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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

24
Out22

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610 - Pérolas e Diamantes: Nós queremos é consommé, porra...

 

É bom olhar com olhos de olhar para a frente. Sempre que nos é possível. Olhar de lado é má educação. A ironia é incompatível com qualquer tipo de empenhamento. Não perdoa. Nem pode. E mesmo se pudesse. A militância foi-se. Foi chão que deu uvas. Foi-se. Os ingénuos estão todos integrados. Os ingénuos e os hipócritas. Os poetas desintegraram-se. A vidinha submergiu-os. A banalidade, para o bem e para o mal, fascina-nos. Eu agora vivo de lugares-comuns, mas fora de contexto. A nossa memória é a do esquecimento. Há quem considere isso uma virtude. Eu julgo que é, sobretudo, cobardia. Crianças precoces são mitos. O imaginário esquerdista também é mistificação. Ou quase. Os que se querem projetar como figuras públicas não passam de anedotas. Está no seu feitio levarem-se a sério. As conversas da treta são muito bem pagas no nosso país. E até na nossa terrinha. E a cultura da treta, também. Mas a política dá-lhes a dimensão de coisa séria. Continuam os eventos do croquete, os desfiles dos bombeiros, as apresentações tipo agadoisó, as feiras das varandinhas. A sopa de pedra passou a ser servida, agora, como consommé. O sabor é parecido, muito parecido mesmo, mas o aspeto é diferente, mesmo muito diferente. E isso faz diferença. Toda a diferença. Sobretudo a quem come com os olhos. E emprenha pelos ouvidos. A verdade é que nos vamos perdendo no que se relaciona com aquilo que nos é pedido, enquanto munícipes. Afinal, o que é suposto nós fazermos? O efeito surpresa, em vez de nos adiantar na senda do progresso, vai acabar por nos atrasar. Isso dizem os cegos do Restelo que não conseguem ver os efeitos visuais projetados pela CIM. Claro que isso pouco importaria se a televisão transmitisse alguma coisa de interessante, mas não, o nosso serviço público dá-nos ainda mais croquetes, sopas insossas, música irritante e desfiles de bombeiros. Claro que com tanto contratempo e tanta contrariedade qualquer dia também vamos soçobrar enquanto munícipes. O nosso estoicismo tem limites. Apesar do entusiasmo ainda ser elevado, qualquer dia começa a esmorecer. E depois não há quem nos aguente. Esta coisa da nova política, da nova atitude e da nova moral tem já sabor a requentado. Oiço isto desde a minha juventude e as coisas não tomam caminho. E não é só porque os burros velhos já não tomam andadura. Os novos também já nascem com as pernas entorpecidas. A hortaliça murcha logo ao sair da estufa. E a que não murcha não tem sabor nenhum. É sempre tudo mais do mesmo. A verdade é que já não há pachorra para esta gente que todos os dias nos conta a velha história da autoestrada para o progresso, da riqueza e do bem-estar. Apareceu nas televisões, uma nova estirpe de catedráticos desavergonhados a apregoar técnicas que ajudam a avaliar e a pesar os fenómenos sociais e dizem mesmo possuir a ciência certa para criar a solução milagrosa que desculpa tudo. E olhem que não é feitio, é mesmo defeito. Estamos sempre paralisados entre duas certezas: a deles e a nossa. Ninguém pode errar tantas vezes. Acreditar neles já não é uma questão de fé, é mesmo burrice. Vivemos sob o jugo das dúvidas certas. E vamos todos caindo na astenia dos sentidos e no depauperamento dos princípios. Depois das promessas, começa tudo a cair, devagar, devagarinho. E o povo, para não chorar, ri com o seu sorriso amalgamado. E os que nos guiam, pobres coitados, sempre encafuados em reuniões onde se fala sempre mais do que se produz. Faz parte da tradição discutir-se muito e fazer-se pouco. Mas sempre se faz alguma coisa. De política o estritamente necessário, já dizia o velho Salazar. O resto é conversa e subsídios comunitários, vitelinha cozida com legumes e peixinho fresco grelhadinho. As finanças e a economia vão mal, mas podiam ir pior. Sempre assim foi e sempre assim será. A tradição ainda é o que era. Os portugueses só querem luxos sem trabalhar. Podem ser boas pessoas, mas são muito dados às festas e aos arraiais, às minis e aos copos de tinto. Não se pode ter tudo: folia e progresso, festas e desenvolvimento. Morra Marta, morra farta. Esta vida são dois dias. Nós queremos é ser felizes. Porra. Nós queremos é ser felizes. Porra.

 

João Madureira

 

 

26
Set22

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606 - Pérolas e Diamantes: O burro nas couves

 

