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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Jul19

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

MARIA CARABUNHAS

 

A primavera daquele ano esmo verteu-se quente e seca como não havia memória. O renovo mirrava castigado pela inclemência do astro rei. A água, que nunca abundou no Planalto, era, nesta ocasião, tão escassa, que nem o rego mais prolífero da melhor lameira a deixava luzir. As poulas pejadas de gafanhotos cinzentos, qual praga bíblica, mirravam de sede com as fronças devoradas numa voracidade ciclónica. Mas, apesar de tudo, o Planalto, historicamente pródigo na produção de fruta, exibia neste ano as raras cerdeiras carregadinhas de frutos que haveriam de reluzir lá para finais de junho.

 

− Que se me dá! O que o dianho tira numa banda dá-o Deus na outra – dizia a Maria Carabunhas pelos soalheiros do lugar!

 

A tal Maria era uma cabaneira pobre que sem leira que a alimentasse vivia do expediente e da misericórdia dos vizinhos. Mulher robusta, contrariando a destino que o berço lhe traçou, estava sempre pronta para ajudar quem dos seus braços precisasse. Em contrapartida raramente lhe faltava o cibo na mesa. Os meses de inverno passava-os a tenir, mas logo que a primavera trouxesse a luz do sol e o a terra começasse a dar de si, acabava-se a penúria.

 

A Maria nasceu de outra mulher mísera, solteira e que nunca conhecera o eido de quem lhe fez a zorra. Sem pai para a proteger, cresceu aos emboleques da vida e no tempo casadoiro ninguém a quis, porque todos a tinham quando muito bem queriam. Por isso, envelhecia solteira e sem companhia certa. Por Deus querer ausente de prole. O Criador, por vezes, escreve direito por linhas tortas e fez a Maria matchorra, como lhe convinha e a quem dela dependesse.

 

Por vezes passava muito mal com a fome, o frio e as mazelas várias, porém, nada parecia derrubá-la porque a experiência lhe dizia que a um tempo de chuva se segue outro de sol! Era essa esperança que lhe alimentava os dias mais negros. A pobreza era extrema, mas não a sentia como uma fatalidade porque nunca tinha experimentado coisa diferente. Por isso, não tinha termos de comparação e vivia feliz à sua maneira.

 

Ora, um dia daquele início de verão a Maria foi à ajuda para o corte do feno do Ti Antoninho Moreiras no lameiro grande do Belão. Um trabalho duro e penoso. A Maria pegava na gadanha, como qualquer homem, e sem que ficasse a dever nada ao mais pintado, pendulava-a com entusiasmo de um lado para o outro. A cada movimento, certo e ritmado, juntava no seu carreirão uma boa mão cheia de feno. Era um regalo vê-la balançar os seios roliços ao ritmo de cada corte! Graciosa, fazia ver aos homens como se segava o feno!

 

O almoço, um guisado de cordeiro, chegou pelo meio-dia, numa giga, sobre a rodilha, à cabeça da cozinheira. Foi degustado na fresca da touça de carvalhos contígua ao lameiro. Quando eram quatro da tarde o trabalho de corte estava acabado e faltava apenas espargir o dito cujo para que secasse ao sol de junho.

 

Pelas cinco estava dispensada.

 

1600-cerejas.jpg

 

Não houve merenda porque o trabalho acabou cedo e a Maria foi para casa de barriga a dar horas. No caminho de regresso passou por uma cerdeira que o Patalão tinha no Linhar do Eiteiro e que reluzia de cerejas maduras.

 

Claro está, não resistiu!

 

Bem sabia que se fosse apanhada na ratada, levaria com o cabo do satcho pelo lombo abaixo, mas sabia, igualmente, que o Patalão se ocupava na sacha das batatas da leira do Corgo que não medravam por mor dos sintchos que as tolhiam. Por isso arriscou e guindou-se à cerdeira.

 

Encheu o fole quanto pôde e para a ceia ainda proveu uma farta abada.

 

Não estou bem certo, mas pelo desfecho do episódio a Maria teria enfardado para mais de cinco quilos de cereja francesa, não contando, evidentemente, com a potencial “carne” que pudessem ter!

 

O pior foi o que se seguiu!...

 

No dia seguinte, derreada às exigências da natureza, foi para o pátio. De cócoras, como sempre, tentou aliviar-se daquele pedido urgente que o seu intestino grosso lhe fazia. Contudo, não conseguia obter qualquer resultado e nem tão pouco conseguia perceber qualquer indício de se poder ver livre daquele desejo.

 

A barriga inchava cada vez mais, os suores frios davam lugar a torpores insuportáveis.

 

A Maria cuidava em rebentar!

 

A tripa grossa roncava quanto podia e a desgraçada não a conseguia sossegar!

 

A explicação residia no facto da Maria, esfaimada, ter engolido as carabunhas das cerejas que se amontoaram no reto e o obstruíram de tal forma que a canalização nem o “bento” deixavam passar!

 

E agora?

 

Médico não havia e que houvesse, não havia pilim para lhe pagar!...

 

Por isso, recorreu aos serviços da Tia Cândida, a médica da aldeia, que tudo curava com rezas e mezinhas. Todavia, esta doença, parecia não ir lá com estas prescrições e por isso era preciso encontrar outra solução, mesmo que radical.

 

Levaram a Maria para o pátio da Tia Cândida onde tinha sido espalhado um molho de colmo centeio para lhe servir de mesa de operações. Puseram-na de rabo para o ar e com as vergonhas ao léu. A aldeia em peso assistia ao inédito da operação.

 

A Tia Cândida tirou um gancho do carrapito e com a parte redonda foi tirando do bueiro carabunha por carabunha com paciência de Jó. Às tantas, com a pressão aliviada, o intestino deu de si e explodiu como um vulcão. A Maria urrou de alívio e os curiosos que tinham o focinho mais perto para não perderem cibo, foram prendados com a lava generosa da cratera!

 

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Fotografia de Emanuel Rocha

 

Correram para o tanque do prado apavorados para lavar os focinhos. Contudo, iam felizes não só pelo espetáculo inédito da operação, mas sobretudo pela felicidade da Maria Carabunhas que se viu aliviada de tanto sofrimento!

 

Admirável solidariedade!

 

Benditas fossem as mãos da Tia Cândida e o seu engenho!

 

Valia mais o gancho do cabelo daquela santa mulher do que o bisturi afiado do melhor médico-cirurgião da cidade.

 

Coisas do Planalto!

 

Gil Santos

 

24
Mai19

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

O ESPANTALHO

 

O Ti Balele, de nome próprio Bernardo Medeiros, era um homem levado do catrino. Primogénito de uma família abastada da Veiga e com pouco mais para fazer na terra do que mandar, dedicava o mais do tempo ao ócio. Tecia refinadas diabruras ou passeava o non far niente pelos recantos idílicos da cidade do Tâmega. Dono e senhor de uma capacidade de imaginação notável, dominava as mais invulgares habilidades: tocava um sem número de instrumentos musicais apenas de ouvido; consertava rádios e mais tarde até as televisões de válvulas, concertinas e córdios, fogões a gás, motores de rega e de automóvel e inventava estranhos arcanhos para os mais inusitados propósitos!

 

Uma inteligência prodigiosa e rara a do Ti Babele! Que se parecesse só conheci a do Tio Júlio das Malhadeiras, dos Moreiras da Amoinha Nova, irmão do meu avô, herói combatente na Flandres.

 

O Balele vestia como um fidalgo: chapéu às três pancadas; brilhantina num cabelo às ondas penteado para trás, calça de risca ao fundo, tocando levemente num sapato de salto médio com protetores para que tocassem o ritmo gingão das passadas nas pedras da calçada, camisa de seda de um branco imaculado com colarinhos à teta de cabra caindo sobre as dobras do casaco cintado. Aberta até ao peito, a camisa deixava ver os pêlos do peito, que quase não tinha. No anelar da mão direita exibia uma tchapola com um grande rubi e no da esquerda, uma outra, com a bandeira nacional. Quando se pavoneava pela cidade não ficava a dever nada ao mais refinado travolta. Passeava-se de café em café, galando as moças que desfilavam nos passeios. Vaza-as com um olhar ladino, despojava-as das sete fraldas sonhando navega-lhes a alva espuma dos seus brandos corpos!

 

Um verdadeiro marialva!..

 

Não havia festa nos arredores da cidade em que não estivesse com o seu Volkswagen carocha carregado de amigos. Pelo setembro, aquando do arraial de Valpaços, um dos mais afamados da região, carregava a caixa aberta da Bedford de rapazes e raparigas e subia a serra de S. Lourenço a passo de caracol até que o planalto permitisse engrenar a prise e seguir mais ligeiro. Chegando a Valpaços, descarregava num qualquer souto, comprava cinco ou seis melões casca de carvalho da Terra Quente e lerpavam-nos ali mesmo sobre qualquer penedo. Bebiam uns canecos do tinto velho de Santa Maria de Emeres e como tegos bailavam, bailavam, umas vezes no ringue, pago, outras no terreiro, livre. Às tantas da matina, admiravam o fogo-de-artifício que era famoso e quando a aurora mostrasse a fuça, regressavam, mais mortos do que vivos.

 

Por Deus querer, nunca se esbandalhou ao descer, desengatado, a encosta de S. Lourenço. É que era mais o vinho e o cansaço a guiar do que a própria razão!

 

Casou já quarentão. Porém, tanto escolheu, tanto escolheu, que lhe saiu o gado mosqueiro! Calhou-lhe uma flor que pouco tempo lhe compôs a jarra! Meia dúzia de anos bastaram para que apartassem fazenda e cada um fosse curtir a solidão para sua banda. Assim se mantiveram até que a morte os varreu.

 

Falando em tropelias, partilhemos então algumas daquelas que o fizeram notado.

 

Andava há tempos com a cisma de que as vasilhas tradicionais de castanho lhe avinagravam o vinho. A partir de meia vasilha, apesar da estrafega, na lua mais favorável, o vinho azedava. Resolveu, então, experimentar a cuba de cimento. Achava ele que sendo mais fresca, faria com que o tintol durasse mais sem se estragar. Meu dito meu feito, botou mãos à obra. Passado um mês, tinha a dita cuba construída e com capacidade para cinco pipas. Uma obra admirável, não pelo tamanho mas pela novidade que constituía à época. Logo na colheita de setembro atestou-a com o mosto de Anelhe e esperou que a pinga desse de si. Diz o adágio que no S. Martinho se vai à adega e se prova o vinho. Assim foi. Provou-o e de facto estava uma pinga do caraito. Que vinhaça! Cristalina à luz, encorpada, sabor a fruta silvestre!.. É claro que só podia dever-se à qualidade da vasilha! Noutros anos, também tinha afogado no mosto um pedaço de toicinho da pá e nem por isso o tintol ficara tão apurado.

