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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Abr17

Cartas ao Comendador


cartas-comenda

 

Meu caro Comendador (22)

 

Afinal, não sou capaz! As cartas, quando lidas por mim, gosto delas, mas quando lidas imaginando que é o senhor a lê-las, acho-as tão aquém, tão pobres, tão esvaziadas de sentido! Pergunto por si: Para quê isto? Porquê isto? Que significado tem o que aqui é dito e o que aqui, sem ser explícito, é, da mesma forma, dito, escrito?

 

De quem vêm estas palavras? Onde pretendem chegar? Há uma direcção nelas, um propósito? Qual? E não vejo nestas “suas” perguntas qualquer resposta à altura delas. Sei que pode não as fazer, nem sequer as pensar, mas não serei eu a poder dar-lhe essa decisão.

 

Envio-lhe esta última, as outras que anteriormente lhe escrevi, serviram-me ontem para acender a lareira e saiba, facto curioso, que mais depressa que o papel, ardeu nelas a tinta das palavras!

 

Estranho é eu, enquanto aquecia nas mãos o meu conhaque e segurava entre os dedos o meu charuto, vê-las a arder sem qualquer lamento, assistindo simplesmente a esse acto de combustão pacífico! (Sem a vírgula, ficamos sem saber o que é pacífico: se o estado em que eu fiquei ao assistir ao acto ou se a forma como decorria o acto em si! Talvez as duas sirvam!)

 

Ao mesmo tempo que as palavras se iam convertendo em cinza, da tinta preta subia aos céus uma luz branca. Se fosse crente diria que era, à semelhança da alma que se evade dos corpos quando eles perecem, também uma alma, pois que após a morte tudo é imaterial e o que distinguirá um ser que foi vivo de outro que nunca o foi?!

 

Mas o senhor, acreditaria nisso? Que das minhas palavras, depois de ardidas, se desprendeu uma massa invisível com consistência de alma?

 

Meu caro Comendador, se há coisa que sempre admirei em si, foi esse seu pragmatismo de não querer ver nas coisas mais do que as coisas são ou mais do que elas se julgam ser. E, por mais que lho tivesse dito que sempre haveria de chegar um dia em que todos nós havíamos de descobrir o quanto estávamos enganados, o senhor nunca se deixou incluir nesse grupo e eu respeitei-o sempre, também por isso.

 

Hoje, enquanto as cartas ardiam, eu senti uma paz tão grande! Não a sei medir nem encontro nada que se lhe compare para lha poder descrever. O melhor que lhe sei dizer é que senti um enorme alívio, semelhante ao que sentimos quando alguém que nos fez muito mal morre e nós pensamos: “Este, já não me faz sofrer mais!”, maneira de dizer, podemos conseguir a mesma coisa quando decidimos que a pessoa morreu e deixamos mesmo definitivamente de a ver sem que haja necessidade absoluta que morra! Toda a necessidade é relativa, disse-mo tantas vezes e eu sem nunca perceber do que o senhor me estava a falar, pois que para mim tudo era tudo, nada existia por partes nem metades nem parcelas, ou se era ou não!

 

Mas, voltando às cartas, as letras saíam das linhas imaginárias, bailavam, entrelaçavam-se e faziam desenhos, grafismos, imitavam fotografias. Houve uma altura em que me pareceu até um filme, tal era a rapidez com que as imagens das fotografias se sucediam uma após outra e com o evoluir da peça e o caminhar lentamente para o fim, o meu estado de espírito elevava-se e, facto para mim inexplicável, a última carta que ardeu foi a primeira onde, por uns segundos, ainda consegui ler as primeiras frases e sabe qual foi a palavra que me saiu? Nenhuma dessas!

 

Poupo-o, por isso, a uma série de questões às quais, nem eu que as fiz, sei responder.

 

Tenho hoje como verdade, não o enumerar de pressupostos racionais, argumentativos ou outros, premissas lógicas com relação estabelecida de causa e efeito, filosofias coerentes e bem sustentadas, mas tão só a paz interior.

 

Sou quem sou e tenho pena que o senhor não tenha percebido isso, nunca porque a sua inteligência o não tivesse permitido, porque lhe permitiu mais do que isso, mas porque eu não lho soube explicar. O sentimento tem esta limitação comparativamente ao raciocínio: nem todas as palavras servem!

 

Sinto-me hoje, não direi na obrigação, mas no dever, posto que parte de mim, de lhe explicar que esta minha atitude não tem nada a ver com aquele pecado mortal de que em tempos lhe falei! Estar-lhe-ei para todo o sempre grato por me ter feito notar a consciência que me passava ao lado. O que aconteceu foi eu ter percebido que o senhor não era, em boa verdade, o destinatário das minhas cartas. E, mais uma vez, a si o devo!

 

Tomei consciência disso no dia em que ficou sem me responder a três cartas que lhe enviei, ou que supus lhe ter enviado, e como a minha vida não parou por causa disso, percebi que não dependia a seguinte, da sua resposta à anterior e percebi, também, que o facto é que eu escrevia para mim e que o que o senhor me estava a fazer notar era que não podemos adiar a nossa vida ficando reféns da resposta dos outros, porque aquilo que adiamos para depois pode nunca acontecer, porque enquanto preparamos a nossa ideal resposta à vida, ela não espera por nós como nós esperamos por ela e percebi, ainda, que talvez fosse demasiado tarde para lhe dizer o que devia ter dito e feito há muito tempo.

