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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

10
Jan18

Nós, os homens


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XVI

 

Acabei de atravessar o parque.

- O senhor lembra-se, de quando eu era feliz?

Como é que se há-de lembrar, se a felicidade que era minha já mal a posso recordar!

As árvores que outrora floriam, hoje a chuva prende nelas as folhas aos troncos e a humidade do solo transforma a terra árida num solo firme, gélido, compacto, duro, numa inversão sem sentido, inexplicável.

 

Adivinho o conforto das lareiras acesas nas casas que eu ajudei a aquecer, com mantas de pele artificial imitando o vison natural, listado e quente. Adivinho os corpos nus que se enrolam nelas, que entram e saem dessas casas com os corações aconchegados, os corpos acomodados num amor que não importa se é gratuito se verdadeiro, aquece, eis tudo a quanto aspiro, hoje. Um arrepio percorre-me o dorso como se eu fosse um animal e não consigo evitar a pergunta irracional: Porque não eu? Ou a exclamação, já mais consciente: Sempre outro em vez de mim! E os tapetes de pele verdadeira que eu também ajudei a compor, no ambiente do quarto onde a donzela nua, depois de saciada, coloca os pés descalços e sente a textura da pele natural e o afago quente do corpo do animal que se sacrificou para seu conforto, à semelhança do seu amante, mas este com prazer. Calça as meias de seda, os sapatos de pele de outro animal que também se sacrificou para seu prazer, veste a saia de pele de outro animal que também se sacrificou para seu prazer e põe as jóias com o dinheiro que alguém sacrificou e que dava para alimentar uma família durante um mês.

 

É justo isto?

Eu era bem capaz de ser o idiota que sacrificava os animais do planeta para lhe dar os sapatos, a saia e ainda lhe comprava as jóias, se depois ela se risse, não de mim mas para mim.

Eu mantenho a esperança no nada, o objectivo de vida no vazio que me preenche os dias e a chuva cai sempre inclinada ignorando o que sinto, a solidão das emoções, a ausência do corpo que falta, para dar sentido a tudo isto!

E surge a presença no imaginário, com Deus ausente, do que não foi e podia ter sido. A manta de vison artificial era minha, que eu dei para aconchego da alma a um ser que me era querido, que depois se tornou em aconchego do corpo a alguém desconhecido.

 

É justo isto? É pecado. Meu Deus como é pecado mortal alguém usar e abusar do que não é seu, do que não lhe foi dado, nem em vida nem em testamento vital. E colocar os pés delicados no tapete de pele verdadeira que foi feito para pés calejados onde nem um obrigada foi dito, onde nem um sorriso foi esboçado, numa insensatez debochada, arrogante, pecaminosa, ingrata.

 

Porque é que não há inferno na terra para castigar em vida aqueles que não merecem viver? Merecemos todos? Onde está Deus? Porque nos abandonou? Porque fez Ele os homens bons, para os deixar à mercê dos homens maus? Porque fez Deus os homens maus?

 

Atravesso o parque, onde outrora, nos bancos de madeira ou ferro troquei beijos de amor, em condições, e as árvores que então floriam, hoje estão carregadas de desespero, de angústia, de coisa nenhuma. Para onde foram os troncos das árvores que, felizes, de amor transbordante, as alimentavam, transportando a seiva nos canalículos do seu interior até às folhas verdes dos seus ramos, que depois se haviam de transformar em flores de cândido perfume, sublime como o brilho dos seus olhos?! O que foi que lhes aconteceu, para vandalizarem assim o sentimento que lhe ofereci entre os meus cabelos loiros, entre os meus olhos azuis, entre a minha pele de seda e o meu perfume a flores?! Para onde foi tudo?! Não fui eu que disse, não fui eu que inventei, foi ela que me contou, naquela tarde de Primavera em que atravessámos o parque e o Sol brilhava tanto que as árvores floriam e a terra árida exalava um perfume quente a jasmim, que nos fazia lembrar as tardes em que os nossos corpos se fundiam sem manta de vison artificial e sem tapete de pele natural, onde os meus pés pudessem tocar, antes de sentir, a fria e crua realidade.

 

Eu era, como ela sabia, de emoções fortes, nada dado a mariquices, e o toque do chão gélido nos meus pés descalços, fazia-me sentir a natureza das coisas simples, como quem passeia na praia e desenha pegadas na areia molhada. Para que é que eu precisava de mantas e tapetes quando a tinha a ela para esculpir as minhas mãos, os meus pés, o meu corpo inteiro?!

 

Quem é que se lembra, agora? Quando o meu corpo deslizava por baixo do seu e se escapava e fluía e desaparecia e ela me procurava e me encontrava depois, para me voltar a perder a seguir?

Como é que alguém se há-de lembrar! Nada disto agora faz sentido, porque no parque está a chover e ela está em casa com a lareira acesa, enrolada na manta de vison artificial com um corpo de homem nu que não é o meu, que não a beija como eu, que não sente por ela o que eu sinto e ela está feliz na mesma, como uma perfeita idiota, sem perceber a diferença entre nada e coisa nenhuma! Porque não lê Fernando Pessoa? Lá, ele explica tudo! Mas ela não quer saber, ela sabe isto tudo e não quer saber.

 

Quebrou-se a magia! É esta a sua realidade, o faz de conta. Prefere não viver a ter de sofrer e eu percebo, só tenho é pena. Não dela, que nem sofre nem vive, mas de mim, que faço as duas coisas. Se as fizesse por mim, tinha um bom motivo, mas faço-as por ela, motivo nenhum.

 

Há quem chame a isto dor de corno, mas eu, sinceramente, parece-me isso tão pouco para a dor que sinto. Doi assim?

 

Cristina Pizarro

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