Neste mundo, os que se aventuram nas areias movediças da política, treinam-se sempre para ganhar. Não para competir. A sua genialidade é medíocre. Afeiçoam-se a isso, treinam a pose e o hábito da felicidade. Treinam a alma para as mentiras. Tentam evitar a euforia e o impulso vingativo, face aos rivais. Desviam a agressão para ganhar tempo. Quando fazem o juramento dizem sentir um impulso profundo para viver na virtude e no bem. As suas rebeliões de juventude esconderam sempre as incertezas. A estrada cansa. E os reflexos vão enfraquecendo. O amor pela verdade, quando se mastiga, tem sempre um travo azedo. A coerência não come com eles à mesa. Estas estrelas têm fraca intensidade. Quando querem proteger os milhais, levantam poeira e atiram pedras para longe. Normalmente, os pardais fogem por causa das sombras e do barulho. Depressa envelhecem expiando as suas cobardias. A confiança já não é o que era. A cintilação destes novos timoneiros é breve. Os militantes e simpatizantes, depois das campanhas eleitorais, só estorvam. Há sempre modos de fazer as coisas. A política está cheia de profissionais cínicos que não sabem fazer outra coisa. É tão bonito observar os gestos elegantes do nosso chanceler, o seu ar de George Clooney, e a sua condescendência estudada com que acompanha a mais simples das afirmações. Ele não sabe tudo, mas parece. Ele não diz tudo, mas parece. Que lindo o seu excesso de eficiência, a sua postura. É pena viver no interior, na periferia dos centros de poder e de decisão, senão outro galo cantaria. É tão difícil encontrar nos dias de hoje homens que entendam realmente os problemas mais técnicos da política! Os políticos persistentes discutem coisas sérias. E quando nos aborrecem não o fazem de propósito. A política, sobretudo a autárquica, é feita na base da rotina. E todo o homem, ou mulher, rotineiro desaprova os empreendimentos arrojados. Mas uma coisa confesso, dá gosto vê-los de óculos estilosos, traje à maneira, gravatas e outros acessórios dispensáveis, sorrisos engomados, modos compostos, iphones requintados e ar de padres a rezar a missa pascal. Alguns até esboçam um certo ar de arrependimento, mas é sol de pouca dura. A necessidade dos votos abre sempre a brecha por onde entra o fingimento. Mas nós tudo perdoamos. Faz parte da nossa maneira de ser. E de estar. Eles, que são mais novos do que nós, tratam-nos como se fôssemos seus filhos. E nós a fingir que não vemos os seus gestos nem ouvimos as suas palavras para não sermos indelicados. É melhor assim. Se estes se vão embora vêm outros ainda piores. E o respeitinho é sempre bonito. Vamos ter de os levar a sério. Também a estes porque os que vierem a seguir ainda vão ser piores. Então, mais respeitinho, pela bandeira nacional, pela bandeira do município, pelo presidente da República, pelo presidente da Câmara, pelos senhores ministros, pelos senhores vereadores e por tudo o que de bom acontece à nossa volta. Mesmo o que é mau e nos afeta a vida foi feito com a melhor das intenções. E por isso mesmo vamos fingir consideração, acatamento e deferência. Mas a verdade é que o respeitinho que nos exigem, e recomendam, também se vai esgotando. O certo é que pelo meio desta banalidade democrática feita de meias-verdades e meias-mentiras, cresce o tédio. Eles dizem o óbvio e nós temos paciência. Eles armam-se em heróis e nós temos paciência. Ter paciência é uma virtude. Os da nossa terra bem queriam ver a tão apregoada audácia, a tal determinação pessoal, o tal sentido de risco e o gosto de realizar, mas só nos sai inércia, distribuição seletiva de panelas de pressão e protecionismo. E ainda mais inércia. Nós, os ingénuos, até acreditámos que o relacionamento entre o poder político e económico, tinha abandonado a mancebia. Mas parece que nos enganámos, de novo. Claro que esta perspetiva também pode ser fruto da distorção provocada pela minha miopia que desfoca tudo o que está por perto. Eu até vejo bem ao longe, mas isso de pouco me serve. A verdade é que os homens e as mulheres até podem ser excelentes, mas os destinos são medíocres. E daí não saímos. Só agora compreendi o que um velho amigo meu me disse vai para uns dias: “Temos de novo o burro nas couves.”

 

João Madureira

 

 

04
Jul22

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596 - Pérolas e Diamantes: As opiniões, os átomos e o vazio

 

Dizem que as questões de coerência se resolvem por si. Provavelmente sim. Ou, provavelmente, talvez não. Cada um com a sua coerência. Ou provavelmente, talvez. O contexto não existe, para as malévolas interpretações. A nossa própria história está cheia de armadilhas. O sentido do dever ainda é a única coisa que nos mantém vivos. Hoje parece não existir diferença entre criar uma criança pequena e comprar um caniche. O supermercado é uma espécie de paraíso moderno. É o paradigma democrático. Aquilo parece uma figuração do céu. Mas, mesmo aí, o dinheiro é que conta. E desconta. Para os outros, que ainda são muitos, também pode ser o inferno de ver, de querer e de deixar o que mais lhes agrada nas prateleiras. O catálogo de comida para cães e para gatos parece uma revista pornográfica para famintos. O amor (o humor), atualmente, é patético. Todo o lirismo cai na esfera da interpretação clínica. Freud também é uma espécie de interpretação da sexualidade e da sua frustração. A poesia é provavelmente a verdade, ou aquilo que mais dela se aproxima. Às vezes apetece-me saltar para o universo da Mary Poppins, onde tudo parece estar bem. Si non è vero è ben trovato. Deus me perdoe. Ainda continuo a pensar que a bondade é mais importante do que a inteligência. Há por aí tanto parvo armado em inteligente que dá para desconfiar do paradigma. A arte contemporânea deixa-nos a todos deprimidos. Acaba sempre por ser um comentário recente sobre o estado das coisas. Parece que não é para refletir, mas para consumir. Também os sacos do lixo têm a sua arte. Agora até os desperdícios possuem uma linguagem própria e a sua gramática estruturalista. Tudo parece poesia. Nada resiste à sua própria inconsequência. A poesia não é a prosa por outros meios. É outra coisa. É uma linguagem diferente. A linguagem poética afasta-se da linguagem habitual, podendo progredir nessa senda até ao infinito. Como sugere Michel Houellebecq, a poesia pretende fixar uma palavra diferente como representação de uma realidade idêntica. Vindas do mesmo contexto, poesia e prosa, representam duas visões do mundo irredutíveis. A significação poética redime o mundo. Cito Baudelaire, pois, para bom entendedor, meio verso basta: “Quando o céu baixo e pesado nos esmaga…” A poesia é uma espécie de manifestação primitiva. Está antes da linguagem e depois dela. Mas tenta existir através dela. Tem a mesma natureza da lamentação e do grito. Não foi por mero acaso que Allen Ginsberg escreveu o “Uivo”: I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked…” A poesia dissolve os limites. Está entre a bruma e o crepúsculo. Não delimita o espaço e o tempo. A poesia é um outro olhar sobre o mundo. Combina rios e serpentes e autoestradas e caminhos e filosofia e a perceção dupla das diferenças e a metafísica e a dissolução telúrica das diferenças e os átomos e o vazio. Tudo é pré-lógico e pós-lógico. E nós ali no meio a fazer com que tudo possa fazer parte da mesma realidade. A tornar compatível Demócrito e a mecânica quântica. A fazer da metafísica materialista uma possibilidade. A fazer explodir as distinções. O que intriga os físicos é a linguagem poética porque sentem que ela se aproxima mais da realidade, da catástrofe conceptual, das descobertas quânticas. A nova lógica é, no mínimo, ambivalente. A poesia quebra a lógica casual e potencia a explosão do absurdo. A beleza é um absurdo instantâneo, fruto do momento, da emoção e dos seus contornos ilimitados. Refletindo mais um pouco, se é que se pode, no meio disto tudo, a poesia permite-nos desvios consideráveis. Epítetos impertinentes e evidências cheias de contradições. A verdade é que os homens e as mulheres, ou alguns de entre eles, ou elas, entendem os desvios máximos, feitos de palavras mínimas. A descolagem verbal também é possível. Demócrito escreveu já lá vão uns bons milhares de anos que “doce e amargo, quente e frio, até a cor, não passam de opiniões; as únicas coisas verdadeiras são os átomos e o vazio”. E Fernando Pessoa também registou para a posteridade que já “há metafísica bastante em não pensar em nada…”

