Nós, os homens
VIII
E foi mais ou menos isto o que se passou.
Ela era muito nova para perceber que embora o mundo não acabasse amanhã, como se fartou de me dizer, podia perfeitamente acabar amanhã, porque isso era sempre uma coisa que não sabíamos no dia de hoje e enquanto eu sabia isso, ela não. Por isso, para ela, coisas tão importantes como o amor, os beijos, as festas e a paixão, podiam esperar e para mim não.
Também as palavras não ditas podiam ficar por dizer, embora fossem sentidas e eu, com aquela panca da escrita e dos livros, dependia delas como droga, não vivia sem elas e entrava com frequência em síndroma de abstinência só porque a menina nunca me tinha dito a palavrinha mágica que tem um hífen entre o o e o t. E tinha depois reacções completamente atípicas, aberrantes e idiossincráticas que ainda por cima tinha que lhe explicar depois, porque a estas sim, a menina reagia e não gostava e achava-se no direito de conhecer a causa, a razão, a origem e um dicionário de sinónimos que se eu não me safasse racional e logicamente daquilo -que a menina era dotada de inteligência que bastasse, ou não fosse assim e eu nunca me tinha interessado por ela, embora também fosse bonitinha que bastasse, estes pormenores dão sempre jeito e confessá-los só nos fica bem- nem sequer havia dia seguinte, independentemente de o mundo acabar ou não, é que nem sequer saíamos dali.
E foi mais ou menos isto o que se passou.
Eu fazia-lhe as vontadinhas todas. Estava disponível quando a menina queria, para o que ela queria e onde ela queria e não me sentia nada mal por isso, exactamente ao contrário, sentia-me completamente feliz, pois se o que eu queria era estar com ela sempre, queria lá saber do quando, do para e do onde!
E sentia-me bem nessa entrega e também sentia que ela se entregava nessas alturas, só que depois de se entregar a mim ela regressava a si e era aí que nos separávamos, porque eu entregava-me a ela e não voltava para mim!
E foi mais ou menos isto o que se passou, embora na realidade eu saiba que nunca vou saber exactamente o que se passou, porque se formos conscientes, temos lucidez bastante para assumidamente saber que as coisas podem ter parecido assim e terem sido completamente diferentes, porque esta coisa da prespectiva de cada um e do ângulo de visão vencem sempre qualquer lógica que parece haver.
Uma vez até lhe cheguei a dizer isto, na esperança de que aquela cabecinha se abrisse e despertasse para aquilo que eu achava que era o essencial, mas ela olhou para mim de forma inconsequente e riu-se perdidamente, como se o que eu tivesse acabado de dizer fosse o maior disparate do mundo! Não era, havia um pior, mas eu nunca lho disse. Achei que ela não merecia!
Cristina Pizarro