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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

27
Fev14

O Homem Sem Memória - 192


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

192 – Triste sina a do José. Na República Democrática do Norte era considerado um intelectual infiel à tradição, ateu e arrojado comunista e na República Popular do Sul era visto como intelectual, católico fundamentalista, traidor e perigoso reacionário. E disto não se conseguia libertar.

 

Como nada tinha a confessar acerca da sua traição, porque, bem vistas as coisas, ele não traiu coisa alguma, nem ninguém, nada confessou aos seus carrascos. Por mais porrada que lhe dessem, ele não podia confessar o inconfessável. O José ou tinha traído tudo e todos ou não tinha traído ninguém.

 

Ao fim de mais algumas sessões de tortura revolucionária marxista-leninista, os verdugos nada conseguiram sacar ao intrépido transmontano. O oposto sucedeu com os seus companheiros de aventura contrarrevolucionária. Esses confessaram tudo e mais alguma coisa. Sobretudo a traição à revolução proletária nacional e mundial. Confessaram ainda desvios ideológicos, furtos de propaganda reacionária que liam às escondidas, uma que outra relação homossexual, orações ditas ao deitar e ao levantar, a bênção do pão, rir de piadas contra o Partido, rir de piadas contra Alberto Punhal, rir por rir, falta de fé revolucionária, fraqueza ideológica, roubo de comida nos armazéns do povo, aventureirismo, esquerdismo, direitismo, titismo, trotskismo, maoísmo, snobismo, intelectualismo e alcoolismo.

 

O José foi definhando, tal qual as suas ideias. Afinal o Manifesto Comunista era um bom livro para limpar o cu, as obras completas de Lenine eram úteis para acender a fogueira nas noites frias de inverno e toda a obra escrita do camarada Alberto Punhal era ideal para forrar gavetas, embrulhar tremoços e azeitonas ou castanhas assadas.

 

Tanta palavra bonita proferida para nada, tanto ideal criado para coisa nenhuma. Tanto sacrifício inútil, tanto sangue derramado em vão. Só quem pretende dizer verdades absolutas é que consegue mentir absolutamente. E foi isso o que o José disse quando foi levado a tribunal: “Só quem se convence que é dono de toda a verdade é que consegue fabricar a mentira absoluta.”

 

Por tal ousadia, e por ter traído a revolução e arregimentado uma pequena sublevação contrarrevolucionária, foi condenado à morte por enforcamento. Apesar das confissões completas, os seus companheiros de desgraça foram despachados com a mesma sentença.

 

A República Popular do Sul, nas palavras dos seus máximos representantes revolucionários, não se podia dar ao luxo de gastar chumbo com tão ruins defuntos. Uma corda bem utilizada dava e sobrava para enforcar a dúzia de reacionários que ousaram desafiar a serena força revolucionária da RPS.

 

Convenhamos que esta narrativa, se assim lhe podemos chamar, até merecia um final dramático deste tipo. Mas nem tudo o que é bom para os livros acaba por acontecer na realidade.

 

No dia anterior ao da data marcada para o enforcamento do José, a RPS propôs à República Democrática do Norte uma nova troca de prisioneiros. Ao que apurámos, os membros da Comissão Política do Comité Central do clandestino Partido Comunista do Norte tinham sido presos enquanto decorria uma reunião deste máximo órgão dirigente.

 

A primeira pergunta que os dirigentes do Norte fizeram aos seus congéneres do Sul foi quem é que eles tinham para trocar. Os camaradas ficaram embasbacados, pois além do José, que eles consideravam o maior reacionário da república popular, pouco mais tinham para oferecer, talvez uns frades missionários e algumas freiras misericordiosas. Os restantes, nas suas palavras, ou foram reabilitados ou estavam mortos. Mas como todos sabemos que na RPS ninguém se reabilita por impossibilidade teórica marxista-leninista, apenas nos resta a segunda hipótese. 

 

O presidente do Norte argumentou que era como trocar um porta-aviões por um barco de pesca artesanal de Sines. A sua primeira decisão foi a de rejeitar a proposta, mas alguém mais avisado fez-lhe ver que se os comunistas do CC fossem enviados para o Sul, deixavam de ser um problema para o Norte. Gente desta estirpe só pode trazer complicações. E das grandes. Como todos são intrépidos comunistas, que se arranjem lá uns com os outros. Mas o presidente do Norte fez-lhe ver que a moeda de troca era o José, que, por sua vez, já tinha sido trocado e que nem assim se conseguiu dar bem com os ares do Sul, que, ao que dizia, eram os seus.

