Chaves D´Aurora
ROMANCE
- SUB JUDICE.
Ao dizer tudo isso a Lucinda, esta, com o auxílio de um dedo indicador e um polegar sobre as pálpebras da rapariga, atentou para o facto de que os olhos de Aurita deveriam ficar bem abertos, cada vez mais e sempre. Depois falou-lhe, a balançar a cabeça com descrédito – Tens que estar muito segura de que ele te ama, de facto. Quando duas almas unem seus corpos por se amarem de verdade, podem voar bem livres, até às mais altas nuvens e montanhas. Tudo pode se tornar mágico e belo, como num circo, mesmo entre as paredes de uma humilde habitação. Mas te pergunto, minha boa Aurita, será que esse gajo te ama, realmente, ao menos um tantito assim, de tudo o quanto estás a merecer? – Tornou a balançar a cabeça – Ou será que ele está apenas a querer se aproveitar de ti, como às mulheres pataqueiras?
Ante à previsível reação de Aurora, acalmou-a – Não, não! Estás a ver que eu não estou a insinuar coisa alguma... lá isso, não! Tal não é, nem nunca haverá de ser do teu feitio! Ah, minha rica menina! É preciso perceber se ele te ama para todas as horas e não apenas para os minutos de seu bel prazer – e tirou então, do baú de suas experiências, a assertiva de que a maioria dos homens (pelo menos os daquela época), está pouco a se importar em ver suas mulheres alcandoradas, antes, durante e após fazer amor. Quase todos querem, na verdade, apenas que elas fiquem a satisfazê-los, em seus caprichos de macho.
Aurora tentou dizer – Mas o Hernando... – calou-se, porém, incerta quanto ao que ia completar, enquanto a amiga explicava – Os machos orgulham-se de seus membros viris e até se comparam, entre eles, as grossuras e tamanhos, mas troçam das partes íntimas de nós, mulheres. Alguns chegam até a demonstrar nojo de chegar a face perto de nossas partes íntimas, acham uma coisa feia de se ver e, quando se aventuram a olhar, dizem a rir que “aquela coisa sabe a bacalhau” – factos para os quais Aurita jamais atinara e tudo isso a deixou impressionada – Mas são todos assim ?! – Lucinda balançou a cabeça – Salvam-se alguns.
Tudo isso era o que a amiga opinava, mas, pelo menos àquela altura e até várias décadas depois, era bem real o que ela estava a afirmar e talvez pudesse, estatisticamente, confirmar-se no contexto de então. Ela prosseguiu, convicta – Aqueles que amam de facto as mulheres, sabem achar bonito qualquer cantinho do corpo de cada uma de nós; sabem beijar suas amantes de várias formas; sabem encontrar caminhos raros e carinhos intensos, que até mesmo algumas meninas não sabem existir e sequer imaginam como encontrar em si mesmas.
Aurora Bernardes, ainda que ficasse várias vezes a corar, chocada com a crueza da amiga ao falar de tantas coisas novas e estranhas (mormente que, ao falar disso tudo, a linguagem de Lucinda fosse bem mais rude e mais explícita do que a deste narrador) e embora muitas coisas e loisas ainda não lhe coubessem entender, guardou essas informações dentro de si, o máximo que pôde. E, dessa vez, aquém do Brunheiro e do Barrosão. Continuava a sonhar, todavia, que o amor de Hernando para consigo estava a se tornar tão grande, quanto a sua paixão para com ele. Portanto, logo tratou de pôr o seu pote com água na cabeça, sobre uma rodela de pano torcido e se afastar do poço de incertezas onde, estarrecida com as palavras de Lucinda, estava prestes a mergulhar.
Embora sem nutrir qualquer simpatia pelo jovem Camacho, Lucinda consentiu em procurar o rapaz e lhe expor toda a conflituosa situação em que Aurita se encontrava. Pediu então ao gajo para confirmar, uma vez mais, se ele iria ao Porto buscar sua brasilita. Ao retornar, a modista retransmitiu à amiga, afinal, o sim tão desejado. Isso gerou em Aurora uma grande alegria, ainda que melhor fora se tal palavra tivesse sido proferida, diante de si mesma, pelos lábios do próprio amante.
- PÁSSAROS.
No último dia dos Bernardes ao Raio X, ao abrir uma janela, Aurélia deixou seus ouvidos...
(continua na próxima terça-feira)