 

Ao Domingo, não faltava gente a rondar-lhe a para molhar o bico, era um corridinho! Qualquer convidado, por muito biqueiro que fosse, não deixava de, com o órgão do paladar, colorir o ambiente dos apreciadores profissionais com aquele estalido da praxe no fim de um bom golo de tinto: splachhhh! Porém, aquilo estava a tornar-se insuportável. O medidor externo do nível da cuba ia assinalando descidas acentuadas. Era como quem alimentava burros a pão-de-ló! Havia de se fazer qualquer coisa porque, por aquele andar, o tintol não teria tempo sequer ao menos para azedar e lá se ia a experiência.

 

Não esteve para modas: fechou-se na adega e com tinta e pincel desenhou, na frontaria da dita cuba, um tufo de cachos reluzentes escrevendo a seguinte frase em letras pouco menos do que garrafais:

 

Beba, não se faça burro!

 

É claro que para os mais esclarecidos a mensagem passou. O pior é que muitos dos seus amigos não sabiam ler nem escrever!.. O que é facto é que após o escrito o vinho mingava mais d’amodinho. Contudo, não ao ponto de, pelo menos naquele ano, conseguir verificar se a cuba evitaria que o néctar entoldasse!..

 

De outra vez, meteu-se-lhe na cabeça esculpir um Deus Baco num tronco, taludo, de carvalho, para decoração da adega. Porém, fê-lo tão abantesma que quando o tentou meter junto aos tonéis, batia com a cabeça nas traves de castanho que seguravam o sobrado. Para além do mais, desvirtuava o aspecto genérico da adega. À falta de melhor sítio, pregou com ele no telhado fronteiro de sua casa, em cima de um pedestal de cimento como se de uma estátua se tratasse. Colocou-lhe entre os braços, semiabertos, um arco de ferro com a seguinte frase:

 

Diz lá, quem te bateu?

 

Nunca ninguém percebeu o que ele quereria com aquele dezer. Tão pouco alguma vez o explicou. Talvez o propósito estivesse muito avançado para as mentes daquela época!.. A escultura era de tal forma esquisita que intrigava quem a admirava. Inclusivamente as mães, para obrigar os crianços a comer o caldo, ameaçavam-nos com o quem te bateu e a coisa funcionava!.. Ao menos isso!

 

Noutra ocasião pegou num volumoso livro que andava lá por casa, talvez uma velha Bíblia Sagrada. Com a paciência do chinês, recortou-lhe as folhas interiores até conseguir espaço para introduzir um arcanho eléctrico que ele próprio fabricara. Destinava-se a premiar a curiosidade de quem o abria com um piparote eléctrico do catano! Encapou o livro cuidadosamente com um colorido papel de estanho, matéria condutora da electricidade. Decorou apelativamente a capa com umas imagens de mulheres seminuas, como convinha para atrair as atenções.

 

A primeira vez que o pôs à prova foi no café Brasil onde havia uns bilhares muito usados pela rapaziada. Um dia, chegou um pouco depois do almoço. Não estava ainda ninguém por lá a dar ao taco. Cuidadosamente, colocou o livro sobre uma das mesas de bilhar. Armou a geringonça e foi tomar o seu café.

 

Não demorou mais de meia dúzia de minutos, dois matarruanos que vieram feirar entraram, filando de imediato as imagens apelativas da capa. Cegaram-se como se cegam os pinchos com o grilo na pescoceira.

 

— Ele que caraito é isto? — botava o mais afoito!

Num bês, é um libro de gaijas! — constatava o outro.

De gaijas? Bem mou finto!..

Astrebeibos a abririo e vereides a Greta Garbo toda nuzinha — disse o Balele desde o balcão, para lhes aguçar, ainda mais, o apetite!..

Atão num astrebemos! — responderam corajosos.

 

Um deles botou-lhe as unhas e mal o escancarou, a máquina deu de si e aí vai aço!..

 

Pu** que pariu!.. — berrou surpreendido, largando o livro que, às cambalhotas pelo ar, se esbandalhou escontra a parede fronteira!..

Arra fonha-se que vossemecê agora é que me fo***! Vá lá p’ro car**** que o recontrafo** amais o libro. E arrousse-se daqui para casa do carbalho entes que le fo** as bentas!..

 

Quem assistiu ao espectáculo riu a bom rir. É que galhofas destas só na Lapa, uma vez por ano, com os palhaços do Cardinalli.

 

De outra vez comprou, creio que a uns ciganos que faziam negócio com material vindo de Andorra, um auto-rádio que montou no seu carocha. Um cantante que fazia as delícias e a inveja dos seus amigos. Tocava os fados da Amália, os rocks do Travolta ou as baladas de Nelson Ned e Mari Sol com tanta categoria que chegava a fazer arrepiar quem as ouvia. Aliás, moça que aceitasse escuitar um destes temas, só conseguia sair do carro com duas beijocas nas trombas! E se não fosse mais! Mas, o rádio, tinha um problema que afligia quantos o admiravam: não tinha marca! Cada vez que alguém o olhava não deixava de lhe notar aquela ausência.

 

Poderia lá ser, um rádio tão bom e sem marca!..

 

O Balele tanto se encheu daquilo, que um dia sentou-se na banca de trabalho e desenhou, numa placa de alumínio fino, a marca do rádio. Letras minúsculas que recortou com a minúcia do cirurgião. Depois de pronto o trabalho parecia produto de fábrica. Colou-a no lugar aprazado:

 

MERDEX

 

Daí por diante nunca mais ninguém ousou afirmar que aquele rádio não tinha marca!.. Problema resolvido!

 

Certa ocasião constou que um dos criados de sua casa tinha falecido no Tâmega, ali para os lados da Galinheira, quando à hora de sesta se banhava nas águas frias. Dizia-se que o corpo não teria aparecido por ter sido engolido num dos muitos redemoinhos que por lá havia. De facto, até hoje, o desgraçado não deu à costa. Porém, isso não obstou a que se tentasse levar por diante um funeral digno. O Balele, numa tarde de segada na Veiga, fez constar, entre o rancho de trabalhadores, que o corpo tinha aparecido. Que estava em câmara ardente no salão grande da casa. No regresso do trabalho todos poderiam por fim participar no velório, rezando um terço por sua alma. Teve a tarde toda para preparar a cena como lhe convinha. Contratou um amigo cangalheiro e juntos prepararam os mais refinados pormenores que se exigiam num mortório: a urna repousando sobre suportes cromados, os candelabros de azeite ardendo mortiços e uma grande cruz sobre a cabeceira, encimando um grande pano roxo. Na urna repousava um volume a fazer de corpo, completamente coberto por um véu preto opaco, como convinha. É evidente que aquele volume não passava de um fato velho preenchido com feno e uma cara deslavada fabricada de pasta de papel de jornal. Tudo tão bem preparado que, ao longe e na penumbra, imitava na perfeição o defunto. Fez passar uma corda fina pelo estrebão da casa, ligando o pescoço do defunto a uma sala contígua. A corda estava perfeitamente camuflada pelas colchas roxas que adornavam a cabeceira. Acontecia que quando se puxasse a corda na outra sala, o defunto levantava-se de supetão, com grande estardalhaço, por ter presas às pernas campainhas dos bois.

 

Quando pela tardinha as pessoas que regressavam do campo, passavam por lá, botavam água benta e rezavam um padre-nosso pela alma do infeliz. À noite botavam o terço e as ladainhas do costume. Foi contratada a tia Cândida para debitar as Avé-Marias.

 

A noite foi chegando e com ela os muito afanados fiéis. Tudo pronto e a Tia Cândida deu início às rezas com a sala repleta. O sobrado de castanho rangia com o peso do povo. Botou Avé-Marias e Padre-Nossos quantos pôde e quando tudo já dormitava naquele rame rame, o Balele, sorrateiro, esgueirou-se para a sala contígua. Quando lhe pareceu, deu um puxão à corda o que fez saltar o morto que, aos toques endiabrados dos guizos, ficou pendurado, à laia de enforcado, na trave da sala.

 

Meu amigo… O pânico foi de tal ordem que quem não desmaiou precipitou-se para a porta estreita para dar de frosques. Porém, o peso inusitado de tanta gente aglomerada sobre os caibros que sustentavam o sobrado, junto à porta de saída, fê-los ceder e foi tudo parar à loje dos recos, numa escuridão total. O morto, baloiçando na trave, continuava a fazer tilintar as campainhas. Homens e mulheres, numa amálgama, chafurdavam no esterco da corte. Os desgraçados dos recos grunhiam assustados como diabos, fazendo da cena um autêntico Inferno de Dante. Os que puderam escapar-se pela porta da loje para o pátio, largaram desenfreados rua acima. Os que ficaram gritavam como almas penadas, cuidando estarem já a caminho das parafundas do inferno. Só visto!

 

Quando passado algum tempo tudo se esclareceu, o Balele teve de fugir para a Póvoa de Varzim para não levar nos cornos. E com rezão!

 

Contudo, não demorou que regressasse na paz do senhor porque, apesar de tudo, já ninguém deixava de se rir com o arrojo daquele espantalho!

 

Gil Santos

 

22
Fev19

Discursos Sobre a Cidade


GIL

Caldo de coirato

 

Ter água canalizada em casa era um luxo quase proibido nas aldeias rurais dos anos quarenta. As fontes públicas resolviam todas as necessidades. Fossem os fontanários, ou as populares fontes de mergulho, toda a gente aí se abastecia do precioso líquido. Nos fontanários, os cântaros de barro de Nantes, e mais tarde os de folha-de-flandres, aparavam a água da bica, que nem o verão, por mais quente que fosse, conseguia escoucar! Nas fontes de mergulho recolhiam-na de uma espécie de poço onde se mergulhavam as vasilhas. Está bom de ver que nestas tanto mergulhava um cântaro limpo, como o balde dos recos que muito provavelmente teria andado aos emboleques na estrumeira! Por isso, a higiene não era um predicado destes usos ancestrais, nem tão pouco uma preocupação!

 

E assim se vivia desde os alvores da história!

 

O Carregal não fugia à regra.

 

No Prado, num recanto sombrio, olvidado, ainda lá está a dita cuja. Acedia-se à água através de uma grande janela com um parapeito de perpianho muito gasto pelo uso de séculos.

 

A fonte, há muito andava a meter nojo aos mais esclarecidos do lugar, nos quais se incluía o Ti Moreiras, antigo combatente da guerra dos dezassete. Na impossibilidade de disciplinar os hábitos da gente, por virem dos alvores da sua existência, pensou o Ti Moreiras construir poço próprio no pátio novo de sua casa, para se salvar daquela nojeira Tanto mais que na altura estava na moda o furo artesiano, encamisado a lusalite.

 

Para o efeito, contratou um artista de Serapicos. Acertado o preço, encomendou-lhe o trabalho. Semana e meia bastou para que de um furo de quarenta metros jorrasse água a rodos. O precioso líquido era conduzido à superfície por uma bomba de alavanca, um arcanho a que se dava o pomposo nome, afrancesado, de cacherelle. Abanava-se o zingarelho, para cima e para baixo, e após meia dúzia de bombadas era um regalo ver jorrar a água, aos golos, pelos queixos do ferro fundido. Funcionava que era uma maravilha! Porém, passado algum tempo, a água começou a sair tão ferrugenta e com tão mau gosto, que até os animais bitchos a rejeitavam. Seria, por’i, da ferrugem do cano que a trazia à superfície, ou, quiçá, do lusalite, quem sabe? Foi uma desilusão, gastar tanto dinheiro e ter de recorrer, de novo, à fonte do Prado para fazer o caldo!...