 

Ponderados os prós e os contras, o presidente do Norte, homem pragmático e pouco dado à política, e muitos menos à ideologia, pois nem sabia o que isso era, aceitou, mas com uma condição, a de o prisioneiro escrever as suas memórias. Está claro que a condição foi estabelecida com os seus legítimos representantes na República do Norte: a sua família, ou mais concretamente, a sua mãe, que nestes, como noutros acontecimentos, foi sempre quem pôs e dispôs. Desta forma foi o nosso herói salvo da morte por enforcamento.

 

Mal chegou à sua terrinha, em muito segredo, para os cidadãos do Norte não se inteirarem das contradições do regime democrático nestas trocas e baldrocas, foi logo encaminhado para a casa da sua mãezinha, a Dona Rosa, que quando o avistou ao longe desmaiou, como era seu feitio. Mal deu acordo, carregou-o de beijos e prometeu engordá-lo como se fosse, com vossa licença, um reco. Prometeu e cumpriu.

 

Quando o José recuperou as cores, a sua mãe, numa bonita tarde de sol, enquanto o seu pai fumava um cigarro, os seus irmãos mais novos estudavam em casa e ele coçava a barriga ao sol como um verdadeiro ex-preso político, resolveu apresentar-lhe a fatura da sua libertação: a escrita das suas memórias.

 

Ainda hoje se comenta o grito que então se ouviu lá no bairro, bem maior do que o do Quincas quando, por engano, em vez de aguardente bebeu água: “Mãe, eu matei a minha memória. Eu sou um homem sem memória.” E continuou a coçar a barriga ao sol como se fosse um burguês em férias.

 

 

20
Fev14

O Homem Sem Memória - 191


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

191 – “Por favor, mãe… Não, não, não me batas mais. Mãe. Não. Não fui eu quem roubou as maçãs à Dona Quinhas”, gritava o José momentos antes de abrir os olhos e ver que quem lhe dava bofetadas não era a Dona Rosa mas sim os esbirros de Alberto Punhal.

 