 

João Madureira

 

 

20
Jun22

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594 - Pérolas e Diamantes: O movimento perpétuo da vacuidade

 

As nossas aproximações à desordem são sempre pífias. Antoine Waechter escreveu que luta contra ideias cuja própria existência põe em dúvida. Eu ainda não chego a tanto, mas para lá caminho. Este não é um país para perplexos. Eu gosto de alguma pintura moderna, mas não de toda. No entanto tenho de reconhecer que é nova. Mas sei que da pintura de Rembrandt, por exemplo, ninguém diz se é velha ou nova. Todos afirmamos que é eterna. Todos sabemos que o grande público não morre de amores pela arte contemporânea. Mas também todos sabemos que a arte contemporânea é um fator de progresso social, de aceleração cultural. Muitas vezes os visitantes desse tipo de exposições são até capazes de fazer pouco delas, oscilando a sua atitude entre o divertimento irónico e o sarcasmo. Pode-se estar ali a “perder tempo”, mas de forma agradável. A beleza já não é o que era. Os gostos mudaram. Como diz Michel Houellebecq, atualmente vemos a beleza como uma espécie de “vingança contra a razão”. Até na arte, a experiência e o treino são coisas diferentes. Agora há pouca beleza, pouca poesia. Tudo parece despojado de caráter. Tudo parece acolher a imprecisa pulsação do transitório. A aposta dos workshops new age incide na criação de indivíduos constantemente mutáveis, desprovidos de rigidez intelectual e emocional. Não há fidelidades, não existe sentido de pertença. O indivíduo moderno tem de estar sempre disponível para ocupar um lugar transacionável. Ele também é um valor de troca. Uma mercadoria. Agora é tudo publicidade: filmes, videoclipes, notícias, reportagens, programas de culinária, desporto, literatura, fotografia. Internet. A vontade vai-se esmorecendo. De todo este bombardeamento diário resultou uma indisfarçável falta de personalidade, percetível em cada um de nós. A filosofia passou a ser opcional e toda a atividade artística se transformou numa retórica generalizada. Tudo é uma enorme piada, uma forma de humor previsível e canhestro. Por isso é que os humoristas da nossa praça abandonaram a produção de programas humorísticos para se dedicarem exclusivamente à publicidade. Ricardo Araújo Pereira e os seus muchachos são agora os gurus de quase todo o espaço mediático: rádios, jornais e televisão. Alguns até se dedicam, com sucesso, ao nobre comércio da panificação. Por causa disso já todos duvidamos de tudo: dos políticos, dos polícias, dos juízes, dos advogados, dos banqueiros. E até dos humoristas que transformaram o humor numa espécie de vazio onde tudo cabe. Nada é para levar a sério. Deslizamos para uma atmosfera malsã, feita de risinhos parvos e falsificações. Somos todos tomados por um certo desconforto. Agora são os bobos que mandam na corte e, por esse meio, em todos nós. Esta lógica de humor de hipermercado vai-nos sair muito cara, tanto em termos culturais como ideológicos. Sem esforço intelectual voltamos todos para trás. Este fluxo de pseudoinformações que nos vende conflitos mundiais, governos maioritários e coligações minoritárias, brioches, baterias de lítio e piadas brejeiras criam a falsa ilusão de uma modificação permanente das categorias da nossa existência. Os algoritmos somos nós. Parecemos fantasmas cegos a comprar óculos numa loja publicitada por um senhor gordinho que nos ensina o preço certo de alguns produtos ou por um humorista emagrecido que vende broa vegana em lojas de Lisboa e arredores. Já não há resistência, nem discussão. E muito menos profundidade. Andamos a aperfeiçoar os meios de deslocação para pessoas que não têm para onde ir e a desenvolver os meios de comunicação para seres que já nada tem a dizer uns aos outros. A interação já não se faz entre pessoas, mas com objetos. O ser humana fala. Falava. Agora escreve numa pequena placa de vidro com os polegares, como se fosse um panda.  Sorri e dobra-se sobre si mesmo como se estivesse num iglu. A única coisa que move são os olhos e os dedos. E mata indiscriminadamente bonecos animados por algoritmos. Sai um fogo gelado de dentro de si. Agora é tudo vulgar. Vagamente vulgar como a ondulação estacionária na superfície de um charco. O movimento perpétuo da vacuidade.

