Cartas a Madame de Bovery
Minha cara Madame de Bovery (1)
Conhecemo-nos há demasiado tempo e bem para que seja necessário eu fazer-lhe qualquer nota introdutória ou dar-lhe alguma satisfação deste meu propósito. Sei que nunca me questionaria sobre essa ausência, mas não posso deixar de o fazer.
Ambas somos reféns de uma educação que sempre colocou em segundo plano a liberdade individual e autónoma do pensamento, a decisão do livre arbítrio ou o simples manifestar de sentimentos, ainda que estando eles cobertos de razão. Sempre nos foi dito o contrário disso, que importa mais a razão e que só secundariamente e em casos muito específicos lhe podemos colocar o véu das emoções.
Começo então. Há muito tempo que sentia em mim esta vontade de lhe escrever e o facto de só agora o fazer e de ter coincidido com o post mortem do Comendador não é, ao menos de forma consciente, conto consigo para mo fazer ver à sua maneira e questionar a minha, como um substituto da alma ou uma pretensa forma de sublimar a minha solidão. Aceito bem que possa estar enganada, porque a recente partida do Comendador me não deixou indiferente e o que neste momento me surpreende, repare, mais do que preocupa, é o estado de alma ou de espírito em que me encontro.
Era fácil, talvez simples, chamar-lhe vazio, um sentimento de ausência, um inconformismo pelo já não estar! Tudo isto se adequava, do meu ponto de vista, a este presente que hoje vivo, mas não sinto nada disso e o que sinto não lho sei transmitir pela linguagem escassa e precária das palavras. Apesar disso, vou tentar.
É uma paz muito grande! É como se tivesse partido também com ele o meu desassossego. Ora isto é incompreensível! Então agora que me falhou o interlocutor para o meu agitado debate de ideias, pontos de vista e raciocínios ou diferentes ângulos de visão e perspectiva, é que me veio a quietude, a tranquilidade, o sossego?! E isto leva-me, literalmente transporta-me, para um pensamento estranho: simbolizaria o Comendador, em si mesmo, o meu próprio problema?! Uma sombra que só existe porque há simultaneamente um corpo?!
Tem toda a razão, já me ocorreu isso mesmo, se não será antes ou em vez disso aquele sentimento de que falávamos no outro dia: o desapego! Como se houvesse coisas cuja existência só é real quando estão relacionadas com outras e que quando as partes que de alguma forma as constituem se desintegram, morresse também com elas a intenção, o propósito, a razão de ser, a sua própria existência! Poderemos chamar a estas coisas reais ou elas são unicamente o produto, o resultado, a consequência de tudo o que ficticiamente as rodeia, a que apenas o nosso imaginário apela!? O ninho da águia sem a águia, que significado tem?
Sim, pergunto-lho a si porque a sei disponível para este tipo de coisas a quem, mais do que as questões intimamente relacionadas com o ser humano, lhe é grato o tema das relações humanas. É também verdade, não lhe colocaria a questão se eu mesma tivesse resposta para ela, ou colocar-lha-ia de outra forma!
Digo, quando a identidade do ser humano se molda pelas circunstâncias em que ele próprio vive e das quais significativamente depende, tem sinónimo em personalidade mais frágil?! Ou estamos, em sentido oposto, não contraditório, a falar de inteligência adaptativa, elasticidade mental, maturidade cerebral, sabedoria de vida, flexibilidade neuronal, sinapses conversíveis, emoções de substituição, compensações subversivas, raciocínios de alternância comportamental, etc. ou estamos tão-somente a falar de novos neurotransmissores, cuja actuação nos receptores está ainda por definir!? É por aqui?
Recuemos um pouco. Quando sentimos a falta do que deixámos de ter é porque isso era importante para nós ou simplesmente porque estávamos habituados a isso e é da mudança que temos receio e à qual nos não conseguimos adaptar?! Não, não fui completamente honesta quando falei no “simplesmente” habituados, porque é de facto muito custoso deixar hábitos, criar outros ou perdê-los sem ter novos! Acha verdadeiramente que os hábitos se podem substituir? Somos capazes disso? Com que intenção o fazemos? É sempre a de preencher um vazio? Será mesmo necessário este processo? Como caracterizaria este mecanismo: é primário, instinto de sobrevivência ou é um processo mais elaborado, com pressupostos estratégicos bem definidos? Há consciência nisto?
Recuemos mais um pouco. Antes de ter, temos necessidade disso? É no conhecimento das coisas que está a necessidade delas? Há quem diga o contrário, que as coisas surgem depois da sua necessidade: o fogo, a roda, a luz... a economia!
Sim, o processo é dinâmico! Dizemos sempre isto quando não sabemos responder às questões e achamos que elas não podem ficar sem resposta. Seria fácil se não soubéssemos isto ou se fossemos capazes de o ignorar, ainda que o soubéssemos! Nenhuma de nós é capaz disto, de fingir. Claro que sim, mas não chega, fica-nos a consciência disso por resolver!
Hoje, enquanto caminhava junto ao rio, veio-me à memória aquela sua frase que sempre me faz sorrir e instintivamente procurei uma pedra que, à semelhança das pessoas que vêm pelo rio abaixo aos trambolhões sem encontrarem uma pedra que as detenha, pudesse deter os meus pensamentos! Mas nada, a corrente era forte, o rio transbordava do leito pelas recentes cheias e arrastava tudo com ele, sem dó nem piedade. As águas eram turvas, pastosas, térreas, lamacentas e o meu pensamento espelhado nelas era de uma clareza aflitiva: o Comendador tinha partido e eu não sentia absolutamente nada, nem sequer culpa por causa disso!
Mais do que paz, subiu-me nesse momento pelas veias até à cabeça uma sensação de liberdade a ponto de ter falado: queres ver que eu estava presa?! Era por isso, minha cara Madame de Bovery, que de vez em quando me mandava entregar flores e doces, como se existissem grades nas minhas janelas, através das quais eu contemplava este nosso mundo?!
A senhora sabia e tentou dizer-mo de uma forma tão discreta e sublime que eu nunca percebi! Hoje, deixo-a aqui, não com os seus, mas com os meus pensamentos! Vê egoísmo nisto? De quem?
Com um abraço desta sua amiga
Maria Francisca