 

Não restava, porém, outro remédio!..

 

Naquele tempo, a iluminação das casas era fraquíssima. A candeia a petróleo ou a azeite, mesmo auxiliada pela labareda das fronças da giesta da fogueira, não permitiam, sequer, ler o jornal, quanto mais enxergar o que se jantava!

 

Ora, foi exactamente desta dificuldade que nasceu o caso que se relata.

 

Anoitecia já quando a Aida, criada da casa do Ti Moreiras, se apercebeu de que o cântaro da água estava escoucado. Como era hora de fazer o caldo havia que ir rapidamente à fonte. Chegou, de mergulho encheu o cântaro, pô-lo à cabeça sobre a rodilha e nem sequer teve tempo para dois dedos de conversa com os rapazes que aproveitavam o ensejo para cortejar as moças na fonte.

 

Directamente da vasilha encheu o pote, e quando a água fervia, juntou a batata, a couve o feijão e coirato do porco e tudo o mais que fazia gordo o caldo do lavrador. Deixou-a ferver até apurar enquanto foi dar de comer aos coelhos de que se havia esquecido. Na hora de cear, como ao tempo se dizia, era comum comer o caldo somente no final da refeição.

 

Manel Cabeça Grande, o criado, apreciava rilhar os coiratos, ainda mal cozidos, que deixava, religiosamente, para a sobremesa. Mascá-los, vagarosamente, devia dar-lhe o mesmo gozo que os chicletes dão hoje à rapaziada! Digo eu!

 

A Aida lançou-lhe o caldo na malga preta de Nantes, À luz, mortiça, da candeia tragou-o apressado pois esperava-o um serão de lerpa com os amigos.

 

Coirato na boca, trincou, mascou, voltou a trincar, mas havia qualquer coisa de diferente naquele cibo do isco do caldo.

 

O gosto não lhe era familiar!

 

Não lhe parecia mau, o problema é que o bocado não dava de si como habitualmente, à força trituradora das suas mós. Teimou, insistiu, voltou a teimar e à falta de paciência, chegou-se ao canto da lareira, onde a luz era mais forte à conta da labareda de uma fronça que ardia, e botou o petisco para dentro da malga!..

 

Horror dos horrores!...

 

Espanto dos espantos!...

 

Diabo dos diabos!...

 

Oh miséria excomungada!...

 

Era uma salamandra que entrou à socapa para o cântaro e foi cozida com os feijões e as couves!..

 

Era para esgomitar o caldo, mas, ao fim e ao cabo, soubera-lhe tão bem que era um desperdício fazê-lo!..

 

Gil Santos

 

 

25
Jan19

Discursos Sobre a Cidade, por Gil Santos


GIL

 

bota-le binho, catano!

 

Conheci o Ti Chico Milheiro já velhote.

 

Nas torreiras de agosto, juntava a mocidade à sombra da copa do negrilho do Prado e alapado na massadoura, entretinha os seus largos anos com as reações às curiosas estórias de vida que sorvíamos como a água da bica em tardes de canícula.

 

Escutei-lhe muitas!

 

Olvidaram-se-me quase todas.

 

Retenho, tão-somente, esta que vos conto.

 

O Chico Milheiro nasceu pobre em Milhais, lá para os lados de Mirandela.

 

Ficou órfão de pai e mãe muito cedo, por isso, teve de ser fazer à vida, na qualidade de moço de servir, na tenra idade dos quinze anos,

 

Tirando a fartura de bogas do Rabaçal que pescava na desova, em tempo das formigas fazerem carreira como ele dizia, dos coelhos e das lebres que caçava nos laços que armava com mestria, passou fome de rato.

 

Serviu inúmeros patrões, levou muitos pontapés no rabo, trabalhou de sol a sol, comeu o pão que o diabo amassou, mas assim aprendeu a ler nas entrelinhas da agrura da vida o que mais lhe convinha em cada momento.

 

O Chico Milheiro tinha a sapiência da coruja e a manha da raposa. E, desta forma, tão cedo se fez à vida de serviçal como a deixou.

 

Não teria ainda um quarto de século quando, proprietário de uma leira de couves, passou a servir-se a si próprio. Botou umas colmeias, únicas nas redondezas, e quase só com elas se sustentava no Carregal, onde fixou residência. Ao tempo, o mel era remédio para quase todos os males. Vendia-se bem para qualquer mezinha. Contudo, a escassez de produção, mal dava para a sobrevivência.

 

Pobre sim, mas orgulhosamente dono de si e da sua vontade!

 

Como dissemos antes, fez-se à vida pelos quinze anos, idade em que a força de crescer tonifica os músculos e dá ao corpo a forma masculina do homem bravo. Procurou trabalho por terras de Valpaços. Encontrou-o em Água Revés, na casa de um lavrador rico mas usurário. A produção de vinho era a sua principal atividade. Durante o ano, o Chico, quando não trabalhava na vinha, trabalhava no bacelo. Porém, aguentou-se pouco tempo neste patrão. O homem estava sempre com pressa de o fazer bulir e mesmo nas sagradas horas do repasto, pressionava-o com a urgência dos trabalhos. Quase não o deixava engolir o cibo!

 

Um belo dia, o agiota, reparou que o Chico soprava ao caldo de vagens chitcharras que fumegava numa malga, sobre a tábua do escano onde comiam.

 

─ Despacha-te rapaz, temos a vinha da Silva para satchar!

─  O caldo escalda patrão!...

 

─ Ó home, bota-le áuga!...

Áuga?!!!.. Não, este patrão não me serve, concluiu!...

 

E tão depressa o pensou, como rumou a novo mundo à cata de melhores promessas!

 

Deu com novo patrão no Planalto, para os lados de Carvela. Um homem austero, que vivia unicamente da batata e do centeio. Sofria, porém, da mesma doença do anterior, o tempo era sempre curto para o trabalho.

 

Um certo dia, ainda no primeiro semestre do novo emprego, o Chico preparava-se para dar cabo das bentas a uma bela malga de caldo de lombarda, reluzente e fumegante. Fora lançada diretamente do pote, que à força do braseiro apurava num borbulhar de cachoeira nervosa. O Chico bem lhe bufava mas o raio do caldo não havia maneira de arrefecer.

 

─ Despacha-te, rapaz! Temos a leira dos Bagueiros para agradar esta tarde. Uma campina!...

─ O caldo está quente patrão!

 

─ Ó Chico, miga-a com pão!..

─ Pão?!!!... Ora essa, pão tenho-o eu à fartazana à minha frente, pensou o criado em silêncio.

 

Não demorou um mês a pôr a trouxa às costas e a procurar novo amo.

 

Rumou, desta feita, ao Carregal onde encontrou trabalho na casa do Ti Moreiras. Um lavrador remediado que repartia os seus dias entre o trabalho árduo da terra magra, que mal dava para a sobrevivência e o relato, apaixonado, das peripécias que viveu na Grande Guerra, onde fora combatente e prisioneiro em La Lys.

 

Também o Ti Moreiras gostava pouco de perder tempo, nomeadamente, a comer.

 

Um dia de malhada, pelo fim de um julho muito quente, criado e patrão sentaram-se à mesma mesa para repor as forças num lauto almoço de couve, toucinho e feijão vermelho. Encheram as bentas, que lá isso para comer, o Ti Moreiras, nunca deixou o crédito por mãos alheias! No final, como ainda é hábito em Trás-os-Montes, veio a malga de caldo, desta vez, de baijes.

 

Fervente!

 

O Chico bufava-lhe quanto podia, não só para a arrefecer, mas, sobretudo, para ver no que é que aquilo dava.

 

─ Apressa-te, home! A malhadeira não espera. Temos de acabar a malhada hoje!

─ O caldo está quente patrão!..

 

Bota-le binho, catano!..

─ Ah grande patrão, este é que me serve, finalmente!.. Disse para com os seus botões!

 

Laborou em casa do Ti Moreiras até desposar a Rosa, que ficou a ser Milheira também. Uma rapariga simples, mas trabalhadeira, filha da Tia Carminda da Rua, uma cabaneira pobre.

 

O empenho do Chico Milheiro foi tal que o patrão Moreiras aceitou apadrinhar o seu casamento. Prendou-o com uma pequena horta contígua ao casebre onde o Chico morava.

 

Não demorou que se despedisse.

 

A Rosa e o Chico trabalhavam à jeira. O soldo, a hortita e o mel das colmeias, sempre dava para viver, mal, mas, sequer ao menos, eram livres como passarinhos!

 

 

Tenho saudades das estórias do Ti Milheiro.

 

Alimentou muita da imaginação que me havia de fazer voar por sítios onde nunca fui capaz de ir sozinho.

 

Obrigado, Francisco Milheiro, também por reconhecer no Ti Moreiras, meu avô, as qualidades de homem bom que ele sempre foi!

 

Gil Santos

 

04
Jan19

Discursos Sobre a Cidade


SOUZA

 

A PROPÓSITO DO ÚLTIMO POEMA DO DIÁRIO DE MIGUEL TORGA

 

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A 27 de agosto de 2012, dávamos início a um blogue da nossa autoria.

 

No texto de abertura, escrevíamos:

 

Este é o blog da minha dissidência.

Das minhas noites de insónia.

E também dos meus sonhos, utopias.

Das minhas vigílias e dos meus, muitos, ocasos.

Da minha revolta. Das minhas contestações.

Da minha raiva.

Mais das razões que brotam do coração que da razão.

Do desabafo. Tentando deitar cá para fora tudo quanto lhe vai na alma.

Irreverente.

Contestatário.

Transgressor.

Inconformado.

Falando desta vida estuporada e dos “estupores” que dela se aproveitam.

Enfim, de um desenraizado que, na procura das raízes que o prendem a este «terrunho», berra, ameaça, grita, gesticula.

Mas que, no fundo, não passa de um ser à procura de sentido para tudo isto.

Por isso, este é o blog dos meus confrontos”.

 

Foi, positivamente, uma noite de insónia que ditou a criação daquele blogue.

 

Pensando nas nossas utopias e, por via delas, nas nossas dissidências.

 

Nas nossas, muitas, revoltas, raivas, contestações e desabafos. Querendo ser irreverente, contestatário, inconformado, transgressor. Falando da vida estuporada e dos estupores – infelizmente tantos - que dela se aproveitam, em detrimento de todos nós - a imensa maioria.

 

E como tudo isto é tão verdade e está, todos os dias, tanto à nossa vista!...

 

Queríamos berrar, ameaçar, gesticular, gritar… para que uma nova alvorada para o terrunho que o acaso da vida destinou que aqui viéssemos a viver.

 

Contudo, cremos, o peso dos anos foi mais forte e traiu-nos.