“Torcionários. Reacionários. Filhos da…” “Toma, toma, toma, toma mais esta e esta e ainda mais esta. Esta é por Lenine, esta por Marx, esta por Estaline, esta por Punhal e esta por mim e mais esta e esta e ainda mais esta. Tu cansas-me… E esta pela revolução que tu queres trair, besta reacionária…” “Reacionário és tu, filho da…” “Toma, toma, toma lá mais esta e esta, filho de uma cadela burguesa. Esta é por Marx, esta por Lenine, esta por Fidel, esta por Punhal, e mais esta por…” “Para, para, que o matas à lambada. Usa os processos, mas a modinho. Usa mas não abuses destes reciclados métodos ecologistas de tortura. As ordens são para obrigá-lo a confessar, não para o matar. Pelo menos para já. E as ordens são para ser cumpridas. Afinal vivemos num estado de direito socialista, a caminho do comunismo, ah, ah, ah... O preso tem os seus direitos… ah, ah, ah...” “Quais direitos, qual caralho! O direito deste cão reacionário é levar porrada. Porrada e mais porrada. Onde já se viu um transmontaneco de merda vir para aqui fazer pouco de todos nós. E do Partido. Enquanto eu puder, aqui na nossa terra ninguém brinca com a revolução, nem com as suas conquistas. Traz a vergasta que o vamos açoitar até confessar.” Pausa. “Reacionário, filho de uma cadela burguesa…” “Reacionário és tu, filho da…” “Toma, toma, toma, toma mais esta e ainda mais esta. Esta é por Fidel e esta por Che e esta por Lenine e esta por Marx e ainda esta outra por Estaline e ainda mais esta por Punhal… Traz lá a merda da vergasta, que já me começam a doer as mãos.” Pausa. “Reacionário, filho da…” “Toma, toma, toma lá mais esta e mais esta e mais esta e ainda mais esta. Esta por Lenine, esta por Marx e mais estas todas pelos revolucionários de cujos nomes agora não me lembro... Tu cansas-me… E não confessa, este filho de uma cadela reacionária…” Nova pausa, pois o prisioneiro voltou a desmaiar. “Foda-se, estou esgotado. Agora é a tua vez, meu trotskista de merda.” “ Não me chames isso nem a brincar.” “Olha, olha. Continua sem sentidos. Será que está morto?” “Morto não está porque ainda respira. Mas já não lhe falta tudo.” “Este filho de uma cadela reacionária não confessa nada.” “Pudera, tu, além de ainda não lhe teres feito nenhuma pergunta, nem sequer o deixas falar.” “Não vês que ele mal abre a boca insulta-me logo.” “É a sua tática.” “Talvez a sua tática o leve à morte.” “E achas que ele se importa?” “Ninguém gosta de morrer. Isso eu sei.” “Mas observando a maneira como ele se aguenta, penso que deves estar enganado. A forma como te provoca leva-me a pensar o contrário.” “Deixa-te de filosofias baratas e passa-me aí o vergalho.” “Com o vergalho não. Isso não. As ordens do camarada diretor são para obrigá-lo a confessar, não desancá-lo com porrada até à morte. Se lhe malhas com o vergalho, o pobre do homem não aguenta. O vergalho é para usar muito a modinho. E por especialistas. Exige muito treino e outra tanta sabedoria. Nas mãos de um brutamontes como tu é uma arma letal.” “Com as mãos já não consigo mais. É a tua vez.” “Não, não é. Então não sabes que eu é que estou escalado para fazer de torturador bom. Tu malhas e eu observo. Também quem mandou gabares-te ao chefe de que tens umas manápulas de gigante. Mais a mais, alguém tem de estar atento para ouvir a sua confissão. Afinal é isso que todos pretendemos. Olha, olha, está a acordar de novo. Vamos voltar ao trabalho.” “Eu não posso mais, já não sinto as mãos. Só continuo a tarefa se for com o vergalho.” “Não insistas, como chefe desta brigada de tortura proíbo-te de usares tal arma.” Pausa. Afinal o José não chegou a despertar, como o torturador bom tinha sugerido. Cansado de esperar, o torturador com manápulas de gigante, foi-se ao José e de novo o começou a esbofetear com toda a determinação revolucionária. E o José: “Não, mãe, não fui eu que roubei os rebuçados ao azeiteiro. Não me batas.” “Eu não sou a tua mãe. Sou um dos muitos camaradas que traíste. Tu traíste-nos a todos. Confessa. Toma, toma, toma, toma. Esta é por Lenine, esta é por Marx, esta é por Punhal, esta por Ho Che Ming…” “Não é Ho Che Ming é Ho Chi Minh…” “E a quem é que isso interessa? Porque não vens tu continuar a tarefa a ver se ele confessa.” “O que queres que ele confesse?” “Não te armes em intelectual. Queremos que confesse a sua traição. Afinal ele é um traidor. Traiu o Partido, os camaradas e a revolução. Não existe pior traição. Ele tem de confessar a sua traição.” “É aí que te enganas. Ele pensa que não traiu nada nem ninguém. Ele pensa que os traidores somos nós.” “Essa é a sua maior traição. Vai lá buscar o vergalho. Ele vai confessar, e de joelhos, como os católicos.” “Não insista no vergalho.” “Toma, toma, toma, toma lá mais esta, reacionário, traidor da classe operária, traidor da revolução, traidor do marxismo-leninismo…” “Reacionário és tu. Tu é que devias confessar a tua traição. Torcionário, reacionário, filho da…” “Toma, toma, toma. Esta é por Fidel, esta por Lenine, esta por Marx, esta é pelo seu amigo de quem agora não me lembra o nome, mas que também tinha barbas e era um comunista retinto, esta é por…” “Deixa lá, que o prisioneiro voltou a desmaiar. Vou chamar o médico e mandá-lo para a cela. Amanhã é outro dia.”

 

Depois da visita do médico da prisão, o José deu acordo de si e, virando-se para os torturadores, disse: “Até amanhã, camaradas.” “Além de traidor e reacionário é provocador. Isto só de vergalho é que lá vai.” “Estou que nem com isso”, concluiu o torturador bom já pronto a deixar de o ser. 

 

192 – Triste sina a do José. Na República Democrática do Norte era considerado um ...

 

(continua)

 

13
Fev14

O Homem Sem Memória - 190


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

190 - O José mal adormecia começava a ver desfilar, no meio de nuvens, uma turba de gente encabeçada por um grupo de jovens de calções e bandeiras. Uns cantavam o “Hino da Mocidade Portuguesa” e outros entoavam a “Internacional”. Na cabeça do José tudo se confundia. O canto que aprendeu a entoar enquanto criança e o cântico comunista que aprendeu a berrar no tempo da sua jovem militância comunista.

