O Factor Humano
10 contos de reis – sem notas - 8
" Sabe doutor, tive hoje uma óptima notícia, disseram-me que posso morrer aqui." contou-me, ao mesmo tempo que me sorria com uma tristeza serena ", não imagina como é importante sabermos que temos um sítio onde morrer", concluiu.
Não era habitual a abordagem este tema entre um doente e o seu médico, enfrentando uma questão que se tornou tabu, a da morte, na sua envolvência concreta.
M. foi um dos poucos doentes que consultei no seu domicílio, em respeito à sua idade muito avançada e às suas dificuldades em deslocar-se.
Vivia numa espécie de residência, com quartos individuais, quase um hotel. Serviam-lhe as refeições no quarto, no início numa pequena mesa , em frente a uma estante recheada de bons livros e algumas fotografias que documentavam os dias de glória. Mais tarde, já numa engenhosa mesa que lhe colocavam no leito, facilitando -lhe uma refeição que era um dos poucos prazeres que lhe restavam, sempre acompanhada por uma modesta dose do melhor vinho generoso.
A posição da cama era estratégica , mesmo defronte à janela. Quando visitara pela primeira vez o local, tinha logo seleccionado esse quarto, exactamente por isso. Através dessa janela, mesmo deitado, viam-se as traseiras da rua principal. Uma canelha estreita e degradada, ladeada à esquerda pelas retaguardas pobres das velhas casa da rua direita da vila.
"Daqui posso olhar, mesmo que só veja duas velhas janelas , já sem vidros, as ruínas daquela varanda vermelha e restos de telhados desdentados. Às vezes senta-se lá um gato a lamber as patas e a apanhar sol. Em raras ocasiões pousa uma pomba. São os meus únicos contactos com a vida lá de fora", disse-me na última visita antes de ser internado no hospital, levado pelo INEM.
Como a maioria dos portugueses nos tempos actuais, lá morreu, sozinho, sem pomba nem gato.
Afinal foi esse o seu sítio para morrer.
Manuel Cunha ( pité)