 

Titubeámos quase sempre e, passados seis anos, outra coisa não fizemos senão o que sempre fomos – um cidadão atento ao uso da sua cidadania e um professor/docente-educador, preocupado com o destino das gerações vindouras.

 

Também a nossa participação nesta rubrica «Discursos sobre a cidade» seguiu os mesmos trilhos.

 

Inopinadamente, a 7 de janeiro de 2014, naquele blogue, damos connosco a transcrever os poemas de Miguel Torga, acompanhados, cada um, de uma foto, dos 16 volumes do seu «Diário».

 

Até hoje não entendemos porque enveredámos por esta via.

 

Talvez o coração tenha razões que a razão desconhece, tal como diz o ditado…

 

Adolfo Rocha, o nosso escritor maior, é um dos nossos. Transmontano. Do Douro. Das penedias do seu Reino Maravilhoso. Homem lúcido, crítico. Muito sofrido. Um pensador da Ibéria e sempre com o coração no seu Portugal.

 

A poesia de Adolfo Rocha, transubstanciado em Miguel Torga, é o traço de vida de um homem em luta consigo próprio e com a perenidade do ser humano.

 

Hoje, que deixámos há quatro dias o 2018 para trás, não resistimos a transcrever aqui o último poema do seu último «Diário».

 

Quanto a nós, e aos caminhos que nesta rubrica trilharemos, o futuro o dirá.

 

Não estamos, nestes dias iniciais de 2019, em nenhum ocaso, embora presenciemos a existência de muitos que todos os dias acontecem.

 

Talvez, por isso mesmo, este último poema do «Diário» de Torga, no qual o autor faz um sintético balanço da sua vida, seja um bom começo para refletirmos sobre os destinos que cada um quer dar a si próprio, à sua vida, à sua terra, a este país e a este Mundo, que caminha sem norte, lembrando-nos a imensidão dos sonhos que devemos ter, mas nunca esquecendo da enorme pequenez de que somos feitos.

 

A paz, a sã convivência, a justiça e a equidade da nossa vida em sociedade não pode estar dissociada da enorme pequenez que somos - uma pequena e minúscula gota de água na correnteza de um rio que se precipita no imenso mar da Humanidade de que todos nós fazemos parte.

 

REQUIEM POR MIM

 

Aproxima-se o fim.

E tenho pena de acabar assim,

Em vez de natureza consumada,

Ruína humana.

Inválido do corpo

E tolhido da alma.

Morto em todos os órgãos e sentidos.

Longo foi o caminho e desmedidos

Os sonhos que nele tive.

Mas ninguém vive

Contra as leis do destino.

E o destino não quis

Que eu me cumprisse como porfiei,

E caísse de pé, num desafio.

Rio feliz a ir de encontro ao mar

Desaguar,

E, em largo oceano, eternizar

O seu esplendor torrencial de rio.

 

Coimbra, 10 de Dezembro de 1993

 

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António de Souza e Silva

 

 

 

 

28
Dez18

Discursos sobre a cidade - Por Gil Santos


GIL

 

A RAÇÃO NÃO É PARA QUEM SE TALHA...

 

Diz o povo que dos Santos ao Natal é Inverno natural. A bem dezer não sei se ainda é assim ou se já foi. É que está tudo tão mudado que até os adágios começam a querer mentir! Seja lá como for, há muitos, muitos anos… não tantos que encontremos o homem nas cavernas, os Invernos no Planalto do Brunheiro davam pelos peitos a uma mula! O mesmo é dizer que eram duros como o granito porfiróide do Alto da Cunha. Começava a gear por meados de outubro e até maio eram dias infindáveis de carambelo. Não passava o ano sem meia dúzia de fortes nevões. Nessas ocasiões, o que valia ao povo e ao gado era o que se guardava nas adegas e nos palheiros. Os bichos comiam o feno ripado, quando o havia, o povo as baijes de palheiro regadas com um fiozito de azeite — para quem o tinha — e um cibo de carne da pá, rijada, ou uma malga de caldo engodado com pingue. E viva o velho!

 

Quem avezasse uma ceva para matar pelo Ano Novo era considerado rico! Devidamente poupado, o requito e seus derivados haviam de dar até Natal seguinte. Para curar as carnes, o tempo queria-se frio e seco. Da ceva faziam os planálticos uma espécie de multiplicação dos pães. Milagres autênticos que multiplicavam, por mais de mil, as potencialidades gastronómicas do animal.

 

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Para a engorda, os porcos tinham de ser capados. O macho para que não ficasse borrão e a fêmea para que não se levantasse à cria. O borrão destinava-se à cobrição. Normalmente, por cada aldeia bondava um para pôr as recas ao ganho. Ao ritual da capagem assisti diversas vezes. Impressionava mais do que a própria matança. O capador, veterinário a martelo, andava pelas aldeias com um assobio próprio cuja melopeia anunciava a chegada. Quem precisasse da capar, reco ou reca, contratava-o. O serviço era rápido e eficiente. O primeiro passo da operação consistia em dispor a ferramenta cirúrgica sobre uma toalha de linho estendida num qualquer carro de bois que estivesse estacionado no pátio. De seguida, procedia à desinfeção do material com um líquido roxo que tingia tudo. Se o animal fosse macho, o cirurgião fazia um rasgo na bolsa escrotal e retirava os testículos agilmente. Desinfetava a ferida com aquele líquido, dava quatro pontos na dita, agora vazia, e pronto. No final, e já depois de tudo devidamente arrumado, era oferecido ao capador a iguaria frita e um copo de tinto. Em sendo reca, deitava-a de lado no chão, fazia uma pequena incisão no ventre e metendo dois dedos nas entranhas retirava aquilo que parecia ser uma pequena tripa. Desinfetava a incisão e por fim suturava-a. Os requinhos, durante dois dias andavam abatidos, mas logo arrebitavam para a engorda.

 

Depois de capados, os bichos eram alimentados como príncipes para que botassem corpo. Batata, farelo e castanha eram as principais iguarias para que se fizessem antchos. Comiam quanto o bucho levasse. Em Dezembro, as cevas, já quase não se levantavam por tão gordas estarem. Depois, antes do Natal ou perto do Ano Novo, conforme o tempo desse, o animal ia à faca. Era um ritual interessante, atualmente com tendência a ser engolido pela fatalidade da globalização. Marcava-se o dia com o matador, convidavam-se alguns vizinhos e tudo acontecia mais ou menos assim:

 

Nos pátios, nas eiras ou noutros lugares que se achassem azados, colocava-se um banco corrido, tosco, de quatro patas canejas para que tivesse mais estabilidade. O carrasco dava os últimos retoques no facalhão de lâmina dupla com uma pedra de afiar. Os homens arregaçavam as mangas e à sua ordem abriam a cancela da loje onde estava a vítima. O requinho parece que até adivinhava. Mal se abria, saltava numa gritaria medonha como se de um cristão se tratasse. Botava-se para o pátio e quatro homens, dos mais fortes, cravavam-lhes as unhas nas orelhas, no rabo e nas patas e estendiam-no de cangalhas sobre o banco da morte. Passavam-lhe uma corda pela queixada prendendo-o ao banco. Bem seguro grunhia quanto podia, mas nem por isso comovia os algozes! Quando aprouvesse ao matador, metia-lhe a faca na garganta e de uma estocada fazia-lha chegar ao coração. A morte era rápida quando era experimentado. Caso contrário, o animal tinha muitos minutos de agonia até que a estocada certeira o ferisse de morte. O sangue jorrava em golfadas pelo boeiro que a faca abrira. Com a orientação desta, caía num alguidar de barro, aparado, quase sempre, por uma mulher, que, após a colheita, passava minutos infindos a batê-lo com uma cebola descascada para que não tralhasse. Depois de bem morto e ainda no banco, o porco era chamuscado. Com fachucos de palha a arder, dois dos mais experimentados queimavam a pelagem do animal sem deixar que o couro se tisnasse. A seguir, era a vez de o lavar. Retirava-se do banco para uma cama de colmo limpo. Três ou quatro homens de ásperas pedras na mão fazendo de esfregão, raspavam quanto podiam para pôr o defunto limpinho. Era a vez da canalha se tornar útil pois cabia-lhe botar a água sobre as mãos dos lavadores. Não era um trabalho fácil porque eles exigiam que o fio fosse constante e caísse no sítio certo. O campeão haveria de ganhar o rojão das palhas! Esta fase terminava com o ritual da confeção do tal rojão. Um dos homens torcia um punhado de colmo. Introduzia-o no cu do reco para lhe limpar a parte terminal do intestino grosso que ficara sujo nas ânsias da morte. A este fachuco chamavam então o rojão das palhas, noutras bandas também rojão do banco, e era oferecido a quem tivesse demonstrado melhor desempenho na tarefa de botar a água.

 

À lavagem das orelhas dedico especial atenção. Era um momento único. Quando algum farsola, menos habituado a estes trabalhos, os apreciava curioso, era hábito ser atraído para a manobra da lavagem dos pavilhões orelhudos do reco. Pediam que se aproximasse o mais que pudesse, mandavam encher a orelheira de água, indejavam bem e, quando lhes parecia, espanavam-na na direção do observador que, como se advinha, ficava salpicado de água suja. Surpreendido pelo gesto inusitado que não esperava, ficava puto! Uma risota!

 

A seguir punha-se, já limpinho, sobre o banco onde morreu. Agora de barriga para cima. Era a fase da abertura. O matador afiava as facas da especialidade que cortavam como lâminas e desenhava o corte com a ponta da uma delas através de um rasgo superficial. Então passava a retirar a couracha, que havia de servir para fazer as alheiras. Depois extraía o soventre e o redanho para os rojões que entregavam às mulheres e ia os potes ferver. Depois de horas de lume, com uma escumadeira tiravam-se os rojões e, com a gordura fervente, enchiam-se potas de barro de Nantes. Era o pingue ou adubo e serviria, ao longo do ano, para temperar o caldo. Depois disto, passavam uma corda pelo osso que unia os ilíacos e, à força de braços, penduravam o morto numa trave da adega, de focinho para baixo. Era a fase de retirar as entranhas. Com a ponta da faca fazia um corte longitudinal e a tripalhada caia sobre um lençol branco que duas mulheres seguravam e a que chamavam panal. Dali as tripas iam para lavar. Era um trabalho árduo que cabia igualmente às mulheres. Árduo por várias razões: primeiro, porque era preciso limpar a parte mais suja do animal; segundo, porque a água estava muito fria, terceiro porque, por vezes, era preciso calcorrear grandes distâncias à procura de água corrente que no planalto é rara. Depois de limpa das vísceras, a carcaça, haveria de estar dois dias à espera da desfeita. No final deste trabalho, o pessoal que participou na matança era convidado para almoçar e do repasto faria parte o verde — sangue cozido — e os rojões. Tudo regado com um bom maduro tinto de Cova do Ladrão. De tarde, os homens, normalmente, não faziam nada por culpa do tintol!