 

Tudo relembrado em eco. O povo… ovo… ovo… lá vai cantando… ando… ando… e rindo… indo… indo (Shane! Shane!) levado pela ideia que já consome… ome… ome… (Shane? Shane?) a chama que a soterra… erra… erra… e se nada somos… omos… omos… neste mundo sejamos tudo… udo… udo… levados pela voz… oz… oz… (feiticeiro, onde estás tu?) do som tremendo das tubas… ubas… ubas da costa bruta… uta… uta… (Shane! Shane!) que nos cortam a mal… al… al… (feiticeiro de OZ? Shane?) pelo fundo e pelos senhores… ores… ores… (Aniki Bobó… Shane… Feiticeiro…) e pelos produtores e pelos patrões… ões… ões… cabrões… (Shane, somewhere over the rainbow… feiticeiro…) para não termos protestos para sair ir… ir… e vir… e tornar a ir… (Shane, ajuda-me, ajuda-nos…) deste antro estreito façamos nós por nossas mãos que o sonho é lindo indo… indo… e lá vamos torres erguendo rasgões e clareiras abrindo na alva luz… uz… uz… (Shane, ajuda-nos, ajuda-me) imortal da internacional todo o suor da corja… orja… orja… (Feiticeiro… somewhere over the rainbow… Oz… AnikiBobó… Aniki Bebé… Shane…) rica que recolhe o povo e luta afinal pela paz entre nós que somos irmãos… aõs… aõs… trabalhadores… dores… dores (Shane…) que somos a mocidade que passa e o tronco em flor… or… or… que estende os ramos… amos… amos… (Feiticeiro? OZ…) e lá vamos levados levados sim… im… im… portanto que cessem os ventos… entos… entos… da insânia pois já nada esperamos de nenhuns… (Shane? Shane…) Shaaaaaaane… Shaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaane… Shaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaane… Eu não quero ser um rei nem capitão nem soldado…  Shane… não quero mandar em nada… Shane… eu não quero ser mandado… Shane… Shane… quero um cavalo de pau feito da mesma madeira da minha pistola… Shane… não te vás embora… Shane… o tronco da flor… Shane… o sonho lindo… as nossas mãos… os direitos… os sujeitos… Shane… o povo só quer o que é seu… Shane… o povo só quer o que é seu… Shane… e eu apenas quero um cavalo de pau… eu não quero ser ladrão… Shane… eu não quero ser polícia… Shane… eu só quero um cavalo de pau… Shane… somewhere over the rainbow… Shane… over the rainbow… Shane… over the… Shane…

 

191 – “Por favor, mãe… Não, não, não me ...

 

(continua)

 

 

06
Fev14

O Homem Sem Memória - 189


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

189 – E lá foi o José, mais uma dúzia de intrépidos e valentes contrarrevolucionários, fazer a sua revolução. A vida tem destas contradições. E caminharam muito, com ele sempre a liderar. Meses e meses de caminhadas pela planície alentejana em busca de caça, tinham-no transformado num verdadeiro Zátopek. Parecia que nunca se cansava, por mais que andasse. Se a revolução contrarrevolucionária se fizesse à custa de muito andar, não temos dúvidas que o José a conseguiria implementar.

 

No momento de convencer os seus recentes camaradas para esta nova aventura de guerrilha, lembrou-lhes as palavras de Mao Zedong: Até a mais longa marcha começa pelo primeiro passo, ou coisa pelo estilo.

 

Os primeiros passos até foram fáceis de dar, o problema residiu nos seguintes. Eles lá caminhar caminhavam, pobres coitados, mas faziam-no sem um propósito definido. Iam assim ao deus-dará, transportando as armas que, sobretudo, lhes serviam para caçar.

 

Andavam sempre em fuga. Os perseguidores eram frequentemente despistados pela astúcia do José. O seu mapa mental estava bem organizado. Calcorrearam a planície de um lado para o outro, afastando-se das pessoas e dos povoados, evitando os caminhos. Ou seja, não tinham nenhum plano definido, como já explicámos.

 

Todos sabemos que para fazer uma revolução, mesmo que contrarrevolucionária, não é suficiente a verdade, a vontade e, muito menos, a razão. Se assim fosse o mundo era um lugar esplêndido. Mas não é. Para fazer triunfar uma ideia é necessária muita perseverança, ainda mais convicção e intenso esclarecimento. Os camaradas do José bem lhe diziam que era necessário falar com as pessoas, convencê-las de que viviam numa sociedade totalitária, debaixo do domínio de um estado repressivo e de uma ideologia falsamente libertadora. Mas pregar a contrarrevolução no Alentejo, todos o sabemos, é uma tarefa inglória. Uma ideia que custou décadas a arraigar-se no meio do povo, leva outras tantas a desarreigar-se. E contra isso nada há a fazer a não ser tolerar a paciência e deixar passar o tempo.

