O factor Humano
Ao contrário do prometido, na crónica anterior, adiamos a reflexão sobre os jovens médicos para próximo mês. Fica uma reflexão sobre a escrita.
Sobre a escrita
Ás vezes começar a escrever é como rodar a chave de um carro velho, dando à ignição. Se a bateria descarregou, responde-nos o silêncio. Uma página em branco, um falhanço. Mas ainda um espaço aberto ao futuro, cheio de liberdade para usar, nosso.
Mais difícil é tolerar tudo isto, se estamos com pressa e se cremos a viagem como indispensável. Ou será que quando a página não se povoa de caminhos novos, é sinal que a tal viagem não era assim tão urgente, tão indispensável?
Outras vezes, não responde o silêncio ao virar da página e ouve-se uma sucessão de ruídos, não estranhos porque já conhecidos. Qualquer coisa entre um respirar ofegante e um desengasgar. Por uns longos segundos temos a expectativa de que a isso se seguirá o ruído mais monótono e tranquilizador do velho motor a funcionar em pleno. Então, jorram as palavras da ponta da caneta, como quando termina o verão e a sua sequia, com as primeiras chuvas de Outubro. O carro escreve por aí fora, desejando nós que não seja agora a falta de combustível a condicionar a viagem.
Vamos indo, sem já nos lembrarmos se o passeio era urgente. Juntamos as palavras, às vezes olhamos para a paisagem, outras chegamos ao destino, sem memória dos locais por onde passámos, das gentes ou das coisas que vimos. Ou melhor podíamos ter visto, pois elas estavam lá, mas se os nossos olhos as miraram, não as transmitiram ao cérebro ou não chegaram neste à zona da consciência.
Nunca saberemos se algo que não chegou à consciência pode vir a alojar-se na memória e aí estacionar, num movimento contínuo que a mantenha viva, mesmo se ninguém alguma vez tenha sabido que existiu.
Ou será que são também essas estranhas memórias que nos ajudam na viagem seguinte, disfarçadas de imaginação?
Manuel Cunha (pité)