Nós, os homens
IX
E a história é, mais ou menos, esta; embora a história não seja, realmente, esta! Isto para dizer que deliciosamente me enganei e que afinal as coisas, estatisticamente com probabilidade reduzida de acontecerem, acontecem. Isto das ciências exactas sempre fez para mim todo o sentido. Embora sempre tivesse vivido rodeado de pessoas de letras que afirmavam convictas que a matemática que aprendemos na escola não servia para nada, eu sempre achei que ela era o princípio de tudo e questionava-me, nos dias de chuva, como é que havia cursos superiores e se tiravam inclusivamente licenciaturas sem que a disciplina básica e fundamental constasse dos respectivos currículos académicos! Mas nessa altura eu já tinha percebido que o mundo não era perfeito e que se Deus tinha feito as coisas à sua imagem e semelhança, o exemplo escolhido não tinha sido dos melhores, o que só reforçava, mais uma vez, a minha ideia de que nada era perfeito. A não ser ela! Pois está visto que quando se ama, as coisas são perfeitas e a prova disto era, inexoravelmente, a matemática. Pois não é evidente, os números pares, divisíveis com resto zero, o mínimo múltiplo comum, a prova dos nove, o simples menos por menos dá mais! Até a linguagem que eu usava a tinha ido beber não à disciplina de Língua Portuguesa, mas à da ciência exacta, pois que utilizava com um sabor peculiar palavras como: integral, exponencial, radical, infinito, equacionar, solução, resultado, eixo de simetria, conjunto, incógnita, potência, e não me chocaria mesmo nada se alguém me descrevesse a paixão entre duas pessoas como correspondência biunívoca!
Surpresa das surpresas! Então não é que ela gostava mesmo de mim! Vi-o finalmente escrito nos seus olhos, quando me olhou em silêncio e me percorreu o corpo com a ponta dos dedos e se ria como uma criança com cócegas, só porque eu lhe tocava de leve, como o vento sopra nas manhãs de primavera e foi então que eu me senti, não ridículo, mas parvo por não ter percebido aquilo desde o inicio! Enquanto eu debitava parágrafos inteiros, ladainhas a dar com um pau, contava a história dos reis e das rainhas, enumerava os sinónimos todos do dicionário, acrescentava letras a palavras e palavras a frases, resumia o último livro de prosa que tinha lido, lhe declamava de cor os poemas de amor que tinha memorizado sem querer, absorto pelo sentido das palavras, lhe descrevia ao pormenor o filme que tinha visto na véspera e a peça de teatro que tinha escrito para ela, ela sorria para mim e dava-me um beijo! E eu feito palhaço ainda perguntava estás-te a rir de mim? e ela continuava a sorrir e dizia estou-me a rir para ti!
E foi só depois de algum tempo que eu comecei a perceber que embora eu tivesse sido feito à imagem e semelhança de Deus, com todos os defeitos que Ele tinha, no caso dela o modelo em que Ele se tinha inspirado era outro, ou então aquilo tinha-lhe saído completamente ao lado ou, na melhor das hipóteses, ela era filha do padeiro, do vizinho ou do carteiro!
E foi bonito, no dia em que ela me lançou como um projéctil para fora do sistema solar e eu percebi que a trajectória da Terra era a mais patética de todas as dos planetas que viajavam em satelitismo solar. E foi no momento em que perdi a consciência, ao atravessar a atmosfera e me senti quase um lunático e posso dizer por hipérbole matemática e não como recurso expressivo de português que os dois hemisférios do meu cérebro colidiram ou mudaram definitivamente de posição, como imagem num espelho plano, ou a similitude dos gémeos mais que a semelhança que só a mãe distingue, também eu sabia que depois daquele reboliço dentro do meu crânio provocado pela diferença da pressão atmosférica e da outra, as coisas nunca mais regressariam ao lugar onde antes tinham estado! E era como se os meus neurónios, ou o que restava deles, estivessem em maresia e eu queria manter aquele estado de coisas por teimosia, tentando evitar a agonia que o meu corpo em desequilíbrio sentia. Nessa altura o eixo de simetria também já se tinha dobrado, todo eu era um acrobata, um contorcionista. Os 206 ossos continuavam lá dentro, mas já não formavam aquilo a que se chama esqueleto!
E eu completamente à toa, não sabia se queria ficar ou partir, fugir ou esconder-me, desaparecer ou definitivamente ser! Fosse como fosse, no mesmo instante, as palavras tinham deixado de me fazer sentido, não me diziam nada, não me levavam a parte alguma e eu queria ir a algum lado, eu tinha uma necessidade premente de ir a qualquer lado e não era nem com palavras, nem por elas, nem para elas, nem através delas.
Foi nesse sublime momento que a olhei da forma mais profunda que me lembro de alguma vez a ter olhado, fixamente, olhos nos olhos e definitivamente lhe perguntei:
- 2+2?
E ela disse:
- 4!
E foi aqui que o milagre se repetiu, mas ao contrário, o vinho transformou-se em água. Pura, transparente, cristalina! Percebi então que mais importante do que a língua que falamos é falarmos a mesma. E não interessa se dizemos muito ou pouco, basta dizermos o bastante, é suficiente. E também não faz sentido andar a medir sentimentos que sentimos com escalas e unidades diferentes, comparando coisas incomparáveis porque é tanto o erro de comparação como o de medição.
A única coisa que faz sentido é ser, querer, estar, fazer, sentir, ver, amar, sorrir e outros verbos que naturalmente nos correm nas veias sem pensar muito.
Aprendi com ela que tudo é muito mais simples do que parece, que tudo parece muito mais irreal do que é e que tudo é antes de ser, porque antes de se ter consciência, as coisas já existem sem nós sabermos e é uma delícia depois abrir os braços para as receber, as acarinhar, as afagar e, finalmente, as partilhar.
Bem-haja.
Cristina Pizarro