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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

12
Jun09

Discursos Sobre a Cidade - «O Cinto do Esfolas», por Gil Santos


 

.

 

Texto de Gil Santos

 

O CINTO DO ESFOLAS

 

O 101 de Fafião cumpria o serviço militar no velho quartel da Infantaria 19. Raramente ia à terra, não só porque não havia transportes, mas também porque, mesmo que os houvesse não teria dinheiro para tais luxos. Se queria visitar Fafião, no limite do concelho de Montalegre, teria que fazer, à pata, uns 80 quilómetros, para cada lado, o que, convenhamos, não era tarefa para cumprir amiúde. Significava sair de Chaves às trindades de Sexta e regressar noite escura de Domingo. E não podia parar senão para botar um copito nas tascas por onde passava. No regresso, tinha de dar entrada até à meia-noite de Domingo, caso quisesse estar na forma das oito e livrar-se dalguma porrada. Por isso, o mais das vezes, consumia as folgas na rua dos Gatos, apenas como mirone das meninas da vida, que o dinheiro não dava para outras extravagâncias!

 

No quartel do Castelo servia um tal capitão Riconcas, de nomeada Esfolas. Comandando a companhia do 101, tinha a fama e o proveito de ser “da alma do diatcho”! Não perdoava fosse o que fosse! Bastava um desgraçado esquecer-se de lhe bater a pala e comia logo um fim-de-semana à benfica ou dois dias de faxina às latrinas da caserna. E quando estivesse de oficial de dia e lhe desse na bolha para mandar gritar: — Soldado alerta! E não recebesse de imediato a resposta: — Alerta está! O infeliz tinha declarada guerra para o resto da tropa.

 

O Esfolas era mais temido do que respeitado! Solteiro, quarentão, fazia reflectir nos mancebos anos e anos de recalcamento. Um terror!... O 101 que o dissesse, volta e meia estava a lerpar. O Esfolas não lhe dava tréguas e ele, como postal ilustrado que era, punha-se facilmente a jeito. Era um mártir o 101!

 

Estávamos no início do Verão. O tempo aquecia e as noites eram longas. O 101 planeara num desses fins-de-semana ir à terra. É que lhe chegou aos ouvidos que havia regressado a férias a família dos Pimpões, emigrada há anos em terras de Vera Cruz. Ele queria ver como estava a Pimponata, filha mais velha do casal e que tantas vezes foi companhia na vezeira das cabras por essas serranias isoladas do Gerês. Havia de estar bonita, a cachopa! Ainda se lembraria dele?...

 

Sexta-feira, ao fim da formatura da tarde, recebeu o passaporte e não perdeu tempo, fez-se ao caminho. As botas cardadas até faziam lume nos seixos do macadame da estrada de Braga. Alvoreceu-lhe perto de Vila da Ponte. Parou, botou uma cachaça na venda dos Baptistas e seguiu caminho. Pelo meio-dia estava em Fafião, sua terra natal. Não despiu a farda para impressionar! Lavou-se, ajeitou o bivaque, botou um copo de verde e um naco de boroa e procurou novidades. Não demorou que encontrasse as Pimponas. O Brasil tinha-lhes feito bem. Estavam um espanto! Então a mais velha, para as medidas do 101, era um traço de mulher! De trigueira que já era, evoluiu para mulher roliça e corada, dona duns relevos peitorais de respeito! Aquele ar tropical aguçava o apetite ao militar, atiçando de tal modo a fogueira do seu coração que chegou a modos de pensar não regressar à vida militar e fugir com ela para o Brasil. Conteve-se! A Pimponata também o achou bonito, polido. E mais se interessou quando soube que o potencial conversado já sabia assinar o nome! As portas da esperança escancaravam-se. Ficara combinado que para o ano, já com o espólio feito, se haviam de encontrar de novo e combinar os pormenores da intimidade.

 

O 101 rebentava de contente! — Ela não só se lembrava dele como ainda o considerava!

 

A jornada de regresso a Chaves, na esperança de que o próximo regresso podia ser para casar, foi feita num ápice. De calvário, transformava-se num trilho para o Éden. Quando regressasse de vez iria maila Pimponata para o Brasil. Estava decidido!

 

Fez-se ao caminho pelo meio da noite de Sábado. Amanheceu-lhe na ponte do Saltadouro em Ruivães. A Misarela seria atravessada já de dia. Pelas suas contas, ao meio da tarde de Domingo estaria nas Boticas e antes da meia-noite no quartel de Chaves. Só que entre Sapiãos e Casas Novas formou-se uma tormenta medonha que o obrigou a recolher a uns palheiros velhos que havia em Sapelos e perder umas boas duas horas. As contas estavam agora furadas. Chegou à cidade de Flávio seriam duas da matina. Como havia de entrar no quartel e estar prontinho para a formatura das oito? Pela Porta de Armas era impossível entrar por mor das sentinelas. Estava iminente uma porrada. Ninguém o safava!

 

Ora o quartel velho ficava nas instalações contíguas à actual Torre de Menagem. Esta está guardada a sul por uma muralha que chega a ter mais de uma dezena de metros na parte mais alta. Impossível de escalar. Porém, o 101 sabia duma parte mais baixa que era costume ser usada para fazer sair, à socapa, doses de rancho em troca de dinheiro, servindo ainda como porta de entrada, a salto, aos afoitos soldados que se aventuravam sem licença. Havia que experimentar!

 

O muro, de uns bons três metros, só podia ser escalado com a conivência de alguém que de dentro estendesse ajuda. O que normalmente se fazia era atirar um cinto de couro forte e auxiliar à escalada do camarada. O 101 tentaria. Com sorte, havia de estar aí alguém, apesar do avançado da hora.

 

Nesse Domingo, o Esfolas estava de serviço. Sendo madrugada e sabendo do truque, foi sorrateiro debruçar-se sobre a muralha no cantinho do crime! A noite estava estrelada, mas a luz do Quarto Minguante apenas permitia distinguir vultos. Eram duas e meia da madrugada quando o 101 aportou à base da muralha. Olhando para cima, viu alguém debruçado. Afinal a sorte, madrasta tantas vezes, não o abandonou desta vez. Apressou-se a pedir auxílio.

 

— Ó pá, bota-me o cinto!

 

Passados uns segundos, tempo suficiente para tirar a cilha das calças, o capitão fez-lhe chegar uma das pontas da forte correia de couro de boi com que se ataviavam os soldados. Tomou-a firme entre as rudes mãos. Botou o pé a um buraco da muralha e e ajudado guindou-se. Saltou o parapeito. Estava safo! De contente limitou-se a dar uma forte palmada nas costas do companheiro.

 

— Obrigadinho, camarada!

 

Sem se preocupar com mais nada, foi para a caserna, feliz, descansar o corpo moído pela longa jornada.

 

No dia seguinte, quando soube que o Riconcas esteve de serviço, tralhou-se!...

O que ele nunca ficaria a saber ao certo foi quem, afinal, o ajudara nessa noite. Desconfiava!...

 

Pelos vistos o Esfolas não era tão mau como o pintavam ou então, naquela noite, alguma santinha da rua dos Gatos o aliviou do veneno de outras ocasiões!...

 

Fosse como fosse, quem lucrou foi o 101! E bem o merecia pela sua bonomia!

 

Gil Santos

In “Ecos do Planalto-estórias” adaptado

 

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