Cidade de Chaves - O tempo das coisas
O tempo das coisas
Durante muito tempo conheci este rio sem ninguém o contrariar. Deixava-se levar pela natureza. Enchia, avolumava-se e ganhava velocidade quando a natureza assim o queria, ou então, esvaziava, pasmava e ficava reduzido ao mínimo para se manter vivo quando assim tinha de ser. Durante anos foi assim até que o começaram a contrariar, como se a natureza se pudesse contrariar… e às vezes até pode, imagens como a que hoje vos deixo, tomada em 2013, fazem-nos acreditar que é possível, mas com o tempo também fui perdendo a inocência e aprendi que o acreditar anda quase sempre de mão dada com o sonhar.
Hoje quando revi esta imagem, apercebi-me como o acreditar é apenas um momento, um instante em que a natureza nos tira da realidade. Hoje quando revi esta imagem, instintivamente peguei num dos livros que sempre me acompanham, abri-o e parei neste texto:
A PRESSÃO DOS MORTOS
Fechas a mala do carro cheia de bagagem. E de súbito apercebes-te de que não é novo o gesto. Muitas vezes o viste repetir. A muitas horas do dia, mas nunca como num fim de tarde. Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhe um ar de miragem. Fecha-se o tampo do caixão sobre a cara conhecida para todo o sempre. Nem se levanta o problema da eternidade. Esta terra é que tu amaste com todas as contrariedades e os problemas quotidianos. Amaste homens que por vezes talvez te tenham dado na cara e eram deliciosamente imperfeitos como tu. E tiveste de te despedir deles. Já não eram daqui. Já tinham problemas de mortos. Já se falava deles no imperfeito e não no presente. Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou. Um último olhar a essa caixa de mau gosto. Gostarias de atirar um torrão, como em criança, para esconjurar os maus sonhos. Mas falta-te a inocência. Decisivamente, tens de fechar com força a mala do carro. E pedes que te ponham os pneus à pressão 22. A pressão dos mortos.
Ruy Belo in “homem de palavras”