 

Por vezes, quando decidiam ir visitar um grupo de conhecidos do José a um qualquer monte lá no meio de nenhures, apesar de serem bem recebidos e devidamente acolhidos, quando intentavam pregar a boa nova de que era necessário lutar contra a tirania marxista-leninista-punhalista, as pessoas mudavam logo de assunto. Algumas, apesar de concordarem que a República Popular do Sul era pouco democrática, argumentavam que a luta que travaram contra o regime fascista de Salazar, e contra os latifundiários, lhes tinha saído cara e por isso não estavam na disposição de lutar contra quem os tinha ajudado nesse combate.

 

O José bem argumentava que sem latifundiários, mas com capatazes comunistas, sem Salazar mas com Punhal, a fome era muita, as prisões estavam repletas de presos políticos, a repressão era quase diária, não se podia falar contra o Estado, nem contra o Partido, nem contra Alberto Punhal. Mas eles teimavam sempre na sua, que o Partido os tinha ajudado no derrube do fascismo e na conquista do socialismo, entre outras frases feitas.

 

Quando bebia aguardente de medronho mais do que a conta, o José tornava-se agressivo na argumentação referindo que a revolução pretensamente socialista se tinha limitado a mudar o nome às coisas, mas que tudo continuava na mesma, ou pior. O Estado era mais totalitário, a polícia política praticava métodos ainda mais cruéis do que a antiga PIDE, os sindicatos limitavam-se a enfraquecer ou a sufocar as reivindicações dos operários e a Igreja tinha sido substituída pelo Partido, e para pior, pois era muito mais fundamentalista. Os bispos eram agora os membros do Comité Central e os padres foram trocados pelos funcionários comunistas. Afinal o que era Alberto Punhal senão o Cardeal representante da Cúria Soviética em Portugal sob o papado de Brejnev?

 

“Camarada José”, avisavam-no os pobres camponeses, “não te admitimos essas heresias. O homem pode ser muita coisa mas não é nenhum Cardeal. Ele nem sequer sabe rezar.” E o José: “Isso é o que ele faz todos os dias, quando profere aqueles disparates como se fossem verdades absolutas.”

 

E depois ia dormir. Ou fazer que dormia, pois não lhe saíam da cabeça aquelas palavras teimosas dos pobres camponeses que não conseguiam abandonar a sua obstinação comunista. Estava visto, as pessoas são atreitas às pretensas verdades absolutas. A tradição tem um peso desmesurado. A tradição e a falta de cultura. Que quase sempre andam juntas. A maioria das vezes, a tradição é a celebração da incultura, do atraso, da incapacidade de pensar. E qualquer revolução, mesmo uma contrarrevolução revolucionária, é vítima disso mesmo.

 

Imbuídos de espírito transformador, os revolucionários fingem que mudam as estruturas da sociedade para fazerem de conta que pretendem mudar o ser humano. Neste processo, os únicos que se transformam são os revolucionários que deixam de o ser para se converterem em torcionários.

 

Mas voltemos à nossa história. Entretanto, um pesadelo tornou-se recorrente nas noites mal dormidas do José.

 

190 - O José mal adormecia começava a ...

 

(continua)

 

 

30
Jan14

O Homem Sem Memória - 188


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

188 – Os tempos que decorreram foram de alívio e medo. Alívio porque o torcionário tinha desaparecido sem deixar rasto e medo porque ninguém sabia o que se passaria a seguir. Tanto o poder como a populaça se estudavam mutuamente. A incerteza cria a desconfiança e o caos.

 

As chefias provisórias foram procuradas na prata da casa. Mas tudo o que é provisório é fraco. E os prisioneiros começaram a pugnar por mais direitos, argumentando que estavam inscritos na Constituição. Responderam-lhes que a Constituição Socialista, que tanto custou a escrever, é para gente de bem, para o povo, não para os traidores. Os traidores são tratados como isso mesmo, como gente que não conhece a razão. A razão do Estado, a razão das ideias, a razão do Partido.

 

Gerou-se muita polémica, a que o José não passou incólume. Mas ele, pelo menos publicamente, não manifestou qualquer opinião. A princípio, os seus camaradas contrarrevolucionários estranharam o procedimento. Até porque sabiam que o José era muito bom na liderança dos processos políticos de massas e sabia falar e argumentar como poucos. Mas todos igualmente sabiam, e o filho da Dona Rosa mais do que ninguém, que pela boca morre o peixe. E ele, pelo menos desta vez, não ia morder o anzol.