 

João Madureira

 

 

11
Abr22

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585 - Pérolas e Diamantes: O rulhar do tempo

 

Era frequente, naqueles tempos, quando alguém tinha tosse, chupar um rebuçado do Dr. Bayard. A mim também mos davam. Eu calava a angústia e a aflição do sabor a mentol e depois cuspia-o. Podia ser um pequeno pecado, mas eu, pelo sim, pelo não, já me tinha confessado antes. Como era fraquinho, ficava em casa a fazer que tossia e a fazer que fazia alguma coisa para a escola. Lia. Quase sempre coisas sem interesse. Mas lá em casa a literatura não abundava. E não era só ela. A mãe fazia croché, enquanto esperava que os potes fervessem. Entretanto ouvíamos as radionovelas que debitavam amor e paixão pelos interstícios do pano fronteiro da telefonia. A mãe pensava nas primas. Eu olhava para o teto. Já o pai teimava no vício, mesmo em jejum. A mãe bem o avisava: o cigarro vai acabar por te matar. O meu tio e padrinho tratava dos animais. Até fazia criação de pombos-correios, por timidez. Era ele e os ditos pombos que, depois de libertos, voavam a velocidade reduzida e regressavam como se fossem perseguidos por águias benfiquistas. Impressionava-me o seu rulhar contra o postigo. Já o corcunda do bairro vendia copos de vinho na sua loja invetivando os defeituosos e o mudo esgrimia argumentos contra o dono da igreja. Achava que o senhor abade discursava muito e dizia pouco. Já ele falava pelos cotovelos. A minha tia empanturrava-se com comprimidos para combater os ciúmes. Ela tinha ciúmes de tudo e de todos: dos gatos que não lhe acariciavam as pernas, dos cães que não a mimavam com as suas brincadeiras, dos sobrinhos que não a beijavam com o devido enlevo, do marido que não lhe dedicava o merecido amor, dos amigos do marido que não a distinguiam como deviam, das mulheres dos amigos do marido que não lhe reconheciam o mérito. Ninguém, na sua opinião, lhe prestava a atenção que lhe era merecida. Os domingos eram então demasiado compridos. Todos davam ordens, mas ninguém obedecia. Depois de comungar, todos ficavam com a devida tolerância para novo pecado. A todos nos apetecia alguma coisa que ninguém conseguia definir com clareza. Dizíamos que gostávamos todos uns dos outros mas as palavras deixavam em nós uma vaga sensação de desconforto. De inquietação. Entre a teoria e a prática vai sempre uma distância que nunca é fácil de percorrer. O bairro, apesar de teoricamente ser agradável, não agradava a ninguém. Uns jogavam às cartas, outros espojavam-se no sofá roto. Alguns enxotavam os filhos para poderem ter algum sexo. As mulheres mais velhas passavam as camisas a ferro para os seus maridos as vestirem segunda-feira, nas repartições. As pessoas mais seletas sorriam antes do jantar e conversavam. Eles bebiam meio copo de vinho tinto e elas chegavam-lhes pequenos pedaços de queijo limiano. Eles fumavam e elas bebiam chá e sorriam para a Nossa Senhora de Fátima alumiada pelo pavio da tacinha. Ou para as fotografias dos seus antepassados. E o amor sempre a pular entre aquilo tudo. As pessoas não eram felizes, mas também não eram infelizes. Cada qual acomodava-se dentro da sua própria aflição. As horas eram como um túnel. As semanas eram desconfortáveis e os domingos longos. Ninguém encontrava a sua verdadeira posição. E havia filhas, já gastas e velhas, que faziam a sopinha para os seus pais que tinham sido infiltrados pela doença que lhes atacava a coluna. Era sempre o pai a vir agarrado à bengala para comer a sopinha. E o pão. E o copo de vinho. As árvores lá fora iam ficando bonitas, depois ficavam assim-assim e depois ficavam feias. E as filhas, já velhas e desgastadas, continuavam a fazer a velha sopinha para o pai velho e voltavam a entusiasmar-se com aquilo tudo. Com os vasos de flores, com os meninos ranhosos, com a surpresa dos anos, com os dentes cariados, com os pijamas às riscas. E com o fiozinho de azeite no caldo verde. E com a rodela de chouriço no caldo verde. E com a fatia de broa que acompanhava o caldo verde que a filha já velha e gasta continuava a fazer para o seu velho pai que se encostava à bengala por causa do mal das cruzes. Da sua e também da que estava destinada à filha, que não era pródiga porque nunca tinha saído de casa. Ele, depois do relato e após o terço radiofónico, punha-se a fumar o seu cigarro. Já ela, qual gata borralheira, a quem passou o tempo, ouvia canções do Tony de Matos: “Cartas de amor, quem as não tem?”

 

João Madureira

 

 

13
Set21

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557 - Pérolas e Diamantes: O cadinho totalitário

 

Na Alemanha do início do século XX, Hans Bluher e outros autores muito influenciados por Heinrich Schartz e pelo movimento juvenil, chegaram ao extremo de defenderem que o Estado devia de ser reorganizado de forma antidemocrática e liderado por um grupo coerente de homens heroicos unidos por laços homoeróticos de amor e afeto.

 

Os defensores destas ideias começaram a fundar organizações pretensamente monásticas e de cariz conspirador ainda antes da Primeira Guerra Mundial, nomeadamente a Ordem Germânica, criada em 1912.

 

No mundo destas restritas seitas seculares, tinham um papel preponderante o simbolismo e os rituais “arianos”.

 

Os seus membros reclamavam as runas e o culto solar como sinais estruturantes do germanismo e adotaram o símbolo indiano da suástica como emblema “ariano” sob influência do poeta de Munique Alfred Schuler e do teórico racial Lanz von Liebenfels, que no ano de 1907 hasteou uma bandeira com a suástica no seu castelo austríaco.

