A Pertinácia
De caminho para Chaves começo a pensar: porquê morar em Chaves?
É terça-feira, um dia normal da semana, mas com a rotina matinal um pouco alterada. Já fiz parte das tarefas, mas ainda preciso de passar pela pastelaria e de meter combustível. Dou a volta ao quarteirão e paro mesmo em frente à pastelaria: “meia dúzia de pastéis de Chaves”. Aos 18 anos percebi que os tais pastéis com carne picada, que eu até nem apreciava muito, eram uma iguaria singular e típica da minha terra. O chamado “doutor”, que não era mais que um colega de curso mais velho, virou-se para mim e disse: “Caloira, sabe o que é um Chaves?” e eu pensei: “Cromo, os habitantes de Chaves são flavienses.” E pus a minha expressão típica de quem diz com uma abominável impaciência e saturação: “Lá vem mais do mesmo”. Então percebi que os “Chaves” eram os vulgos pastéis de carne. O bom de ir ao Hospital de Sto António, no Porto, é que passo à beira do antigo edifício da faculdade de ciências, onde tenho boas memórias. Bem que podia gastar o dinheiro que me vai custar a ida ao Porto para fazer algo mais prazeroso. Vejámos. Vou ao Porto ao hospital de Sto António, a uma consulta, mas tenho um hospital a dois passos da casa onde moro, contudo não tenho aí todos os recursos necessários para resolver o meu problema. Assim, tenho que faltar um dia inteiro ao trabalho, o que é desagradável para mim, para os patrões e para os colegas. Se fosse ali ao lado de minha casa, na pior das hipóteses, perderia apenas parte da manhã ou da tarde ─ mal menor. Depois, desgasto o meu carro, gasto gasolina e pago portagens… Fico cansada. A primeira vez perguntei ao médico que para lá me encaminhou: Sr. Dr. mas se vou fazer uma cirurgia ao Porto… há transporte? Há alguma comparticipação? Não havia, e podia ter ficado por ali com a conversa. Mas eu explanei bem o meu ponto de vista, argumentei, dissequei o problema e, uma vez que ele concluiu que era uma injustiça e a sua resolução estava para lá do seu alcance, decidiu que era inútil pensar em embrenhar-se no sistema e alterar decisões administrativas e burocráticas… decisões politicas… e soltou então esta pérola: “Ó menina, sabe que lhe digo: arranje um namorado – não lhe deve ser difícil – e que lhe dê boleia!”. Ora era o que mais faltava! Fiquei duplamente revoltada.
Já estou de regresso, de uma das já inumeraveis idas aquela instituição, onde também os especialistas técnicos e todos se queixam da inadequação e ausência de recursos e ferramentas de trabalho, mas onde, mesmo assim, em comparação com o nosso hospital é tudo mais sofisticado e a vontade de investigar e estudar é motivada pela proximidade com a ciência e com a tecnologia, com os centros de investigação e com as universidades.
Ligo o rádio. Está a ser transmitido o primeiro debate quinzenal de 2018 com o primeiro-ministro. Ao fim de algum tempo já estou saturada de ouvir Hugo Soares do PSD. O homem dá-lhe com o mesmo assunto, uma e outra vez: que Francisca Van Dunem disse, em entrevista, sobre a Constituição prever um mandato longo e um mandato único para a procuradora-geral da República Joana Marques. Será impressão minha ou estes indivíduos não sabem o que dizer? Pouco mais e já parece uma Assembleia-Municipal qualquer… fico farta, revoltada, às vezes os assuntos são tratados com uma leviandade como se qualquer um pudesse fazer política.
Estou no Alvão, é agora a intervenção da Catarina Martins, do nosso Bloco de Esquerda. Este é o ponto mais alto da viagem. Como de costume, o Bloco fez o seu trabalho de casa: estudou investigou, traz números e observações pertinentes. Vem falar dos problemas que afetam os portugueses no momento – oportunidade. As pessoas estão doentes e estão doentes porque têm frio. Há problemas na saúde, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não está bem e a EDP está praticar preços exorbitantes… as pessoas não podem ligar aquecimento, além disso a EDP anunciou que não pretendia pagar os 69 milhões de euros, devidos em 2017, pela Contribuição Extraordinária Sobre a Energia.
O Bloco fala com oportunidade e tráz dados. Fala das rendas excessivas da EDP e dos 385 milhões que o governo podia e não investiu no SNS. Eles sabem que o valor não foi investido e estudaram todas as fórmulas das finanças e economia que relacionam o défice a dívida e resultado: - eram possíveis as duas coisas, investir no SNS e melhorar esses indices. É o que importa esclarecer.