 

Falta-me perceber porque recorre o senhor a estratégias tão difíceis e indiretas, digo pouco lineares, para me dizer o que seria tão simples, sendo o senhor um dominador nato da língua portuguesa, mas, se bem o conheço, recorre a esses caminhos tortuosos para me fazer pensar ou concluir que as respostas às perguntas que lhe faço e até às que lhe não faço, estão dentro de mim. Compreendo-o e digo-lhe que comigo essa atitude até funciona, mas não lhe garanto que resulte com toda a gente! Até isto o senhor sabe porque me conhece a esse ponto e está tão por dentro de mim que se não fosse isto uma verdade o senhor teria escolhido certamente outro caminho ou outra forma de me demonstrar as mesmas coisas!

 

A este propósito faz-me lembrar um amigo que em tempos tive e que de cada vez que eu precisava dele, ele me ignorava e quanto maior era o meu desespero e lho fazia saber, mais ele me desprezava. Deixei de o procurar por isso mesmo, porque me pareceu não só uma pessoa cruel, mas falso na amizade.

 

Um dia, quando estava a morrer e eu me fui despedir, ou dizer até breve, estas coisas a gente nunca sabe como falar delas, confessou-me a esse respeito que nessa altura me achou muito frágil e que se me tivesse ajudado eu poderia no futuro voltar a fraquejar, mas se me abandonasse e me deixasse sozinho na dor, eu perceberia a força que tinha dentro de mim! Pelo seu estado debilitado, minto, por educação, não consegui nem bater-lhe nem insultá-lo, embora me apetecesse fazer as duas coisas! Deixei-o morrer assim, sem perceber se ele realmente acreditava no que dizia ou se não passava de um perfeito idiota! A diferença, não me fez diferença!

 

Quando um dia regressar de Londres, e se regressar porque já percebi que essa cidade o fascina, talvez por ter de bom o mesmo que o Porto tem e por não ter as memórias que do Porto não quer ver lembradas, assim é a memória dos homens inteligentes, haveremos de ter certamente oportunidade de falar destes e de outros assuntos que consomem alguns dos seres humanos, digo-o tendo por certo o que é de todo incerto: o seu regresso. Admiro-o por isso, pela coragem que tem em tomar decisões que embora estejam contra o seu sentir, servem na perfeição a sua ambição de futuro ou o seu ideal de presente! E digo isto consciente de que a coragem está, não propriamente no tomar de decisões, o que é relativamente fácil porque até eu o consigo, mas no saber depois lidar e viver com elas!

 

Dizia, se regressar de Londres, avise-me com alguns dias de antecedência porque quero preparar um jantar especial para comemorar a nossa eterna amizade. E digo-lhe isto porque sei que não aprecia surpresas. Enquanto eu pagaria uma fortuna para ver a minha reacção ao desconhecido, o senhor paga o mesmo para se preparar para o que o espera. E isto que dantes eu não entendia, está para mim hoje claro: quer comemorar com antecedência a festa a que vai, contrariamente a este seu amigo que festeja só no fim o que lhe dão de início. Formas de ser, atitudes diferentes, nem melhor nem pior, é assim o modo e o destino dos homens!

 

Se, por decisão do destino ou pura teimosia, que ele é arrogante a esse ponto, e embora seja o que sinceramente eu menos espero que aconteça e o que menos desejo, regressar naquele móvel rectângular de madeira, sei que consigo posso falar da morte com esta clareza sem que o senhor mo leve a mal, farei como combinado e prometido, a não ser que o mesmo destino decida também por mim e contrarie ou inverta os factos vulgarmente ditos normais, de abandonar primeiro esta vida aquele que há menos tempo nela está.

 

Saiba que ainda assim, concordarei com ele porque a vida de cada um não se mede em quantidade, mas em qualidade e a minha, mesmo que o senhor o contradiga, é largamente diferente da sua. Esclareço: refiro-me à intensidade com que vivo as coisas! Eu tenho o finito por eterno e o senhor tem por finito o finito! Vivo por isso mais em menos tempo! Mas, para que possa cumprir com o acordo, peço-lhe que mo deixe escrito, por causa daqueles pormenores legais a que, em sociedade, nós temos de obedecer. Ninguém acreditaria, só dito por mim, que a sua vontade fosse essa e por isso, para que possa dar cumprimento ao seu desejo, rogo-lhe que tenha a maçada de se deslocar a um notário que reconheça a sua assinatura como sinónimo da sua vontade.

 

Não gostava de terminar esta carta desta forma, com receio de que a nostalgia ou saudade, traduzida a anterior palavra do grego para a língua portuguesa, sob pena de que ela se instale em mim e comande os meus próximos dias! É perigoso isto de nos habituarmos às coisas, sejam elas boas ou más. Veja um exemplo: há uns tempos encontrei um amigo de infância e vendo-o a mancar perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. Disse-me que tinha sido operado a um pé fazia um mês. Um ano depois voltei a encontrá-lo e vendo-o da mesma forma a mancar comentei: já vi que a operação não correu bem, ao que ele respondeu: Não, a operação correu bem, eu é que me habituei a mancar e agora não consigo andar normal!

 

Concordará comigo se lhe disser que, às vezes, temos de ser mais ousados que o destino e desafiar, não digo a ordem natural das coisas porque seria pecado, mas o normal desenrolar dos acontecimentos e introduzir algum relevo no terreno para que a satisfação do seu objectivo ou a sua superação nos permita maior satisfação individual. Clarifico: porque não tira umas curtas férias e vem a Portugal verificar se o que deixou para trás está lá ou se continua no seu actual presente?! O senhor percebe bastante mais destas coisas que eu, mas a ideia que lhe estou a sugerir é no sentido de perceber se a partida lhe serviu efectivamente de cura ou se o que o senhor mais não fez foi enfiar-se num buraco até que o descubram ou, exactamente o contrário, enfiar-se num buraco para que nunca o descubram!

 

Talvez esteja na altura de invertermos papéis! Que lhe parece?

 

Sempre o mesmo grande abraço do seu

José Francisco

 

 

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