 

Apesar de serem ideias estranhas, a sua influência foi importante em muitos jovens da classe média que passaram pelas organizações do movimento juvenil antes da Primeira Guerra Mundial, pois contribuíram para uma revolta generalizada contra as convenções burguesas da geração nascida na última década do século XIX e na década seguinte.

 

Ou seja, o turbilhão político das ideologias raciais que deu origem ao nazismo já estava a desenvolver-se poderosamente muito antes da Primeira Guerra Mundial.

 

Heinrich Class, publicou, sob pseudónimo, um manifesto com o cativante título “Se eu Fosse o Kaiser”, onde dizia que, antes de tudo, se tinha de lidar com os inimigos internos do Reich: os sociais-democratas e os judeus. Sobretudo os judeus porque estavam a subverter a arte alemã, a destruir a criatividade alemã e a corromper as massas alemãs. Além disso, o sufrágio para o Reichstag teria de ser estruturado de forma a dar mais poder eleitoral aos cultos e aos patrimoniados, e só os melhores seriam autorizados a sentar-se na câmara.

 

A Liga Pangermânica, por exemplo, dizia que o povo alemão estava rodeado de inimigos, desde os “eslavos” e “latinos” que cercavam a Alemanha por fora, até aos judeus, jesuítas, socialistas e outros agitadores e conspiradores subversivos que a minavam por dentro.

 

O problema residia no facto de os grupos de pressão alemães não resultarem de nenhuma estratégia manipulativa das elites guilherminas, mas de um movimento genuinamente populista de mobilização política a partir de baixo.

 

Os memorandos dos pangermanistas defendiam que os judeus deveriam ser tratados como estrangeiros, proibidos de adquirir terras e privados do seu património caso emigrassem. Para Gebsatell, o batismo não fazia obviamente diferença nenhuma para o facto de alguém ser judeu. Ou seja, quem tivesse mais de 25% de “sangue judeu” nas veias deveria ser tratado como judeu e não como alemão.

 

Teve então início a Primeira Guerra Mundial, onde os alemães começaram por triunfar.

 

Por volta de 1917, o Partido Bolchevique, liderado por Lenine, que dissera sempre que a derrota da Rússia na guerra era a maneira mais fácil de gerar uma revolução, montou um Golpe de Estado que encontrou pouca resistência.

 

A denominada Revolução de Outubro degenerou logo num caos sangrento. Quando os adversários dos bolcheviques tentaram montar um contragolpe, o novo regime reagiu com o “terror vermelho”. Todos os outros partidos foram ilegalizados. Foi estabelecida uma ditadura sob a liderança de Lenine.

 

O recém-criado Exército Vermelho, chefiado por Trotsky, travou uma terrível guerra civil contra os “Brancos”, que procuravam restaurar o regime czarista.

 

A polícia política bolchevique, Cheka, reprimiu implacavelmente os opositores  do regime: socialistas moderados, mencheviques, anarquistas,  sociais-revolucionários ligados aos camponeses. Milhares de pessoas foram torturadas, assassinadas ou encarceradas em condições brutais nos primeiros campos que depois se transformaram no Gulag.

 

Foi no cadinho do triunfo da Revolução Comunista na Rússia e da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial que se forjou o nazismo.

 

João Madureira

 

09
Ago21

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552 - Pérolas e Diamantes: Ausências

 

É cansativo ouvir os governantes dizer imbecilidades com um ar sorridente. E penso, contraditoriamente, que agora é fácil sonhar com Hieronymus Bosch. Faz sentido. Depois lembro-me dos jardins zoológicos e dos pássaros coloridos e dos jogos da cabra-cega e de um quadro popular com um anjo da guarda a proteger um menino com os olhos vendados, como se ambos brincassem. Vivemos entre paisagens de palavras oníricas e praias repletas de ondas de dúvidas. E os governantes a surfarem as ondas. E nós a precisarmos de tomar a medicação. Depois da sugestão, surge o trauma. E a mão da realidade agarra-nos sem nos darmos conta. Mas de pouco nos serve. Vamos ver se podemos aguentá-la um pouco mais. E a felicidade também. A felicidade é agora uma velha desdentada que me faz chorar. E não acontece nada. Depois sentimo-nos intimidados. A verdade é que agora somos muito mais condescendentes com os malucos. E, seguidamente, um pouco mais dali a pouco, vemos os líderes merdosos a intimidarem a diferença e a declamarem a sua poesia política num estilo dramático e declamatório. A mim dá-me vontade de rir. Coisas. A verdade é que o mito de James Dean já lá vai ao longe e também perdemos o vício de contar estrelas. A beleza desaparecida é como uma cólica renal e o tempo um incêndio doméstico. Hoje, até as princesas procuram um apartamento. E os livros dos clássicos deixaram de ser resilientes. A verdade é que tenho saudades de passar a noite a falar com pessoas interessantes. Ou a jogar bilhar. A retórica é cada vez mais inútil. Continuo sem perceber a razão por que os intelectuais marxistas se repugnam com a felicidade do povo e não gostam de limpar a cozinha. Mas continuo a gostar de morangos com chantilly. Antigamente faziam-se muitos churrascos, agora comem-se saladas vegan como se fôssemos todos pecadores. Mas todos continuam a ter a mesma maneira de ouvir, pensar e até agir. As dietas macrobióticas provocam depressão, por isso a carne passou a ser substituída pelos medicamentos antidepressivos. Não nos podemos rir das festas onde as pessoas tentam ser felizes, apesar de os empregados estarem a servir as carnes frias. Existe sempre a necessidade de combater as pequenas catástrofes. Até porque a tristeza verdadeira é incurável. É bom desconfiar de quem invoca o poder das coisas sombrias. O problema é quando carregamos no play e a vida fica a tremer. Eu gosto das imagens nítidas. Defeito de quem é pitosga. A frequência diária dos déjà-vu é preocupante. Neste caso, recordar é morrer. O esgotamento do sexo pode levar à infelicidade. E, nestes casos, nem a esquerda caviar tem um discurso ideologicamente apropriado. Já a direita opus dei prefere deitar-se na relva e apreciar o delírio carnal do cilício. Eu, confesso, sou mais de beber finos e comer tremoços na Ilha do Cavaleiro. E nunca me queixo da música, apesar de não a apreciar. Ler ainda me entusiasma. É isso e os médiuns das sociedades secretas. E também as liturgias psicadélicas. E a vida eterna dos rituais. É frustrante, mas tenho de confessar que não sei de cor os nomes das constelações. É verdade que quero ir a Moscovo ver a múmia do Lenine. E também a Graceland visitar a casa de Elvis Presley. Ou então à datcha de férias do Estaline ou ao Nerverland do Michel Jackson. Isto está tudo errado. Ainda me lembro quando a minha mãe punha os seus lábios de desaprovação e me abria a palma da mão para corrigir os meus gestos de tensão. E eu esticava os dedos pensando que tudo estava controlado. E também me lembro de andar às voltas pela cidade, atravessando as pontes. A maior parte das vezes sozinho. A solidão também é uma forma de se ser egoísta. Gostamos de viver nas montanhas e também de ir para a praia. E de passear à beira-mar e de sentir o vento na cara. E da alegria. E de não fazer nada. Há canções de embalar para acalmar o sofrimento. Temos de encontrar alguém que consiga abrir a escuridão. Velha receita para adormecer: um apelido de um poeta com A. Não me lembro de nenhum. Apenas de um rosto a emitir luz. Ou então uma estrela em forma de mão. Sonho. Voltei a pôr azeite nos lábios do pai, em vez do batom do cieiro. Secam-lhe imenso. Fim do sonho. Já não me lembro da sua voz. Essa é a primeira coisa que perdemos dos ausentes.