 

Sabia que esta direção do campo era provisória e que tinha recebido ordens expressas para amaciar os procedimentos para ver se descobriam os responsáveis pelo desaparecimento do camarada capataz. Se o exemplo vingasse, o poder estava em perigo. Nenhum camarada pode desaparecer assim do pé para a mão e nunca mais ser encontrado. Isso era o caminho para a anarquia. E se os comunistas detestam visceralmente alguma coisa é a anarquia, que é o contrário da organização, da ordem e, por conseguinte, do socialismo e do seu estádio superior, o comunismo.

 

Claro está que aquela gestão de águas mansas num campo de concentração tinha de ser como a chuva de verão. E passadas apenas algumas semanas o sistema de administração endureceu bastante. O novo capataz, tendo um aspeto físico muito diferente do anterior, era nos procedimentos em tudo idêntico ao seu volatilizado camarada. Quando o puseram à prova com a sugestão da trasladação das ossadas do John Cleese para uma campa do cemitério para descansar em paz, limitou-se a afirmar que tudo devia permanecer igual ao que estava, pois essa era a forma de perpetuar a memória do seu antecessor que tão boas provas tinha dado de dedicação à causa revolucionária educando os reacionários nos sãos princípios do marxismo-leninismo. “Os bons exemplos são para ser seguidos”, disse alto e bom som logo na primeira reunião com os prisioneiros.

Escusado será dizer que o José prometeu vingança, pois a ideia de alguém ser capaz de deixar as ossadas do seu estimado amigo expostas aos olhares dos prisioneiros como uma forma de aviso macabro, era-lhe intolerável. Por isso decidiu reunir com o seu núcleo mais próximo para tomarem uma decisão.

 

A primeira proposta foi a de que se devia proceder com este capataz da mesma forma que com o anterior, pois eram duas almas gémeas na insensibilidade e na repressão. Todas as seguintes intervenções foram do mesmo teor, que se devia eliminar o mal pela raiz e fazê-lo desaparecer da mesma forma. Mas o José tinha outra opinião. Não se deviam adotar dois procedimentos idênticos pois seriam logo objeto de suspeita e investigação. Além disso os pobres dos javalis não mereciam serem envenenados com carne de tão fraca procedência. As doses de veneno podiam ser-lhes fatais.

 

Quando questionado, à boa maneira leninista, sobre o que fazer, respondeu que deviam dar-lhe um tiro entre os olhos, precisamente no mesmo sítio onde o torcionário anterior tinha alvejado o companheiro John Cleese. Eles olharam para o José como se de repente tivesse enlouquecido. Pois esse era um tipo de procedimento que de certeza os levaria ao fuzilamento. O José concordou que tudo indicava que sim, mas apenas se depois do disparo e da morte do capataz ficassem ali à espera de que os viessem prender, torturar e fuzilar.

 

O plano do José baseava-se na morte do torcionário, seguida de fuga e evasão, mas uma evasão em grupo, devidamente organizada, com o objetivo de constituírem uma brigada revolucionária, de sentido oposto, que se dedicasse a combater o poder ilegítimo instituído na República Popular do Sul. “A morrer devemos morrer de pé como os sobreiros”, disse com a voz embargada. “E não aguardar fenecer sem fazer nada para inverter este estado de coisas.” No que foi apoiado pelos seus camaradas contrarrevolucionários.

 

O primeiro procedimento foi o de recolherem as armas e as munições que o José tinha vindo a acomodar e a esconder em lugar seguro. Afinal, a sua dedicação ao campo e aos roteiros de caça tinham dado os seus frutos.

 

O dia escolhido para a ação foi o do aniversário da UCP. Decidiram que matariam o capataz na cerimónia oficial. E foi isso que fizeram. Deram-lhe um tiro mesmo no meio da testa quando ele e os seus camaradas convidados mais destacados da região degustavam a carne de alguns dos javalis responsáveis pelo desaparecimento do anterior diretor do campo.

 

Depois do pânico instalado, os prisioneiros sublevados puseram-se em fuga. Na troca de tiros que se sucedeu, alguns dos companheiros do José foram abatidos. Mas foram precisamente esses homens que possibilitaram que a fuga tivesse êxito.

 

Mais uma vez, o José, que era avesso às armas e aos atos violentos, se viu metido numa guerra de guerrilhas.

 

189 – E lá foi o José, mais uma...