 

Passados dias, o matador era de novo chamado, agora para a desfeita. Consistia a operação em separar a carne por categorias para posterior tratamento. Descia-se o porco, hirto e rosado, da trave onde esteve pendurado, para o colocar, de barriga para cima, na adega, numa cama de colmo centeio. Começava, então, por se lhe cortar as patas e retirar a cabeça da qual se separava a focinheira e a orelheira. Depois, colocavam-no de costas e com um fio desenhavam dois traços paralelos e longitudinais do cachaço ao rabo, marcando uma faixa a cortar a que se dava o nome de enguião. Seguidamente, retiravam o lombo e os lombelos, assim como as costelas e a espinha. Os presuntos, agarrados ainda às pás, iam para a salgadeira. Aí, envoltos em sal, repousariam cerca de um mês. Passado esse tempo, eram cortados e com os cimos das pás eram colocados ao fumo, para acabar uma cura de cerca de outro mês. Finda esta curtição, colocavam-se na adega para consumo, ou para venda.

 

Cabeça, enguião costelas e espinha destinam-se ao fumeiro, A carne magra e alguma entremeada ia para a sorça e dava origem aos salpicões e às linguiças. O resto era cozido. Os ossos da suã, descarnados para os chouriços e as alheiras. Um trabalho pesado que cabia igualmente às mulheres. Orgulhavam a casa quando exibiam, vaidosas, dúzias de lareiros com o fumeiro alinhado sobre a lareira.

 

Na maior parte das casas, a matança do porco e os produtos daí resultantes destinavam-se ao consumo próprio durante o ano. E feliz de quem matava pelo menos uma ceva!.. Nas casas mais fartas chegavam a matar-se meia dúzia delas. Havia até quem matasse para vender os presuntos (afinal a parte mais nobre do animal) e o fumeiro, resultando, muitas vezes, no único rendimento da casa.

 

Hoje estão muito em voga as feiras do fumeiro. Abençoadas terras transmontanas que as organizam. Elas proporcionam o afluxo de muitos forasteiros que ávidos de sabores genuínos, ajudam a preservar as tradições do fabrico dos enchidos e interessantes rendimentos a quem se dedica a esta atividade.

 

Ora, a casa do Ti Zé Paranhos era uma destas. A Paranhas, quanta chouriça defumasse, quanta vendia no mercado de Chaves. Nos primeiros meses do ano, não falhava a uma feira. Madrugava, juntava-se com as parceiras de outros lugares e Brunheiro abaixo lá ia, cada qual com sua giga, vender o produto do trabalho. Umas levavam fumeiro, outras níscaros, castanhas, coelhos, pitas, perus e sei lá o que mais. E quase sempre regressavam leves, com as cestas vazias e os bolsos cheios com o produto das vendas. Os mimos do Planalto eram considerados pelos flavienses, sequiosos da qualidade dos produtos genuínos da terra. Compravam quase tudo. E que mais houvesse!..

 

Num qualquer fevereiro, ainda pela alva, descia a serra até à praça do Arrabalde um rancho destas mulheres carregando daquelas iguarias. A Paranhas levava uma giga à cabeça com linguiças e uma seira no braço com salpicões. Não chovia mas a manhã demorava a despontar, culpa de um céu plúmbeo que fazia adivinhar por’i algum nevão. Mas, por graça do Divino Espírito Santo, enquanto iam, nem nevou nem choveu. Atravessaram a Ponte de Trajano quando os sinos da Madalena badalavam as sete da matina. No Arrabalde, pousaram sobre o lajedo do mercado e arreganharam a mercadoria. Lá foram vendendo, mas nada que se parecesse com o negócio de outros dias. As dos coelhos e das pitas ainda se safaram. No final do dia, à Paranhas, sobrava ainda metade daquilo que levara. A tarde estava a ficar feia e as léguas a percorrer até casa ainda consumiam umas boas três horas, era tempo de dar de frosques.

 

Arrumaram.

 

Quando se preparavam para partir, começou a cair uma folecra que fazia adivinhar o pior. Como de facto! Ainda não tinham chegado ao Raio X e já nevava que levava diabo. Subir a serra naquelas condições ia ser tarefa brava, se bem que ainda havia umas quatro horas com de dia. Isso sossegava-as.

 

Ao Chegarem a Lagarelhos, e com medo da fama das voltas das Cabeceiras, onde era hábito o Pita atacar, deu-lhes o dianho para largarem a estrada de Carrazedo e subirem a Nogueira da Montanha por Maços, para depois chegarem mais facilmente aos seus lugares. Contudo, às vezes, o diabo tece-as! A neve já mal deixava divisar o caminho. Entre calçada e carreiro acabaram por se perder. Não se via viv’alma por aqueles ermos. O medo da noite escura e dos lobos começava a instalar-se entre aquelas infelizes criaturas. Eis senão quando, ouviram um tropel de cavalo, abafado pela neve da vereda. Era a salvação, ou seria Belzebu em forma de alazão para as atazanar ainda mais?..

 

Um homem gerigoto, montado num cavalo bem arreado, estacou perto delas e perguntou:

 

— Boa tarde, senhoras, antão vossemecês que fazem a estas horas e por estes caminhos da fim do mundo?

 

Respondeu a Paranhas:

 

— Ó mou senhor, estemos perdidas! Para fugir às voltas das Cabeceiras, com o medo do Pita, metemos por aqui, mas a neve toldou os caminhos e não sabemos como ir para a Amoinha Velha.

 

Antão e d’onde bêm? — Insistiu o desconhecido.

 

— De Chaves, do mercado, fomos vender umas coisitas — respondeu Marcolina, uma das mais destemidas.

 

Antão e venderam tudo?

 

— Não, ou a modos qu’inda levo aqui meia giga de linguiças. — Respondeu a Paranhas.

 

— Pois atão vai pesada, coitada! Deixe cá ver a giga que eu la levo à garupa. Venham atrás de mim que les inxino o caminho.

 

E lá foram as vendedeiras enregeladas, atrás daquela esperança.

 

Chegadas a uma encruzilhada, o cavaleiro parou e indicou o caminho da direita como sendo aquele que deveriam seguir. Puxou a rédea esquerda do freio, espetou as esporas no flanco da montada e ala que se faz tarde, desapareceu por outro caminho.

 

— O alma do diabo fodeu-me as chouriças — Constatou a Paranhas aflita.

 

Filho de uma puta, em nas comendo que tenha uma esfoura que o leve o carbalho! — Desejava outra das companheiras.

 

— Do mal, o menos, Paranhas, ainda nos deixou os trocos da venda, vamos indo!.. — disse resignada a Aida Pataloa.

 

— Bem falaides, mas quem se fodeu fui eu… Raisteparta, alma do diabo!..

 

Passado uns meses souberam que quem afinal as tinha roubado tinha sido o malvado do Pita!

 

Deram graças a Deus por não ter sido pior. À fama que o sendeu tinha por aquelas serranias, podia ter ido o dinheiro, a roupa e sabe-se lá que mais!.. A sorte é que a neve deve ter refreado a cleptomania do gatuno, que, à laia do Zé do Telhado, trazia o Planalto em sobressalto.

 

Que se fonhessem as linguiças. Ficaram ainda as alheiras!..

 

Gil Santos

 

07
Dez18

Discursos Sobre a Cidade


SOUZA

 

DA MISÉRIA DA FILOSOFIA À FILOSOFIA DA MISÉRIA

 

 

                         Se quiser voltar a ser reconhecida como uma

                                      força de transformação da sociedade,

a social democracia terá de se definir novamente.

   Terá de recuperar a sua capacidade subversiva, libertária.

E isso é precisamente o que ela não é quando se apresenta

       como obstinada defensora do domínio do estado sobre

                                                           a economia e a sociedade.

 

                  Daniel Innerarity – A transformação da política

 

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Só em circunstâncias pontuais – e verdadeiramente excecionais – é que, nesta rubrica que rabiscamos, entramos na contenda político-partidária.

 

Todos têm o seu tempo. E o nosso, há muito, já passou.

 

Mas jamais poderemos prescindir, por imperativo ético, da nossa intervenção cívica e cidadã em assuntos que reputamos da maior importância para o que consideramos ser o esclarecimento e um maior amadurecimento da (nossa) democracia.

 

Na verdade, e na essência, em toda a nossa vida, sempre nos consideramos como um formador/educador. E é nesta vertente que, fundamentalmente, nossas palavras devem ser lidas e entendidas.

 

Obviamente, sempre, sujeitas ao princípio do contraditório.

 

Há seis anos, num dos nossos blogues, refletíamos sobre este tema, objeto do título do nosso Discurso de hoje.

 

Seis anos volvidos, com ligeiras alterações, aqui o deixamos à reflexão atenta dos nossos(as) leitores(as).

 

Só quem é cego é que não vê que estamos a passar por tempos de profundas mudanças.

 

A crise, de que tanto falamos, é precisamente um dos seus prenúncios.

 

E confesso-vos, caros(as) leitores(as), que, à força de tanto nela se falar; de se dizer que andamos todos depressivos por causa dela, também começamos por ficar agastado, irritado.

 

Nisto, como em muitas outras coisas, quando surge um problema, tendemos sempre a direcionar a «culpa» para ombros terceiros. Nós, cada um de nós, somos, não passamos de meras vítimas. Vitimas inocentes…

 

O bode expiatório aqui são os políticos. Desde que se trate da economia, da sociedade e da política mesmo.

 

Naturalmente que não queremos aqui desculpabilizar a classe política, tão falada nestes últimos tempos, pelos mais maus motivos. Muito pelo contrário. A classe política tem de se (re)formar e de procurar manter uma outra postura perante a vida e a coisa pública.

 

Mas, como vimos dizendo noutras ocasiões, e particularmente no nosso último «discurso», nós, cidadãos, simples cidadãos, não nos podemos puramente alhear, ao ponto de, só muito esporadicamente, quando a coisa calha a doer, é que nos manifestamos, lamentamos o estado de coisas a que chegámos, vociferando contra tudo e contra todos, e, natural e particularmente, contra a classe política.

 

É que, na verdade, nós fazemos parte dessa classe política que tanto anatemizamos. Pela decisões – nossas decisões – que, ao longo do tempo, e de décadas, tomámos, ao escolhermos este e não outro modelo de sociedade; este e não aqueloutro político. Este e não outro partido. Escolhemo-los e entrámos no jogo. Ou seja, outra coisa não fazemos que «jogar» o jogo deles.

 

Temos, por isso, de ter uma atitude mais séria e responsável quando protestamos.

 

Porventura não fomos todos nós que optámos pela criação deste Estado de Bem Estar Social para prover todas as nossas necessidades?

 

Porventura não fomos todos nós – ou, pelo menos, a maioria de nós – que optou por um Estado todo ele providência e autoritário, interventor em todos os extratos da sociedade?

 

Porventura não fomos todos nós – ou, pelo menos, a maioria de nós – que, ao criarmos um Estado tão mastodôntico, «mascarámos» as relações sociais e criámos um irresponsabilidade difusa e cega do indivíduo quanto às consequências sociais dos seus atos?

