Chaves D'Aurora
12. FESTA CIGANA
Aconteceu, certa noite, de Aurora preferir ficar na Quinta, em companhia das criadas, enquanto o restante da família fora pernoitar em casa de um parente em Vila Real, cuja filha estava a festejar o batismo de seu morgado.
Uma alegre e contagiante música veio do casarão em frente, atravessou a rua e, como um chamado melodioso de sereia virago, não pediu licença para penetrar aos ouvidos da rapariga nem das serviçais.
Havia folguedo entre os ciganos.
Zefa e Maria se haviam muito excitadas para ver, bem de perto, os pasos dobles de alguns sevilhanos, que estavam a bailar no pátio dos Camacho. Sem poderem adentrar a festa alheia, limitavam-se com a menina a observar, de uma das janelas do casarão, o vaivém dos convidados. Estes aportavam pela entrada lateral da moradia, larga passagem para cavalos, carros puxados a bois ou algumas carroças que serviam de moradia aos parentes nómadas.
Eis que a ideia marota partiu de Zefa, cuja excitação feminina era proporcional à sua “risada pronta, mioleira tonta”. Maria, mais cautelosa, ficara a princípio relutante, até que sua curiosidade, enfim, venceu o medo. As duas resolveram pedir a dona Mariazita, mãe de Hernando, a quem já conheciam pela mera vizinhança, que lh’as deixasse ficar bem quietas em algum sítio discreto do terreiro, assistir às danças e ao mais.
A se considerar, desde pronto, a uivar para a Lua, como loba solitária em seu covil, Aurora choramingou – Mas ora, pois, suas cabeças de sanguessuga! Não estais a ver que me deixais sozinha?! – As duas então concordaram em levá-la, desde que – Ai minha Virgem Concebida sem Pecado Original! Não me vás contar nadica de nadinha à nossa boa patroa! – disse uma; e a outra – E ai Jesus, Maria, José! Menos ainda, que tal não chegue aos ouvidos do senhor teu pai!
O imenso pátio onde se guardavam os cavalos e carroções, agora estava livre para os folguedos. Era nesse espaçoso átrio que, de acordo com os costumes ancestrais, oferecia-se àquela noite uma festa de agrado ao futuro sogro de Rosinda, a irmã de Hernando, prestes a se casar daí a alguns meses. Era uma xukar tão bela como Esmeralda, a protegida de Quasímodo, na Notre-Dame de Paris de Victor Hugo. Em respeito a uma secular tradição, mal acabara de chegar ao mundo e a rapariga fora prometida a um ciganito andaluz, aparentado dos Camacho e o qual, por uma buena dicha da noiva, viera a se tornar, quando já posto, um moço bem forte, simpático e loução.
Foto retirada de http://www.umbandaesoterica.com.br/
Como soa um dito popular, “em festa de ciganos, chapéus ao ar e toca a bailar”! Daí que, ao centro de uma roda, diante de alguns tocadores de guitarra, violinos, acordeões, pandeiretas e até um címbalo, homens e mulheres, de várias idades, punham-se a dançar, ruidosa e animadamente. Entrementes, todos bebiam muito vinho, acompanhando os sarmali (trouxas quadradas de repolho, recheadas com pedaços de carne macia de vitela e lombo de porco, temperados com diversos condimentos). Outros degustavam a carne de borrego com hortelã, preparada com o coentro e caril, marinada em vinho branco e servida junto com as guibanitsas, deliciosa espécie de pães de queijo de origem eslava.
Pleno de sensualidade, Hernando era quem mais se destacava no bem comer, no muito beber e no dançar demais. Em certo momento, a um gesto seu, os circunstantes afastaram-se do centro para dar passagem a uma dama, que trazia castanholas e a bata de cola de uma autêntica sevilhana. Com ela, pôs-se o rapaz a dançar alguns passos do Flamenco, que aprendera em suas andanças por granadas, córdobas e outras andaluzias, enquanto os espetadores acompanhavam o dueto como basbaques, a bater palmas com admirados olés ou a estalar, ruidosamente, os próprios dedos.
Aurora não conseguia tirar, de cima desse atraente balaor, seus fascinados olhos juvenis. A um dos pasos mais mirabolantes, ganhador de muitos aplausos da roda, Hernando tirou o lenço encarnado do pescoço, transformou-o por um triz em uma rosa e todos ficaram à espera de que ele o oferecesse, entre mil salamaleques, à sua parceira andaluza. Desta, porém, as mãos ficaram soltas ao vento e a segurar só os espinhos. Foi à bela e quase infantil intrusa que Hernando atirou sua mágica flor, embora a rapariguinha estivesse quase oculta, por trás de um desses santuários pétreos ao ar livre que se veem na região. O nicho de pedra abrigava um oratório de carvalho e, entre enormes círios coloridos, Sara Kali, padroeira dos ciganos, acompanhava os folguedos com os olhos circunspectos de uma santa que, aos alvores do Cristianismo, foi torturada e martirizada pelos pagãos.
Imagem de Sara Kali,, padroeira dos ciganos
Imagem retirada do blog http://identidademandacaru.blogspot.pt/
Maravilhada, punha-se Aurita em mil caraminholas. Tentava adivinhar, não só como o rapaz fizera aquilo tudo assim, de tão prontinho, como também, a outro passe de mágica, ele pudera descobrir, em seu discreto posto entre as árvores, aquela gajina que, sem ser convidada, julgava-se mais escondida do que coruja em torre de igreja. Não sabia ela, ora, pois, que “cigano é batizado num regueiro, para que tenha olho vivo e pé ligeiro”? Ao gesto galante de Hernando, de tão pálida ela virou Branca de Neve, que um pedacinho de maçã não lhe deixou sair da garganta algo mais do que um tímido sussurro
– Obrigada!
Nota: As ilustrações do presente post são da responsabilidade do Blog Chaves e não constam no romace.