 

João Madureira

 

26
Nov18

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419 - Pérolas e Diamantes: Os olhos vingativos das sereias

 

 

Muita da literatura que por aí vigora é dedicada a desconstruir instituições tão “perigosas” como  a família, a escola, a lei e o estado-nação através dos quais a herança da civilização ocidental foi passada até nos.

 

Esta literatura, que foi glorificada e fertilizada nos escritos de Foucault, apresenta como “estruturas de dominação” o que cada um de nós identifica como instrumentos de ordem cívica.

 

Ou seja, segundo esta interpretação, é urgente libertar as mulheres da opressão masculina, libertar os animais do abuso humano, lutar ao lado dos homossexuais e transexuais contra a homofobia, e mesmo cerrar fileiras ao lado dos muçulmanos para combater a islamofobia. Mas, a fazê-lo, é necessário deixar-nos absorver pela agenda da esquerda. De outra maneira, nada feito.

 

É triste, mas verdadeiro, o  igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que lutaram sem tréguas, e sem hesitações, pela abolição da propriedade privada, já não possui o poder de atração global de antigamente. O slogan “proletários de todos os países uni-vos”, foi chão que já deu uvas.

 

O objetivo igualitário não permite que nada, nem ninguém, se meta no seu caminho. Nenhum costume, instituição, hierarquia ou lei existentes, pode triunfar sobre a igualdade.

 

A proclamada justiça social continua a lavar a História. Uma mão lava a outra...

 

Marx defendeu n’A Ideologia Alemã algo extraordinariamente poético. A seguir à ditadura do proletariado, o Estado definhará. Não existirá nem lei, nem a necessidade dela. Tudo será de todos. Não existirá divisão laboral. Toda a gente irá gozar em pleno as suas necessidades e desejos, “a caçar de manhã, a pescar à tarde, a reunir o gado ao fim do dia e a discutir literatura depois do jantar”. A seguir à ideologia veio a prática. E depois foi aquilo que se viu.

 

Diziam os apóstolos dessa boa nova que tudo isso era “científico” e não utópico. Afinal, tudo não passou de uma piada. Que rica seria a vida sem propriedade privada.

 

Os marxistas “científicos” diziam que só um pensamento sério nos faria acreditar que a História caminhava, ou devia caminhar, no caminho do socialismo. Depois da realidade indecorosa desse “materialismo dialético”, os historiadores de esquerda passaram a minimizar as atrocidades cometidas em nome do socialismo e a culpar as forças reacionárias pelos desastres que fizeram retardar o avanço socialista.

 

Roger Scuton, considera que “a assimetria moral, que atribui à esquerda o monopólio de virtude moral e usa a ‘direita’ como um termo de abuso, acompanha uma assimetria lógica, nomeadamente, a admissão de que o ónus da prova cai sempre no outro lado e não pode , jamais, ser retirado”.

 

A esquerda uma coisa conseguiu: burocratizar a liberdade e a justiça social.

 

Eric Hobsbawm, por exemplo, nos quatro volumes da sua História do nascimento do mundo moderno, faz uma síntese enganadora tentando branquear a experiência comunista e culpar o capitalismo de todo o mal  no mundo, o que, bem vistas as coisas, é, além de sinistro, um pouco antiquado.

 

Todos sabemos que os factos são mais interessantes e memoráveis quando fazem parte de um drama. Por isso é que a esquerda passa a vida a dramatizar porque, na sua visão, a vida moderna só pode ser dramática. Sem drama não há revoluções.

 

A História marxista só adquire significado com a classe operária no topo das prioridades. Por isso há que demonizar a classe alta e romantizar a baixa. Faz parte do jogo. Faz parte do vício.  Faz parte do drama.

 

No seus livros, Hobsbawm, por exemplo, não se incomoda com pormenores como a lei e os processos judiciais, não vê necessidade em mencionar o decreto de Lenine, de 21 de novembro de 1917, que anulava os tribunais, o foro judicial e toda a advocacia, deixando as pessoas sem a única proteção que tinham, ficando por isso sujeitas à intimidação e à prisão arbitrárias.  