 

Porventura não fomos nós – ou, pelos menos, a maioria de nós – que criámos um «biombo», onde «acoitamos» e escondemos, muitas vezes, os interesses de grupos particulares, concorrenciais, e desleais, numa concentração de poder de grupos financeiros e de opinião, sem qualquer escrutínio?

 

Porventura não fomos todos nós – ou, pelo menos, a maioria de todos nós – que construímos a miragem de que o Estado construiria uma autêntica economia de mercado quando, como muito bem sabemos, muitas das grandes empresas não teriam alcançado as suas atuais dimensões sem a própria proteção estatal?

 

E não sabemos nós, porventura, que estes grandes consórcios são os menos interessados na existência de um mercado verdadeiramente livre?

 

Por acaso não sabemos, como diz Innerarity, citando Walter Oswalt, que «estamos a assistir a uma espécie de feudalização do capitalismo, a uma economia legal de pilhagem?»

 

 E de que os despojados dessa enorme massa de capital são os cidadãos?

 

Quando falamos de Estado, cidadãos e classe política, é efetivamente do conceito de polis, que a antiguidade clássica nos legou, e que queremos construir em função, e tendo em conta, os tempos modernos?

 

 Ou não será outra coisa?

 

Hoje somos todos clientes nesta sociedade do hiperconsumo desenfreado.

 

Pelo marketing – e pelos portentosos mecanismos e instrumentos que a internet propicia - somos todos analisados até aos mais ínfimos pormenores da nossa mente e intimidade!

 

 Somos, pura e simplesmente, todos clientes. Pior ainda – simples mercadoria! Mesmo as mais inocentes crianças!...

 

Foi, assim, no seguimento desta lógica mercantilista, que também criámos um Estado com uma administração cuja hidra não sabemos quantas cabeças tem!

 

Todos comem; todos sugam.

 

Porque essa é a verdadeira lógica da administração que temos. Sem clientes, não há partido; sem partido, não há poder; sem poder, não há repartição de proventos e prebendas!

 

É esta, infelizmente, a atual lógica da política. Comecemos pelas próprias freguesias. Na luta pelo poder destas pequenas unidades territoriais do Estado, cada candidato a presidente luta pela conquista do seu «freguês», do seu cliente. A quem, no final da contenda, a muitos ou à maioria deles, tem de lhes pagar o favor do voto que nele depositaram.

 

E, daqui para cima desta escala da administração do Estado, os métodos, embora mais sofisticados, são cada vez mais. Piores e muito maiores.

 

Um autêntico fartar vilanagem, um ver se te avias.

 

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Assim, caros(as) leitores(as), com uma lógica destas, com o passar dos tempos e com uma sociedade assente neste modelo e com estes procedimentos, como podemos ter solução e não irmos à falência?

 

Nos anos sessenta do século passado, enquanto preparávamos a nossa formação académica, defrontámo-nos com dois livros que muito nos impressionaram: um, de Marx – Da miséria da filosofia; o outro, de Proudhon – A filosofia da miséria.

 

 

Em traços gerais, na obra de Proudhon, aquele autor pretendia combater a «preguiça das massas», que está na origem de qualquer autoritarismo. E apregoava que o cidadão em vez de ceder à obsessão do poder deveria ser ensinado a fazer frente à tendência invasora da autoridade, confiando na sua própria capacidade.

Como muito bem diz Innerarity, se esta conceção libertária tivesse alcançado maior êxito e não fosse desacreditada por Karl Marx como utópica e pequeno-burguesa, a história dos direitos sociais e do movimento operário teria sido muito diferente.

 

Contudo, a disputa que pôs, frente a frente, estes dois livros – o mesmo que dizer, estes dois homens e estas duas correntes de pensamento - , saldou-se pela derrota do liberal perante o estatal, e o movimento operário propiciou a criação de uma maquinaria de redistribuição tendencialmente autoritária.

 

 Assim, desta forma, a sua consequência mais imediata foi conseguir para os trabalhadores bem-estar material, integração na sociedade, reconhecimento e direitos de cidadania.

 

Mas impediu a realização de projetos de auto-organização.

 

E foi aquele sistema vencedor que, durante mais de um século, marginalizou a conceição liberal ou libertária da social-democracia. E que hoje nos obriga a falar dela e ter de repensar numa nova conceção de social-democracia.

 

Esta nova conceção de social-democracia coincide com o neoliberalismo na recusa de dominar estatalmente a economia, a disciplina orçamental ou a independência do banco central; contudo, distingue-se dele por considerar o Estado como o quadro inevitável e regulador da vida social, o gerador dos elementos não contratuais do pacto social e o protetor do tecido social.

 

Esta social-democracia liberal previne-nos, não obstante, contra a ilusão de ver na justiça social a simples igualdade e não uma igualdade complexa, que nos põe a tónica não no nivelamento mas na igualdade de oportunidades.

 

Não é o mercado que é o responsável pela crise em que hoje se vive no mundo e particularmente na Europa. O problema é que, na verdade, não há uma verdadeira economia de mercado.

 

Lutamos muito contra a globalização. Errado!

 

Uma verdadeira globalização, no sentido primordial do termo liberal, significa o fim dos consórcios dos meios de comunicação, da finança e da indústria. E o facto de assim não acontecer não resulta da «inamovível lógica do capital» mas do intervencionismo do Estado.

 

Porque estas verdades têm de ser ditas. Doam a quem doerem, caros(as) leitores(as)!

 

Porque a crise do Estado do Bem Estar Social corresponde a uma crise de solidariedade – como são disso exemplo o crescente corporativismo, a economia subterrânea, a resistência às quotizações sociais ou a generalização à queixa que não atende às consequências públicas das suas reivindicações.

 

Os indivíduos não dispõem de qualquer meio para conhecer as relações entre as contribuições individuais e a sua utilização coletiva.

 

O Estado é um intermediário que obscurece as relações sociais, recobrindo solidariedade real com mecanismos anónimos e impessoais de tal maneira que ela não deixa de ser percebida.

 

O resultado consubstancia-se em irresponsabilidade generalizada.

 

Há, desta feita, que pôr cobro a este estado de coisas. Que não está isento de risco, é certo. Que nos obriga a atender a todas as realidades que os usuais modelos macroeconómicos rejeitam ou ignoram: os pequenos privilégios, a extrema heterogeneidade da condição salarial, a falta de equidade no trato fiscal, entre tantos outros…

 

A transparência tem o seu custo. Pode gerar tensões e conflitos.

 

Mas a conflitualidade reconhecida está na origem da autogeração social.

 

O ideal democrático não consiste em negar ou ignorar os conflitos mas em torna-los produtivos.

 

Não mitigando ou negando a realidade. Com verdade. Sem subterfúgios e mentiras.

 

Porque refundar o Estado não é aniquilá-lo, tal como os novos arautos do atual neoliberalismo sub-repticiamente pretendem, não tendo coragem de o apregoar: a que cúmulo chegámos!

 

Refundar o Estado é construir um novo mundo onde Estado, Economia e Sociedade desempenhem, cada um especificadamente, o seu papel, nas suas respetivas áreas de atuação, precisamente bem definidas, e no respeito mútuo e solidário de cada um dos campos, em prol e benefício do homem, do cidadão. De todo o cidadão.

 

Há, pois, hoje, que voltar a ler Marx e Proudhon.

 

Criticamente. Sem militantismos cegos ou ferozes. Com serenidade…

 

Pela nossa parte, proudhoniano nos confessamos!

 

A História, que hoje vivemos, para aí nos aponta…

 

Porque acreditamos sinceramente que, mesmo, e principalmente, ao nível do poder autárquico, mutatis mutandis, a solução dos nossos problemas não está em nenhum líder ou doutrina providencial. Está em todos nós. Conscientes, organizados, cooperantes e solidários numa sociedade complexa e fortemente desequilibrada, no que toca às relações entre os indivíduos e destes com a Natureza ou meio ambiente, nosso nicho, em que vivemos.

 

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Fará, hoje em dia, algum sentido este diálogo de surdos que, há mais de um século, temos consentido?...

 

António de Souza e Silva

 

23
Nov18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

A XARAGONA

 

 

Nem de riscado a Xaragona se sabia vestir!

 

Rais-te-parta que podão tamanho!...

 

Um bacamarte, como diria o povo!

 

Sobrava-lhe no corpo o que lhe faltava em miolo. E se o cérebro lhe tivesse medrado como o embrulho, haveria de ser uma das pessoas mais escorreitas do lugar. Mas a verdade é que, tirando a capacidade de se meter na vida dos outros e de retirar proventos do esforço alheio, nada mais se lhe aproveitava.

 

Uma microcéfala a Xaragona!

 

Má como um bestigo, era igualmente rancorosa, falsa e invejosa. Não podia ver um vizinho de camisa lavada que punha logo a sua à cora. E se alguém evidenciasse uma capacidade para si inalcançável, tudo fazia para a ridicularizar.

 

Cuspindo com frequência no prato que a alimentava, fazia da ingratidão lema de vida. Podiam dar-lhe a teta a vida inteira que na primeira oportunidade arrastaria pela lama a imagem de quem, cegamente, lhe alimentasse a incompetência!

 

Quando tinha que falar zurrava e fazia-o em tal registo que arrepiava até o mais incauto. Qual megafone anunciando a banha da cobra na Feira dos Santos!

 

Pior do que tudo é que conseguiu emprego na Junta de Freguesia. A pus de golpes baixos, conseguiu ludibriar o Presidente e fazer-se passar por muito competente nas coisas da coltura.

 

Ficou chefa da biblioteca da Junta!

 

Escusado será dizer que o Presidente era tão asno quanto ela, diga-se de passagem, porque quem se sujeita a ser escolhido pelo povo para o governar, tem de o conhecer bem, a não ser que finja que sim pelo poleiro, o que acontece o mais das vezes!

 

A biblioteca da Junta era a menina dos olhos da freguesia.

 

Já não havia necessidades da biblioteca itinerante da Gulbenkian todos os quinze dias. Mas se à Citröen da Gulbenkian ainda ia algum povo, à biblioteca da Junta não ia ninguém, só para não ouvir os urros da Xaragona!

 

A dita cuja transformou-se num espaço solitário, triste, cheio de teias de aranhão! Um espaço morto, bafiento que não despertava o interesse a ninguém. Parecia um jazigo de família, onde os livros dormiam um sono quase eterno! Só passar à porta já dava uma ranheira que nem o surto mais violento da pior sarna!

 

E se a biblioteca era rica!

 

Tinha até livros de estórias sobre a terra e as suas gentes, contudo, ninguém era capaz de saber que lá moravam!

 

O secretário da Junta, de nome Zebedeu, era um rapaz azadinho, que tinha andado na tropa em Mafra e que nos tempos livres se distraia a visitar a biblioteca do convento e a folhear alguns livros que lhe parecessem interessantes. Portanto, nutria pela livralhada um carinho muito especial e o facto de a sua biblioteca ser tão desprezada, andava a meter-lhe algum asco.