Costa responde. Costa diz que estamos no caminho. Costa diz que o mal vem de trás, que diabo, o mal vem sempre por trás ou de trás. Depois, já foi feito muito, contrataram-se técnicos, enfermeiros… Catarina disse que há os especialistas necessários para entrar mas estão à espera do ok das finanças. O Costa fala de décimas… e o meu carro deu-me o sinal cor de laranja, se a minha filha estivesse aqui até ela sabia: “Mamã tens que meter gasolina”.
A gasolina aumentou. Lá vou eu abastecer novamente – tenho a mania de abastecer pouco de cada vez, é que me dá a sensação que gasto menos… e penso: miséria, sou uma rapariga miserável! E pelos vistos a única solução era … “arranje mas é um namorado!”. O Costa, não se importa com esta rapariga miserável, mas eu tenho dignidade e respeito por mim mesma, eu mereço essa dignidade, como merecem os doentes que estão nas urgências, como merecem os profissionais de saúde, enfermeiros que não veem os filhos crescer, médicos nas urgências com mais de 60 doentes para antender… merecem dignidade os que morrem em casa isolados nas aldeias, idosos, sozinhos, porque os filhos têm que ir para fora trabalhar, porque os filhos não têm tempo; merecem respeito os que querem morar onde são felizes mas não têm os meios necessários que teriam noutros sitios! Merecem dignidade as grávidas que têm que se deslocar a Guimarães, porque é aí que há o melhor equipamento de obstetrícia, o melhor em pediatria e neonatologia… mas onde aí faltam técnicos, onde aí todos correm para atender a todas e pelos vistos: chove…
É a vez do PCP. Visualizo o sinal “perigo de nevoeiro”. Esta parte da viagem é assombrada pela neblina. Neblina e passado andam sempre juntos no meu imaginário. Algo terá de Sebastianismo. Tenho pressa de chegar. O homem comete um ato falhado diz “campas” em vez de “camas”. O assunto é a mesma Saúde. Eu acho que o Jerónimo está rouco, pode estar doente.
Agora vem a Cristas do CDS. A senhora parece que esteve a ouvir a Catarina com atenção. Na escola, talvez na primária havia colegas que repetiam as respostas dos outros: “O que gostavas de fazer nas férias?”, e os menos criativos e mais preguiçosos respondiam “Também quero brincar, como o Carlinhos.” E pelos vistos o Costa acha o mesmo que eu.
Paro para meter gasolina. É esta a melhor altura.
Volto à estrada. A Heloísa Apolónia, diz algo que eu tenho repetido inúmeras vezes: os edifícios não estão construídos de forma adequada. Sim, cara Apolónia, devia haver outro tipo de exigências na construção e incentivos para remodelar as casas. Ela fala de incentivos para por “janelas duplas” – e instintivamente corrijo em voz alta “vidros duplos”. “Estou a ficar velha” penso. Continuo a ouvir a Heloísa. Eu não entendo como é possível vivermos numa região tão fria e as casas, tão caras para comprar ou com rendas tão altas comparativamente ao que ganhamos, terem piores condições que as casas tradicionais! Pelo menos as casas antigas, entre outras coisas, pensadas para proteger do tempo rigoroso, tinham lareiras e ficavam sobre os estábulos dos animais o que sempre dava algum calor.
Mas nem as casas particulares nem os edifícios públicos, e “há escolas onde chove e onde as crianças levam cobertores paras as salas”… a Heloísa já não tem tempo de explicar tudo e enumerar os diversos exemplos, “acabou o seu tempo senhora deputada”.
E eu tenho pressa de chegar ao fim, porque tenho pouco tempo para chegar.
Fui ao Porto e vim. Gastei imenso dinheiro para fazer a viagem, isso custa no meu orçamento. Se quero ser bem cuidada, como estou a ser devo continuar a fazer isso. Não devia ser necessário deslocar-me. Mas há quem diga que não tenho muito de que me queixar e que podia ser pior, ou então a conversa termina com um: “A menina devia arranjar um namorado que lhe desse boleia!”
Entretanto o debate quinzenal com o primeiro-ministro está quase a chegar ao fim, falaram mais alguns, não ouvi, o rádio não estava bem sintonizado. O PAN falava das suiniculturas que poluem o Liz, e dos boletins de voto em braille…
Não podemos nascer pobres, nem cegos, nem surdos… nem longe não sei de onde.
Estou quase a chegar e no cenário de desgraça solto uma gargalhada. O Costa diz qualquer coisa do género, a propósito da intervenção do PSD: “os senhores levantam-se de manhã e pensam: o que vamos perguntar? Então dão uma vista de olhos aos jornais, vêm o noticiário, vão as redes sociais…”
Pois, o problema é que é mesmo assim que acontece.
E porque havia de morar em Chaves? Eu acho que deve ser amor.
Lúcia Pereira da Cunha