 

Lenine criou a Cheka, percursora do KGB, e o poder que lhe atribuiu para usar métodos terroristas necessários para expressar a vontade das “massas” contra a vontade do simples povo, também já se esqueceu. A borracha comunista é impressionante.

 

Eric Hobsbawm também nada diz sobre a fome de 1921, a primeira das três vagas de fome provocadas pelo Homem no início da História soviética, fome que foi propositadamente usada por Lenine para impor a vontade das “massas” aos desafiadores camponeses ucranianos, que ainda não tinham aceitado incorporar as leis do socialismo científico, nem o seu papel na História.

 

A morte libertou-os das dúvidas.

 

O que mais me surpreendeu na leitura do livro “A Era dos Extremos” foi o não ter sido considerada uma obra equivalente à do branqueamento do Holocausto por David Irving.

 

Mais uma vez descobri que os crimes cometidos à esquerda não são verdadeiros crimes. E que aqueles que os desculpam, ou ignoram, em silêncio cúmplice, têm sempre bons motivos para o fazer.

 

É bem verdade, a raposa pode mudar de pelo, mas não muda de hábitos.

 

João Madureira

 

14
Mai18

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392 - Pérolas e Diamantes: Entre a justiça e o seu cúmulo

 

A eurodeputada socialista Ana Gomes, preocupada com a credibilidade da política e dos políticos, sobretudo os do seu partido, diz que o PS se deve demarcar de “quem esteve no Governo para se servir”.

 

Independentemente do julgamento que se venha a realizar, todos sabemos que o engenheiro Sócrates vivia “num desmando total em relação às suas contas pessoais”.

 

Independentemente de ser crime ou não, a divulgação dos interrogatórios evidencia, até à exaustão, a ligação do ex-primeiro-ministro ao grupo Espírito Santo, revelando “um esquema corrupto de captura de um governo”.

 

Mas atenção, e nisso Ana Gomes vai até mais fundo, “o esquema não começou com Sócrates, pois existem elementos relevantes que mostram que começou antes, nomeadamente com a questão dos submarinos ou dos Panduru”.

 

O estranho é que havia sempre um membro do Governo que vinha do BES ou ia para o BES.

 

A deputada socialista não teve papas na língua quando afirmou ao Expresso que é a primeira a dizer que se faça justiça, pois existe um facto insofismável: “A relação especial e privilegiada de Sócrates com Ricardo Salgado. Pelos vistos, estava às ordens dele e até fez negócios à conta dele. O PS não pode pôr isso debaixo do tapete”.

 

O problema é como pode fazê-lo. Por aí passa a questão da sua credibilidade.

 

Mas dêmos outra vez a palavra a Ana Gomes: “O Governo está a trabalhar bem, o que é mais uma razão para o PS não meter a cabeça na areia e assumir que não vai deixar-se instrumentalizar por um individuo mitómano, com uma vida financeira desregrada e que se prestou a que o seu Governo fosse infiltrado e manipulado por interesses de um grupo financeiro.”

 

Por isso, reafirma que o PS tem, para bem da democracia, de demarcar-se deste tipo de comportamento, de gente que estava no Governo do PS para se servir.

 

Referindo-se ao caso de Manuel Pinho, é perentória: “Um ministro que recebe um ordenado à parte da entidade que lhe pagava antes através de offshores, só pode ser por esquemas de corrupção e de evasão fiscal.”

 

Manuel Pinho logo de início lhe pareceu estranho, quando o viu a rondar o PS ainda no tempo em que o Ferro Rodrigues era secretário-geral e ela fazia parte da sua direção, na companhia de Sócrates e António Costa.

 

Via-o solícito, a apresentar-se como economista e a aparecer em todo o lado. Mais tarde, quando entrou para o Governo, pela mão de José Sócrates, lembra-se de lhe terem comentado que Manuel Pinho era “um homem do Espírito Santo”.

 

Por isso, Ana Gomes apela a que o próximo Congresso seja uma “oportunidade para escalpelizar como o PS se prestou a ser instrumento de corruptos e criminosos”.

 

Claro que há camaradas seus que discordam da opinião de Ana Gomes. Arons de Carvalho, um fundador do PS, considera que “Ana Gomes já se antecipou à justiça e fez justiça pelas próprias palavras”.

 

Mas ele, o tal Arons de Carvalho, declarou que não acha reprovável que uma pessoa como Sócrates possa viver com dinheiro emprestado.

 

Se calhar, muitos de nós partilhamos da mesma ideia, só que o senhor engenheiro viveu como um príncipe à custa de um seu amigo (Carlos Santos Silva) que era a verdadeira encarnação do rei Midas: tudo o que tocava transformava em euros, milhões e milhões deles. Ora isso só acontece nos contos de fadas.

 

Todos estranhamos é a forma como a ficção se transformou em realidade.

 

O PS, como instrumento de governação do país, tem de assumir as suas responsabilidades e criar mecanismos de transparência e questionamento.

 

José Sócrates disse que “sempre foi muito vaidoso” e que foi “por vaidade que se meteu na política”.

 

Fora as peneiras, temos de convir que governou com alguma lucidez. Mas o problema está no estranho facto de Sócrates ter um amigo que o financiava de uma forma alucinante. Ora tanto altruísmo é para desconfiar. Parece que o que movia as relações entre os dois não era a afetividade, mas sim os negócios, pois mandava-o levar “fotocópias”, ou, dito de outra forma, “aquela coisa de que gosto muito”.

 

É óbvio que Carlos Santos Silva ganhava dinheiro com os “favores” que fazia ao seu amigo engenheiro.

