenta e meteu pés ao caminho, direito a casa do Abel Tendeiro, a saber do rancho. Antes da missa já a Carminda lhe tinha lembrado que contavam com ele, se sua reverência fosse servido, como era de hábito nos demais anos.


          - Deus Nosso Senhor abençoe esta casa e todos quantos nela se recolhem. Cá me tendes, conforme o prometido, e olhai que trago fome!


          - Pois vem em boa hora, que acabo de tirar o cordeiro e as batatas loiras do forno. Faça favor de se sentar, que vou abaixo à adega por vinho, e já lhe faço companhia. Oh Carminda, chega-me daí a caneca de quartilho, que quero que o senhor abade prove do pipinho que incertei para a festa; ele depois me dirá alguma coisa…


Desafogou o pescoço papudo do sufoco da sotaina e amesendou-se sem mais cerimónia, e quando o Abel voltou com o vinho, já ele tinha lançado mão a uma tora de presunto velho, de onde a faca tirava lascas de um sabor capaz de quebrar a abstinência quaresmal a um santo.


          - Oh Abel, bota lá então um copo, que já estou a ficar embaçado de tanto comer sem beber nada. É do tal?


          - Beba mais outro, e diga-me lá se não é uma pinguinha para dar vida a um morto!? As uvas são de uma vinha que já o meu pai trazia sobre a Teixugueira, onde bate o sol de manhã à noite e não é tão atreita às geadas como as que são viradas ao povo. O presunto tem dois anos e é para se comer, que está no ponto, senão, quando tal, seca demais e já nem os dentes o rilham como deve ser.


          - Sim senhor, está tudo como pertence e Deus manda, mas ainda tenho que guardar fome para o cordeiro e para as batatas, que do jeito como a Carminda o prepara, não quero que haja segundo em toda a freguesia!


          - E o senhor abade que me diz do caso que sucedeu esta manhã? Por certo já escutou dizer que o Lomba apareceu aí montado num carro, creio que lhe chamava um automóvel profeta, atestadinho com os músicos e mais os instrumentos, e lá vinha na esgalha, rodeira acima, sem besta que o puxasse… Que lhe parece?


          - Automóveis, já há muito que os há na cidade, onde as estradas são mais a direito e o povo parece que tem mais pressa no que faz, agora lá isso do profeta só os que na Bíblia Sagrada anunciavam a vinda do Messias… Não será que o nomeou pela marca, que fosse um Prefect?


          - Decerto seria, mas ficou tudo assarapantado com a criatura e não faltava quem tivesse receio que fosse coisa do demónio… Estavam todos à espera que o senhor falasse na missa a respeito do assunto, mas como não disse nada, a maior parte ainda não está crente. Não seria pior, ao acabarmos de comer, o senhor ir por aí pelo povo e dizer umas palavrinhas que sossegassem mais a gente.


          - Se é essa a questão, lá farei como dizes. Para tudo tem de haver uma primeira vez. Vais ver que de ora em diante depressa se habituam, que o mundo, meu caro Abel, já dizia o sábio Galileu, é uma bola que rebola, sempre em constante movimento no relógio do firmamento, e a cada dia que passa traz sua novidade.

 


Conforme discorria sobre um mundo em mudança permanente, o padre Alfredo não achou melhor exemplo que a travessa do cordeiro posta no meio da mesa, por sinal com o naco mais apetitoso virado para o Abel, e botou-lhe ambas as mãos para a rodar, assim à moda de um globo terráqueo numa classe de astronomia, e deixar o melhor pedaço da carne mais a seu jeito.


          - Será como diz o senhor abade, que lá o lê lá o entende, e quem sou eu para dizer o contrário?! Mas, cá por mim estou em crer que o mundo, sendo assim redondo, tanto anda como desanda! – e deitando também as mãos à travessa girou-a de novo ao revés, de forma que o quarto do cordeiro voltasse para a beira dele…         

 

Herculano Pombo

 


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