 

(continua)

 

 

23
Jan14

O Homem Sem Memória - 187


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

187 – Quando o José entregou a peça de caça ao camarada Punhal pensou seriamente em matá-lo pois se o fizesse o poder comunista podia soçobrar. Mas também considerou que o poder podia fortalecer-se e tornar-se ainda mais repressivo. Imitações de Alberto Punhal, para pior, havia-as no Comité Central aos pontapés. Então sorriu para o camarada Punhal e o camarada Punhal também sorriu para ele. Tinha muito tempo para pensar. Tempo e sol.

 

Podemos explicar que o José, apesar de saber que Alberto Punhal é que era o verdadeiro instigador de todo o processo revolucionário, que o mesmo é dizer, de todo o aparelho repressivo comunista, não lhe tinha um ódio mortal. À sua maneira, Alberto Punhal era até uma pessoa sedutora. Sabia manter a distância como ninguém, mesmo parecendo que estava próximo, estava longe. E o contrário também era verdadeiro.

 

Mas o seu autêntico inimigo mortal era mesmo o camarada capataz. Foi ele que matou o seu amigo com um tiro na cabeça e depois o ofereceu aos cães para o devorarem. Quem assim procede é um autêntico assassino, um torcionário sanguinolento, uma hiena execrável.

 

Se existisse Deus, talvez a urgência de o matar não fosse tão premente. Nessa hipótese, o carrasco comunista iria bater com os costados no inferno eterno. Mas a ausência de um Deus juiz e punidor deixava tudo nas mãos dos homens.

 

Uma besta sanguinária daquelas apenas possuía o direito inalienável a morrer. Na ausência de uma justiça divina só subsiste a justiça dos seres humanos. Que não sendo muitas vezes justiça nenhuma é a única forma de punir quem prevarica. 

 

Pode-se dizer que a justiça que implica a morte da pessoa que transgride é radical. Mas para radical, radical e meio. E quem com ferros mata com ferros deve morrer. Além disso, a sentença foi decidida em reunião democrática com todos os elementos da resistência que tinham sido torturados e humilhados pelo camarada capataz. E foi unânime. Todos votaram na pena de morte.

 

Depois de decidida a sentença, os esforços foram todos canalizados para a elaboração de uma estratégia operacional que implicasse a morte do energúmeno e o seu total desaparecimento. Sem cadáver não havia prova física do delito.

 

O José dedicou-se de corpo e alma ao treino com a arma soviética que o camarada Punhal lhe tinha oferecido. O camarada capataz, a princípio ainda levantou algumas dúvidas sobre o assunto. Não lhe agradava mesmo nada ver um dissidente daqueles a fazer pontaria sobre quem lhe apetecesse. E foi isso que transmitiu aos seus camaradas da UCP. Todos concordaram com ele. Com a reação não se brinca. Mas quando a proibição de uso de arma por parte do José chegou aos ouvidos do camarada Punhal ele levou-se dos diabos e deu ordens expressas para que a arma lhe fosse de novo entregue e com plena autorização de a utilizar como muito bem lhe apetecesse. Argumentou que quem tem medo da reação deve comprar um cão. Ao camarada capataz apenas lhe sobrou a solução de enfiar a indignação no bolso. A partir desse dia, o José não mais se deslocou pela herdade sem ser na companhia da espingarda soviética. Acompanhou muitas vezes o camarada Punhal nas suas caçadas e teve-o muitas vezes na mira telescópica da sua arma. Mas nunca disparou.

 

Durante alguns meses, ele e os camaradas reacionários, que lhe eram próximos e fiéis, dedicaram-se ao estudo minucioso das deslocações do camarada capataz pela herdade. Estudaram-lhe os percursos e as rotinas. Elaboraram de seguida um plano que incluía o seu encontro com a morte. Ou melhor, fizeram com que a morte marcasse encontro com ele. Definiram o local e a hora. Puseram-se no lugar do destino. Ou melhor, colocaram lá o José, com a espingarda bem apontada.

 

Tudo aconteceu num dia de abate de árvores, junto de um monte onde o camarada capataz possuía um lamaçal vedado destinado à criação de mais de vinte taludos javalis. Era aí que ele se entretinha nos momentos em que não torturava, nem trabalhava.

