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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

29
Nov12

O Homem sem Memória (129) - Por João Madureira


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

129 – Mas o povo – qual vítima inocente do obscurantismo fascista que ainda se fazia sentir com o seu arzinho gelado do Larouco – não aderiu a tão grande ideia e resolveu fazer orelhas moucas. Por isso o José, mais a maioria dos seus camaradas, mesmo contra a sua vontade, tiveram de ir estudar. Não lhes restava outro caminho merecedor de ser seguido. A não ser que tencionassem dedicar-se ao exercício do operariado, coisa que, convenhamos, teoricamente até era sedutora, mas, na prática, fazia calos grandes e robustos.


No primeiro dia de aulas, um dos rituais que o José praticava com enlevo e prazer consistia em juntar-se à malta da sua turma e irem pedir horários pelas diversas livrarias da cidade.


O dia iniciava-se com a visita ao Liceu, onde se encontravam os colegas do ano anterior, se visualizavam os horários da turma colocados nas portas das salas e se preparavam as tesouras com que se faziam as coroas aos caloiros. O que resultava numa luta encarniçada entre os alunos mais velhos e os iniciados que choravam baba e ranho vendo-se impotentes nas mãos de uns jovens bárbaros e sedentos de vingança por aquilo que lhes tinham feito a eles nos momentos da sua iniciação estudantil.


Enquanto uns agarravam nos rapazes mais novos como quem agarra num cordeiro para o tosquiar, ou capar, o líder do grupo munia-se da sua tesoura das unhas e desenhava e cortava na coroa da cabeça dos mais pacatos, um círculo do tamanho de uma moeda de cinco escudos, ou, no cocuruto dos desconhecidos ou mais arrebitados, fazia surgir uma enorme coroa do tamanho da que Santo Antoninho exibia risonho no altar lateral da Igreja Matriz.


A seguir iam ao Faustino, ou ao Jorge, onde emborcavam cálices de aguardente ou jeropiga e fumavam cigarros avulsos, os chamados mata-ratos ou cabeça atada. Os rapazes mais ricos botavam figura chupando o fumo através dos filtros dos seus SG, Estoril, Três Vintes, Ritz, CT, Porto ou Negritas. E os remediados atreviam-se a comprar um macinho de Kentukys, Provisórios, Português Suave ou Definitivos, nas costumeiras casas de tabaco, tascas ou similares espalhadas pela urbe, e jogavam ao sapo enquanto falavam alto e se riam como tolos.


Por volta do meio-dia, iam postar-se nos bancos do jardim das Freiras, onde, por entre assobios, dichotes e piropos, galavam as miúdas mais jeitosas a quem, num dia de maior oportunidade, talvez se atrevessem a pedir namoro.


Muitos deles, por não fugirem a tempo depois do roubo de flores com que presenteavam as eleitas dos respetivos corações, chegavam a alombar com o cabo do ancinho do jardineiro efetivo que era mais raivoso do que um cão de quinta quando se tratava de defender as flores que alindavam o seu jardim e que tanto trabalho lhe tinham dado a plantar, regar e velar.


Mais lá para a tarde iam até ao picadeiro jogar à bola numa disputa que quase sempre – e não dizemos sempre para não nos acusarem de exagerados – acabava em batalha campal, onde se distribuía porrada indistintamente entre jogadores e assistência.


Jogo que não acabasse com umas canelas partidas e uns olhos à belenenses, não era jogo nem era nada. E tudo isto porque, como ninguém se oferecia para fazer de árbitro, pois os dois últimos tinham acabado no hospital com as costelas fraturadas e os respetivos narizes partidos, como se tivessem acabado de sair de um ringue de boxe, a missão ia sendo assumida pelos respetivos capitães, ou, quando já não era possível, por causa da efetiva e tenaz contestação da equipa contrária, o líder do grupo passava essa responsabilidade ao jogador que estivesse o mais longe possível do lance para assim servir de testemunha imparcial.


Toda esta situação era sustentável enquanto o resultado do jogo se mantinha empatado, ou apenas o marcador registava quatro ou cinco golos de diferença, mas quando a distância começava a ser superior, inviabilizando praticamente a recuperação, as faltas contra a equipa ganhadora tendiam a tornar-se permanentes, com os jogadores sempre a deitar-se ao chão, a ganir como cães pontapeados, a pedir falta atrás de falta, o que exasperava os ganhadores e, após mais um livre, menos um canto ou a marcação de outro penalti, que seguido de golo era golo, o jogo de futebol findava mesmo antes do seu término normal.


Depois da confusão, e das cenas de pancadaria, cada grupo rumava aos seus lugares de estágio – que eram quase sempre uma das muitas tascas e casas de pasto que pululavam pela cidade –, e aí comiam e brindavam à respetiva vitória, pois era certo e sabido que naqueles jogos entre equipas de estudantes dava-se sempre um milagre.


Nunca nenhuma das duas equipas perdia, o que até podia ser estranho mas não era impossível, só que o milagre residia precisamente em que triunfavam sempre ambas. Uma porque mesmo tendo marcado menos golos, ou os mesmos, eram eles todos legais (e o contrário para a equipa rival), e a outra porque, mesmo tendo efetivamente introduzido a bola mais vezes na baliza da equipa adversária, os golos que majoravam a contagem e definiam o autêntico vencedor, tinham sido marcados irregularmente, ou em fora de jogo ou precedidos de falta como uma casa, e por isso tinham sido penaltis, que mesmo falhados tinham sido golos à mesma, porque às faltas apitadas pelo putativo, e rotativo, árbitro de serviço ninguém tinha dado ouvidos e marcado golo, pois, como todos bem sabiam, penalti seguido de golo é golo (e o oposto para a equipa rival), ou coisa pelo estilo, pois a confusão era tanta e os respetivos argumentos a favor e contra tão diversificados e intrincados que atinar com alguma lógica era uma impossibilidade. O princípio era o da negação do capitalismo e da afirmação do socialismo: não a cada um segundo a sua eficácia, mas antes a cada um segundo a sua necessidade. Como todos precisavam teoricamente de golos para ganhar, cada um colhia-os onde queria, ou podia.


Descontados os golos irregulares, a conta batia sempre certa e a respetiva equipa podia assim arrecadar mais uma saborosa e árdua vitória (e o contrário para a equipa rival).


Mesmo que um jogo acabasse sem golos, o que muito poucas vezes acontecia, pois as caneladas eram imensas, os empurrões às centenas e os murros aos milhares, pois, como vos íamos dizendo, no final os guarda-redes pegavam nas bolas à sua guarda e, enquanto a equipa principal, incluindo os suplentes, as respetivas famílias e conhecidos, andavam à porrada até se cansarem, iam sorrateiramente pelas bordas do campo até à baliza adversária e marcavam três ou quatro golos sem ninguém ver, mas que efetivamente contavam, porque a bola tinha mesmo atravessado a linha de golo da baliza adversária (e o avesso para a equipa rival).


Que fosse o guarda-redes a marcar não interessava, pois os golos dos guarda-redes valem tanto como os dos outros. Essa é que é essa. E o invés para a equipa rival.

 

130 – O José, mesmo não tendo muito feitio para o futebol, não podia ...

 

(continua)

 

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