Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

05
Abr12

O Homem sem Memória (96) - Por João Madureira


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

96 – Definitivamente decidido a dedicar-se à poesia, o José fez-se amigo de um grupo de gente que se dedicava a versalhar, comer e fornicar, muitas das vezes por junto, outras por atacado. E também jogavam copiosamente os jogos de azar na Sociedade Nevoense. Ou assistiam, como era o caso do filho do guarda Ferreira e da Dona Rosa.


Foi para as várias tertúlias de poesia, e de um ou outro festim libertino, realizadas nas casas das prostitutas mais afamadas da parte velha da cidade, que o José começou a ser convidado. A princípio pediam-lhe versos, mas ele dava-lhes retórica, emprestava-lhes alguma teologia de bolso e oferecia-lhes um que outro princípio filosófico desculpabilizante.


De dia dormia e escrevia. Ou fazia que escrevia. Tentou a poesia erótica, que para a ocasião que lhe tocava viver era a forma lírica mais apropriada. Leu, releu e reescreveu uma boa meia dúzia de sonetos malandros de Bocage. Apesar de procurar inspiração no célebre poeta, os sonetos saíam-lhe sempre muito desengraçados.


Ao erotismo conseguia chegar, mas a ironia e o sarcasmo é que lhe ficavam sempre no tinteiro. O José, como homem de fé que continuava a ser, porfiou, batalhou e tornou a batalhar. Copiou vezes sem conta o “Soneto de Epitaphio” e outras tantas transcreveu “O Soneto das Glorias Carnaes”. Mas se o plágio lhe saía em letra redonda, as tentativas de reescrita redundavam sempre em poesia erótica para eunucos ou freiras carmelitas de idade avançada.


Tentou recitar muitos dos sonetos eróticos do maior representante do arcadismo em Portugal. Com esse fim, copiou-os com a sua bonita caligrafia de menina e foi-os decorando um a um, numa tentativa de, por alguma acaso misterioso, misturar os versos e deles saírem novos sonetos que, sendo ainda de Bocage, pudessem ser também considerados seus, um pouco como a prosa de Maquet funcionou em relação ao êxito de Alexandre Dumas.


Mas, por mais que os recitasse e combinasse, dali nunca saiu nada de prestável. Muitas vezes comentou para o grupo de amigos: “E ainda dizem que a arte é noventa por cento de transpiração e dez por cento de inspiração. Eu farto-me de versejar e nada produzo de qualidade.”


Desiludido, seguiu o caminho que lhe indicavam os companheiros mais lúcidos: “Deixa de escrever, limita-te a recitar a belíssima poesia do mestre. Pelo menos por agora. Mais tarde logo se vê. E o que tem de ser será.”


O José assim procedeu. Fez a sua seleção, encadernou-a e apresentou-a aos colegas. Depois de uma aturada análise, aos dois poemas citados anteriormente, acrescentou-lhes: “Soneto do Membro Monstruoso”, “Soneto de Todas as Putas”, “Soneto da Donzella Ansiosa”, “Soneto da Cópula Esculpida”, “Soneto do Prazer Ephémero”, “Soneto Anticletical” (este não lhe deve ter dado muito trabalho a incluir na sua seleta literária por razões óbvias), “Soneto da Dama Cagando”, “Soneto do Caralho Apatetado”, “Soneto do Coito Interrompido” (que ele passou a dedicar sempre, entre sorrisos alarves e impropérios pecaminosos, aos casais de Nossa Senhora), “Soneto da Puta Novata”, “Soneto do Falso Milagre” e “Soneto Anal”.


Aqui está uma coletânea que, naqueles tempos de ditadura do Estado Novo, dava para meter qualquer rapaz atrevido nos calabouços da PIDE e para condenar um ex-seminarista às profundas dos infernos. No entanto nada disso aconteceu, pelo menos no que concerne aos calabouços da polícia política. Já o mesmo não podemos afirmar acerca dos calabouços do temível Belzebu. Mas pelo que rezam os evangelhos, de certeza que um blasfemo deste calibre para o céu não irá. Ora, por exclusão de partes, tirem os estimados leitores a respetiva conclusão.