 

Começou a azucrinar os ouvidos do Presidente tentando convencê-lo de que tinha de pôr a Xaragona a cavar batatas que para isso ainda haveria de ter algum jeito. Custou-lhe, mas como “água mole em perda dura tanto dá inté que fura”, lá veio o dia em que o chefe ganhou, finalmente, coragem e lhe deu três meses para fazer a mala!

 

Caiu o Carmo e a Trindade!

 

Enlameou de tal forma o nome do autarca que dificilmente a reeleição seria um cenário possível. Mas o povo não é burro, pese embora muitas vezes o fingir!

 

A verdade é que quando ela soube que a responsabilidade do seu despedimento se deveu à insistência do secretário da Junta, não esteve com meias medidas, esperou que a aldeia fosse visitada por uma família cigana que vagueava de terra em terra e que tinha muito má fama, para encomendar um determinado serviço ao patriarca Jimenez. A troco de quinhentos marréis, por vingança, deveria partir os cornos ao Zebedeu na primeira esquina onde o encontrasse.

 

Pagou e aguardou pelo serviço.

 

Num domingo de invernia, jogava-se à lerpa na taberna do Milhais.

 

Numa das mesas estava Zebedeu e alguns amigos tentando esfolar os de Vale do Galo.

 

Páginas tantas, entrou o Jimenez acompanhado de dois farsolas, autênticos príncipes da navalha.

 

Ninguém previa que o copo de tinto que o Jimenez pediu ao taberneiro, servisse de mote à zaragata que se seguira. O cigano passou perto da mesa de Zebedeu, com o copo em riste e, como quem não quer a coisa, tocou-lhe, propositadamente, de raspão no braço para que o vinho se vertesse.

 

Tornou-lhe as culpas.

 

Após pequena discussão o pai dos ciganos pregou-lhe duas solhas no focinho. O Zebedeu, que não era para cantigas, ripostou. Os ciganos vieram em socorro do patriarca e armou-se tamanha zaragata que se não fosse a desproporção de forças tinha sido um caso sério. Os paisanos dominaram os gitanos com relativa facilidade e mais do que isso, obrigaram-nos a falar.

 

O Jimenez, apertado dos coletes, lá pôs a boca no trombone e contou tudo.

 

Ora, como as tascas na altura tinham o mesmo efeito que têm hoje as redes sociais na divulgação das notícias, o incidente fez cair a Xaragona em desgraça.

 

Doravante era desprezada por todos.

 

Caiu em tal desespero que teve de se ausentar para parte incerta sem que mais se lhe soubesse do paradouro.

 

O Presidente foi reeleito e a aldeia passou a viver na paz do senhor.

 

Xaragões agora, só mesmo os das camas de ferro forjado dos fregueses!

 

Gil Santos

 

 

 

02
Nov18

Discursos Sobre a Cidade


SOUZA

 

SONHAR BEM ACORDADOS

 

 

Por motivos de ordem pessoal e familiar vários, que aqui não vem ao caso, não nos foi possível acompanhar, como gostaríamos, a atividade autárquica do novo elenco camarário que, há um ano, tomou posse para conduzir os desígnios do desenvolvimento de Chaves e do seu concelho.

 

Estávamos para estar presente na sessão pública, levada a efeito, que fez o balanço de um ano de mandato de Nuno Vaz como presidente da nossa edilidade. Mas, também, infelizmente, não nos foi possível.

 

Procurámos, por outros meios, estar informados e saber o que, na primeira pessoa, Nuno Vaz disse, a propósito do primeiro ano de seu mandato.

 

Para o efeito, vimos e ouvimos a entrevista dada, no passado dia 23 de outubro, à Sinal TV.

 

Foi uma hora, dezasseis minutos e vinte e cinco segundos (1h16m25s) na qual pudemos, de uma forma atenta, compreender melhor o pensamento do nosso presidente de Câmara, quanto à «sua gestão», bem assim o balanço que faz da «sua governação» e do que se projeta para o futuro.

 

Temos, à cabeça, fazer uma «declaração de interesses». Ou seja, tudo quanto vamos expor parte de um militante socialista – que sempre o foi -, pese embora alguns «fervorosos», partidários «devotos» do PS de Chaves, que, em certas alturas, não nos tenha bem compreendido. Sempre vimos o exercício de cargos políticos, não como uma profissão, outrossim como um serviço à causa pública, que não a interesses particulares, pessoais ou partidários. Veja-se, nomeadamente, o que está acontecendo por esse mundo fora! Se é certo que a vida em sociedade não pode passar sem política e políticos, também é verdade que, nos respetivos cargos, não vale apenas  parecê-lo; é necessário sê-lo.

 

Feito este incisivo aparte, continuemos, pois.

 

Dizendo que, na apreciação que fazemos da entrevista, não temos em conta apenas a personalidade de um homem que é militante da mesma formação política a que pertencemos e que, em campanha, apoiámos. Mas temos demasiado amor à liberdade de pensamento e à democracia e aos Direitos Fundamentais do Homem, pela qual durante anos lutámos, para não nos deixarmos embotar. O nosso pensamento - nossos princípios e valores -, que sempre defendemos, ditam-nos que façamos uma apreciação desenfeudada e à revelia de qualquer proselitismo cego. Quando discordamos, fazemo-lo de uma forma frontal. Sem qualquer subserviência, porquanto este foi sempre o nosso timbre, o nosso lema.

 

Por isso, dizemos que, globalmente, gostámos e concordámos com o que Nuno Vaz disse naquela entrevista.

 

Há, contudo, aspetos de pormenor - que, bem vistas as coisas a fundo, não são tão assim -, com as quais não estamos totalmente de acordo.

 

Sabemos que Chaves se situa na área do interior e periférica do país, com problemas, sendo um dos maiores o de essencialmente de cariz demográfico, que faz com que o seu território, de baixa densidade populacional, em constante perda, tenha dificuldades em se regenerar e, assim, com sangue novo, poder catapultar-se para as tarefas do desenvolvimento de que tanto precisa.

 

Abandonada a ideia da criação da rede de cidades médias no país, aparecida nos anos 90 do século passado, como polos de desenvolvimento ou eixos dinamizadores dos seus territórios de proximidade, apenas nos restaram, (porque mais fáceis de levar a cabo, em tempo de captação votos), os grandes canais rodoviários que tão rapidamente nos levaram para o litoral e para o exterior. Ninguém de fora subiu até nós. E nós ficámos cada vez com menos gente e, consequentemente, mais pobres e envelhecidos. Porque nós é que descemos. Os que cá vão restando ou são autênticos resistentes ou então, provavelmente a grande maioria, esperam pela «sua vez», pela hora da sua «última chamada».

 

Tenhamos a coragem de afirmar que o país, e os seus políticos – sublinhe-se, com a nossa pacata benevolência -, abandonaram a ideia do desenvolvimento harmónico de todo o território nacional, com as consequentes desgraças que nos aconteceram e, infelizmente, vão continuar a acontecer, porquanto, o que mais interessa é o número de votos ganhos para o exercício do poder e não o país. Isto tem de ser dito com toda a clareza. E dureza. E principalmente apontar o dedo acusador àqueles políticos que, oriundos do interior, uma vez na capital do reino, facilmente se esqueceram do berço e das berças, embalados pelo canto da sereia das promessas da boa vida na capital. E das benesses do poder…

 

Foram quarenta e tal longos anos depois do 25 de Abril a se esquecer completamente esta realidade. Ou seja, não fomos capazes não só de ordenar como também de desenvolver, como um todo, o nosso país. O Poder Local é seguro que fez obra. E muita, diga-se. Mas, o mesmo, só por si, é (foi) completamente incapaz de reverter esta situação - a de profunda depressão em que o interior do país ficou mergulhado.

 

Por isso, o nosso presidente Nuno Vaz não tenha ilusões! Não há desenvolvimento territorial  que se cumpra e, consequentemente, territórios desenvolvidos, sem a presença dos dois eixos  (abertura ao exterior e coesão interna) e de quatro pilares (inovação, redes, aprendizagem/learning e governância), conforme figura abaixo se apresenta.

 

Grafico.png

 

 

Os dois eixos convergem num vértice, para aquilo a que chamamos «Densidade Institucional», como a capacidade dos atores e agentes locais, individuais e coletivos, das mais diversas índoles, se articularem, harmoniosa e empenhadamente, para, em cada setor, desde o económico ao cultural, para as diferentes tarefas do desenvolvimento.

 

Este é o modelo que há anos vimos defendendo e que, particularmente, nesta rubrica, temos reiteradamente referido e enfatizado.

 

Podemos – o que duvidamos - ter tudo o que está representado no esquema acima. Mas, o que nos parece não ter, é um aspeto muito importante  – Densidade Institucional!

 

Onde param as gentes e particularmente as elites da nossa região?...

 

Quem e onde elas desenvolvem?...

 

Estranhamos na entrevista de Nuno Vaz que não tenha feito qualquer referência ao nosso mundo rural. Chaves, como centro de atração dos seus territórios de vizinhança foi historicamente grande, enquanto âncora, suporte  desse mundo. Quando esse mundo começou a desmoronar-se, Chaves também começou a soçobrar, a perder o seu protagonismo no contexto sub-regional em que se insere.

 

Sinceramente, não acreditamos que seja apenas a água, nas suas mais diferentes valências e vertentes, que nos fará mudar de situação, voltando a ser protagonistas no contexto de uma região deprimida e de uma sociedade global em que nos inserimos.

 

A atratividade de Chaves não está apenas neste recurso, obviamente muito importante, por mais polivalências que tenha. Está nas suas gentes. E gente, repete-se, é o que nos falta!

 

E como podemos concitar desenvolvimento se mesmo a própria cidade está perdendo – ou se esquecendo – dos elementos fundamentais da sua própria identidade. Elementos esses com os quais se identificava e deveria valorizar e aperfeiçoar no contexto da sociedade em que vivemos, porque verdadeiramente diferenciadores dos demais?

 

Temos uma cidade atrativa suscetível de fazer deslocar para o seu seio, para o seu interior, juventude e conhecimento suficiente para criar e desenvolver a economia digital que aí está?

 

Onde estão os espaços públicos que mostrem esses elementos diferenciadores da sociedade que somos no contexto da sub-região em que nos inserimos?  Não basta apenas a História e nos vangloriarmos dela. É fundamental lhe dar Vida!

 

Por exemplo, demos uma volta atenta à cidade de Bragança – a periferia das periferias do nosso interior. Talvez, uma avisada observação nos ensine alguma coisa. Nomeadamente,  como fazer, como cerzir e ordenar uma cidade com os elementos, verdadeiramente culturais e autenticamente identificadores, da região a que preside. Dá gosto ver, passear e apreciar os espaços públicos e a escultura urbana, por eles espalhada,  verdadeiros perfis definidores daquilo que os bragançanos (ou brigantinos) são; o orgulho que têm e donde provêm.

 

Onde estão, em Chaves, os serviços e atividades culturais que prendam os quadros das futuras(?) empresas e serviços de ponta, a instalar? Que educação fazemos, na população em geral, levando-a a esses novos espaços?

