Chá de Urze com Flores de Torga - 88
Chaves, 25 de Setembro de 1960
E daí, quem sabe? Talvez que, na verdade, seja necessário dar à vida uma certa margem de conformação. Ficar sempre aquém dos limites da intransigência. Como nas sangrias, nunca ultrapassar o meio litro. Permanecer na justa medida, haja o que houver. Contentar-se a gente com o quotidianamente possível na moral, na política, na ciência, no amor e na religião.
Mas conseguir que certos malucos da minha espécie compreendam as mil vantagens da mediania, tapem os ouvidos à voz ultrapassada do apóstolo que no Apocalipse vomita os mornos, e se resignem ao uso sensato de uma camisa-de-forças? Naturezas monstruosas, absurdas, sedentas de absoluto, sempre quentes ou frias, andam no mundo por verem andar outras. E foi certamente a pensar nelas que Breughel pintou a parábola dos cegos, sem, de resto, alcançar o seu fito. Que devia ser desviá-los pedagogicamente do abismo. Do abismo onde já, também sem resultados animadores, precipitara Ícaro, outro símbolo incorrigível de humano desvairo, de condenável fome de infinito.
Miguel Torga, in Diário IX
Chaves, 26 de Setembro de 1960
Há terras, como Aveiro, por exemplo, impregnadas de não sei que dignidade específica. É uma espécie de irradiação ética, que compensa largamente o forasteiro de todos os desconfortos e desilusões urbanas que nelas sinta. Chaves pertence a essa família. Apesar de feia, suja e desfigurada, o espírito sente-se aconchegado dentro dos seus muros. O prazer que os sentidos não gozam na pureza dos monumentos, na grandeza das praças e no desaforo das avenidas, encontra-o a alma na atmosfera de sanidade humana que respira na mais abafada e miserável ruela.
Miguel Torga, in Diário IX