 

De todas as vezes que Santos Silva foi contatado, nunca lhe disse um único não. Respondia-lhe sempre a medo e com um lacónico “Sim…” Só lá faltava o “…meu senhor”,

 

Segundo o Ministério Público, o modus faciendi, já abundantemente explicado, de Santos Silva para canalizar o dinheiro para o amigo foi o seguinte: Comprou as casas da mãe de Sócrates com o próprio dinheiro deste e, a seguir, a mãe passou o valor da venda para as mãos do filho a título de doação; passou cheques da conta 006, que mandava levantar e depois o valor era entregue a Sócrates (ou ao seu motorista) em dinheiro; fazia levantamentos dessa conta e levava o dinheiro pessoalmente a casa de Sócrates, ou entregava-o a amigos de Sócrates que este indicava ou a uma senhora que servia de correio entre Lisboa e Paris, quando o ex-primeiro-ministro estava na Sciense Po; comprou a casa de Paris, que ficou em seu nome, mas que Sócrates decorou e mais tarde passaria certamente para o seu nome; pagava as prestações de uma quinta no Alentejo usada pela ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava; etc.; etc.; etc.

 

Mas se, por alguma razão, o juiz vier a considerar que o dinheiro em trânsito era mesmo de Santos Silva, o amigo de Sócrates é que vai pagar as favas, pois não tem modo plausível de explicar as astronómicas quantias que recebia. Só por milagre. Parece, no entanto, que os milagres não vão a julgamento.

 

Como poderá ele justificar os depósitos feitos em seu nome por Hélder Bataglia ou pelo saco azul do BES? Onde estarão as faturas da fortuna que recebeu?

 

Será o cúmulo da justiça vermos Carlos Santos Silva ser condenado e José Sócrates ficar em liberdade.

 

Por agora, a estratégia de Sócrates, Pinho, Vara e Ricardo Salgado, consiste em aproveitar a lentidão da justiça – servida pela parafernália de recursos que os bons advogados sabem usar – e ficar a marinar até se descobrir um qualquer expediente que faça prescrever os processos ou que fiquem apenas na esfera das penas simbólicas.

 

João Madureira

 

12
Jun17

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346 - Pérolas e diamantes: O vazamento das evidências

 

Laurent Binet escreveu um livro suficientemente divertido sobre Roland Barthes (escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês que fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo linguista Ferdinand de Saussure), partindo da suposição de que afinal não morreu por causa de um acidente estúpido mas antes vítima de um homicídio premeditado.

 

Ou seja, o maior crítico literário do século XX terá sido assassinado por possuir qualquer coisa de muito poderosa.  

 

A Sétima Função da Linguagem parte de uma frase inicial: “A vida não é um romance.”

 

De facto, a morte de Barthes deu-se em circunstâncias um pouco tristes. Foi atropelado quando saía de um almoço com François Mitterrand, então candidato à presidência da França.

 

Ser mestre na utilização da linguagem, todos o sabemos, é muito proveitoso. A semiótica é útil para entender o mundo e a retórica é útil para lidar com ele.

 

Para atingir o poder, a linguagem é uma arma poderosa. Binet, para construir o seu romance, parte do princípio de que a linguagem é a arma mais poderosa do mundo e há mesmo quem mate para dominar o seu segredo.

 

Roland Barthes era um descodificar do modo humano de comunicar. Possuía até uma qualidade intelectual que os medíocres apreciam imenso: conseguia falar de bifes com batatas fritas, de carros, de filmes do James Bond, fazendo uma abordagem muito lúdica da Linguística.

 

Afinal, segundo os entendidos, a Semiologia é isso mesmo: uma disciplina que aplica os métodos da crítica literária a objetos não-literários. É o estudo da vida dos signos no seio da vida social.

 

Lá pelo meio do livro aparecem estudantes de alpargatas e peúgas distribuindo panfletos onde se pode ler: À Espera de Godard, peça em um ato, a que eu gostaria de ter assistido.

 

E também existem as personagens que buscam a verdade. Os medíocres estão espalhados por todo o lado. E a verdade… A verdade… “Onde é que ela começa, onde é que ela acaba… Estamos sempre no meio de alguma coisa.”

 

A verdade só existe se for exibida. É um símbolo. E um símbolo escondido não serve para nada. Não existe.

 

Por exemplo, Jean Daniel escreveu um editorial sobre Mitterrand no Nouvel Obsevateur, em 1966, onde apresentou esta certeza: “Este homem não dá só a impressão de não acreditar em nada: perante ele, sentimo-nos culpados de acreditar em alguma coisa. Ele insinua, como quem não quer a coisa, que nada é puro, que tudo é sórdido e que nenhuma ilusão é permitida.”

 

Numa conversa entre espiões de gabarito, a dado momento uma personagem pensa que nada existe de mais desconfortável para alguém disposto a mentir do que ignorar o nível de informação do seu interlocutor.

 

Quando se mente, há que mentir, como pensa o camarada Kristoff, apenas num ponto. E num só. Em tudo o resto tem de se ser perfeitamente honesto.

 

Barthes detesta aborrecer-se, mas oferecem-lhe tantas oportunidades que não lhe resta outra solução se não aceitá-las. Sem saber bem porquê, convenhamos.

 

Os políticos aprenderam já há muito tempo que para se ter sucesso é necessário possuir um elevado grau da arte de enunciar as evidências.

 

Barthes, sempre conciliador, alegava: “Uma evidência não se demonstra, vaza-se.”

 

A arte de governar afinal não passa de nos convencer de que o governo não é responsável por nada.

 

Por isso lhe dói o balanço das contas.

 

“O momento difícil de uma vida, a dele, a vossa, a minha, de toda a vida que se pretende ambiciosa, é aquele em que se inscreve o sinal na parede a dizer-nos que começamos a imitar-nos a nós mesmos.”

 

A linguagem, quer queiramos ou não, serve para produzir uma mensagem que só adquire sentido no momento em que existe um destinatário. Apenas os loucos tagarelam no deserto.

 

Ainda não apurei se o Laurent Binet é ou não um bom romancista, o que sim sei é que a sua fasquia é muito alta, pois considera que “se houver Deus, ele será um mau romancista”.

 

João Madureira

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