Dava prazer vê-lo, em ambiente de sessão libertina e possuído pela alma e pela agitação da arte do mestre Bocage, recitar e ser aplaudido com frenesim, pelos cavalheiros mais ou menos distintos, todos eles eméritos representantes das forças vivas da cidade, e prostitutas, mais ou menos habilidosas, quase todas filhas do lumpen ou do proletariado.


Ele com a sua voz situada entre João Villaret e Ary dos Santos, recitava sem hesitar nem nas pausas, quando era de pausar, nem na leitura corrida, quando era de a correr, ou nos competentes saltos, quando era de a saltar: “Minhas senhoras (risos dos estimados cavalheiros), prezados cavalheiros (gargalhadas das distintas meretrizes), para todos vós “O Soneto das Glorias Carnaes”: “Cante a guerra quem for arrenegado, / Que eu nem palavra gastarei com ella; / Minha Musa será sem par cannella / Co'um felpudo conninho abraseado:” (Mais sorrisos dos estimados cavalheiros e gargalhadas das distintas meretrizes) // “Aqui descreverei como arreitado / Num mar de bimbas navegando à vela, / Cheguei, propicio o vento, à doce, àquella / Enseada d'amor, rei coroado:” (Tentativa de sorrisos da parte dos estimados cavalheiros, que, pelo facto de o serem, não pretendia significar que fossem cultos. Sorrisos largos das meretrizes, não por serem cultas ou entenderem o que o Bocage, por intermédio do José, queria dizer, mas por educação e por respeito por quem declamava) // “Direi tambem os beijos sussurrantes, / Os intrincados nós das linguas ternas, / E o aturado fungar de dois amantes:” (Sorriso intermédio dos cavalheiros, por mor das premissas anteriormente expostas, e gargalhadas das meretrizes por idêntica razão e semelhante esclarecimento.) // Estas glorias serão na fama eternas / Às minhas cinzas me farão descantes / Femeos vindouros, alargando as pernas. (Sorriso final dos cavalheiros e idem das meretrizes).


Depois comia-se e bebia-se, bebia-se e comia-se. E fornicava-se. Seguidamente voltava-se à forma anterior. Soneto, ou sonetos de Bocage; comida e bebida, fornicação. E assim sucessivamente até de manhãzinha.


Está claro que isto é muito mais fácil de escrever do que de praticar. Mas se o espírito era o que vos conto, já a prática ficou com cada um. E, como os estimados leitores sabem muito bem, uma coisa é a fama, outra, bem distinta, é o proveito.


Nestas coisas cada um que se amanhe. Pois eu não posso estar para aqui, por decoro e por educação, a explicar que o senhor fulano de tal ouviu dez sonetos, ceou três vezes e fornicou duas, enquanto o senhor beltrano de tal, ouviu metade dos sonetos, comeu o dobro das refeições e fornicou o triplo, ou que o senhor xis apenas se limitou a ouvir os sonetos, ou, ainda, que o senhor ípsilon unicamente ceou, ou, até, que o senhor zê fornicou, fornicou e tornou a fornicar porque tomou uma mezinha que um seu familiar, servindo no prestigiado exército colonial, lhe trouxe das províncias ultramarinas.


E por muito que me custe, e estou em crer que aos estimados leitores acontecerá a mesmo coisa, das prostitutas não reza a história. No entanto, desta história reza a parte final dos serões para cavalheiros e meretrizes. Nisso o José era fiel, pois terminava a sua récita sempre com o “Soneto do Ephitáfio”, dizendo, antes de proferir os versos do mestre Bocage, que se revia neles e que até gostaria que na sua pedra tumular lá inscrevessem o mesmo. Limitamo-nos a transcrever, para abreviar, o terceto final: "Aqui dorme Bocage, o putanheiro; / Passou vida folgada, e milagrosa; / Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".


97 – Quando se mistura a noite, com prostitutas, ...

 

(Continua)

 

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • FJR

      Esta foto maravilhosa é uma lição de história. Par...

    • Ana Afonso

      Obrigado por este trabalho que fez da minha aldeia...

    • FJR

      Rua Verde a rua da familia Xanato!!!!

    • Anónimo

      Obrigado pela gentileza. Forte abraço.João Madurei...

    • Cid Simões

      Boa crónica.

    FB