 

Não basta apenas construir infra-estrurras culturais. É necessários dinamizá-las com atividades sociais e culturais de ponta, em parceria, e em rede, com instituições de prestígio nacional e internacional, catapultando e exponenciando o capital, a valia e o potencial cultural que Chaves tem. Onde estão os homens – os verdadeiros homens – da cultura em Chaves? O que temos feito para Chaves ser uma cidade da cultura que, ao longo dos anos, tanto propagandeamos?

 

Onde estão os serviços de educação capazes de concitar a vinda de jovens para a nossa região e que os faça pensar que vale a pena viver aqui, pois temos serviços de educação condignos e que, no futuro, com seus filhos não terão gastos ou encargos insuportáveis para os por a estudar, como hoje acontece, quando os serviços de educação, fundamentalmente de cariz superior, estão maioritariamente instalados no litoral, com os preços de habitação e quartos verdadeiramente astronómicos para os seus orçamentos familiares?

 

Não nos venham falar nos protocolos com a Cruz Vermelha e com o Politécnico de Bragança. Por muito boa vontade que tenham, não têm, em si, sinergias suficientes de, em Chaves, criarem uma verdadeira Academia, um verdadeiro Polo de Formação Superior e um verdadeiro Centro de Investigação, de que tanto carecemos, para as tarefas específicas do nosso próprio desenvolvimento, dando também contributos para o país.

 

Quando uma Universidade, com vocação para servir uma vasta região, se transforma única e simplesmente numa universidade praticamente só de uma cidade, pela nossa parte, temos de olhar para o lado, sonharmos, arquitetarmos verdadeiros saltos que nos façam sentir que somos capazes. Que, como dizia um grande sonhador – que podemos!

 

Onde estão os serviços de saúde capazes de praticarem a tempo e horas, e com qualidade, os cuidados primários e de especialidade que todo o ser humano, desde a nascença até ao seu ocaso, têm necessidade? Se os queremos, temos de constantemente descer a A24 e a A7. Pouco ou quase nada sobe até nós!

 

A atratividade faz-se com isto e não apenas com capacidade empresarial instalada. Ousaríamos dizer até que não haverá verdadeiramente capacidade económica e empresarial sem estes requisitos (ou melhor, estes pré-requisitos) instalados. De qualidade!

 

Tocámos apenas por alto nestes três ou quatro temas. Porque nos parecem serem, em termos de atratividade, aqueles que nas alturas das verdadeiras decisões levam os decisores económicos, empresas e indivíduos, a investirem e se instalarem num determinado território. Os quadros, porque também sonham por um outro estilo de vida, diferente do que se vive nas grandes cidades e áreas metropolitanas, quando apostam em nós, injetando-nos sangue novo, criativo e inovador, é cuidando em tudo quanto para cima ficou dito que estão a (irão) pensar.

 

Está bem o senhor presidente da Câmara de Chaves em ouvir as pessoas nas alturas das decisões que interessam à cidade e ao concelho.

 

Mas gostaríamos de aqui recordar: mais que dar conhecimento e aceitar contributos, é necessário que os cidadãos flavienses sejam partícipes da sua própria mudança!

 

Por isso, se é bem certo que é preciso estar bem acordado, também não é menos verdade que é do sonho, da utopia, que nasce a vontade de transformar as coisas e o mundo.

 

Na nossa modesta opinião, é este o pequeno/grande salto que falta dar em Chaves.

 

Seremos todos nós capazes de transformar o estado de coisas a que chegámos?...

 

Já várias vezes vimos afirmando que não acreditamos em homens providenciais. Tal postura pode até representar um perigo para a vivência democrática. Acreditamos, sim,  em líderes que, arregaçando as mangas, sejam capazes de, em conjunto, transformarem o mundo e a sociedade em que vivemos.

 

Sem uma sociedade e/ou comunidade verdadeiramente empenhada no trabalho da sua transformação, não há desenvolvimento que verdadeiramente apareça.

 

Não façamos simulacros de democracia. Tenhamos coragem, como representantes do povo que nos elegeu, de convidá-los à participação e construção do nosso futuro, acrescentando à democracia representativa aquela que, nos primórdios da Grécia Antiga, se viveu em Atenas – a participativa, verdadeiramente empenhada na construção da nossa polis.

 

António de Souza e Silva

 

26
Out18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

O PADRE SALGADO

 

Por entre as envergonhadas flores do tojo bravo coava-se um sol arrepiado de uma fria tarde de março. O carvalho negral preparava os seus primeiros rebentos. Do chão, ainda curtido pelos gelos do inverno, rompiam os primeiros fachos de erva tenra. O ar, apesar de gelado, respirava-se límpido. Os dias estavam a crescer e não tardava por aí o cuco a anunciar a metamorfose primaveril.

 

O Zé Pimpão era pastor. Fez-se à vida mal aguentou a sacola da merenda às costas. Teria uns cinco anos, não mais. Conhecia cada rês pelo seu nome. As touças não tinham segredos nem fronteiras. Na arte do pastoreio não havia pai. As cabras entendiam-no espantosamente. Deus me perdoe, mas até parece que o Pimpão foi cabra numa outra vida! O rebanho assemelhava-se a um exército às ordens de um implacável general! O Zé era fino como azougue, apesar de não conhecer uma letra do tamanho de um comboio. E que mal tinha isso? O monte nada disso exigia, nem as cabras! Não havia pai para o Pimpão nas artes da natureza!

 

O rebanho do Zé Pimpão saía da corte aos primeiros raios da alva. Pastava embalado pelo tilintar das campainhas, nas encostas baldias do ermo. Tinha para lá de cem cabeças. E ainda crescia, uma vez que muitas cabras andavam prenhes e outras já acompanhadas por travessos cabritinhos. Um rebanho desta monta rapava tudo. Quando, por descuido, o Pimpão o deixava entrar nalguma leira de centeio lá tinha o troco: arcar com o prejuízo. Por vezes, permitia que pastasse nas bordas da estrada nacional, onde as valetas criavam a erva mais viçosa. Mas já sabia que corria o risco de uma multa pesada, aplicada pela Guarda do Vidago.

 

Há dias chegou-lhe uma carta, pelo correio. Não se importou em saber o que dizia ou de onde vinha. Guardou-a no bornal. Importante era fartar as cabras, o resto podia esperar! Mais dia, menos dia, haveria de aparecer alguém que lha lesse!

 

O Padre Salgado, homem ilustre e letrado, pároco da freguesia de Santa Leocádia, há mais de vinte anos foi chamado, pelo seu homólogo da Póvoa de Agrações, para cantar o ofício a uma pessoa de posses que falecera. Saiu cedo no seu alazão. Tinha caminho para mais de quatro horas.

 

Cantou o ofício com mais sete abades. Almoçou uma caldeirada de cabrito como gostava. Pagou-se com uma nota de vinte mil réis. Regressou. Seriam umas quatro da tarde quando desceu calmamente um dos contrafortes do lado norte da Serra da Padrela. Passou na Dorna e botou um caneco que a tia Brízida fez questão de lhe oferecer. O presunto recusou-o. Que vinha farto, que tinha apenas sede.

 

Seguiu para Vale do Galo. Um dos lugares mais ermos e pobres da sua freguesia. Meia dúzia de casebres, alguns ainda colmeados, faziam lembrar uma qualquer terra esquecida por Deus. Ora, só o facto de o reitor passar por lá, o que era raro, já era um acontecimento. Os paroquianos, sabendo da notícia, fizeram questão de estar presentes à passagem do representante do Pai. Também eles queriam mostrar que, apesar da pobreza, tinham boa vontade e não o deixariam passar sem lhe molhar o gorgomilo!

 

─ Bote-nos a sua bênção, senhor padre Salgado!

 

─ Deus vos abençoe, meus filhos. Então as batatas já estão semeadas? Olhai que está no tempo de as botar!...

 

─ Está quase tudo. A porra é que este ano a estrangeira está muito cara. Mas o que se há-de fazer!... A filha não dá nada. Se não for a batata a encher a barriga dos nossos filhos, o que havia de ser de nós!...

 

─ Tendes razão, meus filhos, mas Deus é pai!

 

─ Bota um copito, senhor padre?

 

─ Bem, já que teimais!... Botai pouco, botai pouco!

 

Apesar de puxar um cibito ao vinagre o padre não se fez rogado e nem deu parte de fraco. Não lhe passaria pela cabeça recusar. Seria uma grave ofensa para o seu rebanho. Tinha de fazer o sacrifício. Que fosse pelo perdão dos pecados, pensava enquanto se despedia.

 

Fez-se ao caminho para Adães. Ainda não tinha chegado a meio e já vinha o Zé Pimpão esbaforido ao seu encontro.

 

─ Ó senhor padre Salgado, vossemecê sabe ler?

 

─ Boa tarde! Então que se passa, rapaz, para nem dares as boas horas? Parece que viste lobo! Ele que há?!...

 

─ O lobo não me assusta, tenho cagufo é da Guarda do Vidago que me prega cada estopada que até me troce. Os filhos da puta só conhecem os pobres! Olha que aos ricos não os fodem eles! Tenho aqui uma carta que deve ser mais uma talhada! Queria que o senhor padre fizesse o favor de ma ler.

 

─ Deixa lá ver, Zé…

 

O padre, sem se apear do cavalo que aproveitava para remoer uns rebentos de tojo bravo, abriu calmamente o sobrescrito. Leu a carta para si sob o olhar expectante do pastor que não bulia nem tugia. Calmamente meteu a carta no envelope e, com o seu ar bonacheirão, virou-se para o pastor:

 

─ Não te preocupes, rapaz! Desta vez, não tens de pagar nada. É da Câmara a lembrar-te que tens de vacinar os cabritos novos!...

 

O Zé respirou fundo como se o tivessem livrado dum fardo pesado.

 

Porra, ainda bem! Pensei que fosse outra talhada! Muito obrigado, senhor padre. Beba uma pinga da minha lingureta!

 

─ Não quero, rapaz. Não tenho sede, ainda agora bebi em Vale do Galo.

 

─ Ó senhor padre Salgado, não me vai fazer a desfeita de não bober. O vinho é fraco, mas é de boa vontade!

 

─ Bem sei moço, mas não tenho sede.

 

O Pimpão não perdeu tempo. Vendo que não pagava o favor com vinho, abriu as goelas entre as mãos em concha e clamou:

 

Tchezinha!...

 

Demorou pouco até que estivesse ao seu lado uma cabra reluzente e viva. Tinha um úbere repleto que quase tocava no chão e que havia de esvaziar às turras de dois cabritinhos que a esperavam na corte.

 

Então não havia de pagar o favor ao reitor, pensava o Zé Pimpão!...

 

─ Ó senhor padre Salgado, já que se está a fazer fidalgo ao vinho, ao menos mame aqui nesta cabra e não se faça burro!...

 

O padre, sem palavras, esporeou o cavalo e, perdido de riso, fez-se à residência paroquial a galope onde havia de partilhar a história com a governanta que já o esperava com a ceia pronta!

 

Gil Santos

 

 

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