 

Os porcos-bravos eram um mimo de carne. Redondos e ágeis, mexiam-se com uma ligeireza felina. E comiam de tudo. Muitas vezes o seu dono lançava-lhes uma galinha viva para por à prova a agilidade dos animais e punha-se a contar os segundos que o pobre galináceo aguentava vivo. Escusado será dizer que durava poucos. Muito poucos mesmo. Depois do sacrifício, punha-se a rir como um desalmado. Que era aquilo que verdadeiramente era. Também experimentou com coelhos e o resultado foi o mesmo. Os javalis pareciam lobos. Experimentou ainda com cordeiros, cães e até burros pequenos. Tudo o que entrava na cerca era devorado. Um dia resolveu por à prova a agilidade dos seus javalis introduzindo na cerca um gato. Naquele dia os javalis perderam por uma unha negra. Mas perderam. Desenlace que teve origem na desatenção do javali que se encontrava no sítio onde ficava a única saída para o felino. Safou-se o gato, mas o javali não. Nessa mesma noite foi morto e dado a comer aos outros seus companheiros de curral. 

 

O José e muitos dos seus companheiros assistiram a alguns destes inúteis rituais de cretinice. E não foi em vão, como mais adiante veremos.

 

Mas recuemos um pouco até ao momento da espera do José. Então lá está o nosso amigo estendido no chão com a arma apontada a uma curva do caminho. As motosserras cortam as árvores fazendo um barulho ensurdecedor. O camarada capataz desloca-se na direção dos trabalhadores. Mal o veem aproximar, aumentam a intensidade do trabalho, do qual resulta o aumento do barulho. Depois observam-no a cair ao chão como se fosse uma árvore derrubada. Quatro trabalhadores deslocam-se na sua direção, pegam nele e levam-no para um lugar escondido. Nunca mais ninguém o viu.

 

O seu desaparecimento foi muito comentado e alvo de muitas especulações. Houve sessões de tortura por parte dos seus apaniguados para tentarem averiguar se alguns dos suspeitos do costume sabia alguma coisa. Mas ninguém deu com a língua nos dentes. Como o cadáver não apareceu, deram por encerrado o caso. As chefias foram mudadas. Nesse dia houve festa na UCP. Os convivas foram brindados com a carne dos javalis do camarada capataz. Apenas meia dúzia de prisioneiros, incluído o José, evitou comer carne assada no espeto.

 

Entre eles tiveram a seguinte conversa: “Os javalis estavam tão bem treinados que nem os ossos restaram”, disse um. Outro comentou: “Apenas sobrou o coração. Os recos não conseguiram meter-lhe o dente. Era duro como cornos. E o José rematou: “Admiro-me como tinha coração.”

 

188 – Os tempos que decorreram foram de ...

 

(Continua)

 

 

16
Jan14

O Homem Sem Memória - 186


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

186- Com a difusão do panfleto, a raiva e a revoltam cresceram. O José transformou-se num dos mais revolucionários anticomunistas de que há memória no país. E fazia-o com calma e descontração, muito ao modo dos alentejanos.

 

Entretanto, a UCP passou a ser a principal tapada de caça dos camaradas dirigentes. Os políticos, vá-se lá saber porquê, gostam muito de caçar. Sentem-se bem de arma na mão a disparar sobre bichos assustados. Isso dá-lhes prazer. E também gostam de exibir os seus troféus de caça.

 

Curioso é que cada um dos camaradas dirigentes caçava de acordo com a sua posição na estrutura partidária. Parecia milagre, mas cada um abatia caça conforme a sua posição na hierarquia. Os membros indistintos do Comité Central nunca conseguiam caçar mais ou sequer o mesmo número de peças de caça do que, por exemplo, um membro do secretariado ou da comissão política. Tudo ali estava devidamente controlado. Muitos animais vinham expressamente de outros lados do país para satisfazer os caprichos predadores dos chefes comunistas.

 

O quartel-general, se assim podemos dizer, situava-se numa casa isolada que serviu também de pouso e ponto de apoio ao antigo presidente da República Américo Tomás e até ao rei D. Carlos, quando iam para o Alentejo caçar perdizes, coelhos e javalis. Os símbolos e os vícios do poder são eternos.

 

O José, por muito porfiar e também por muito ver, ouvir e calar, conseguiu que o nomeassem coordenador do campo de caça. E ele levou a nomeação a peito. Conseguiu em pouco tempo organizar uma coutada que era o orgulho do Partido e, sobretudo, do camarada capataz. A opinião sobre a UCP passou a ser tão favorável que o dirigente da UCP já se via como membro do Comité Central ou mesmo ministro da Agricultura. O José passou de inimigo encoberto a amigo declarado.

 

A produção agrícola de cereais podia ser medíocre mas a caça proliferava a olhos vistos. Os fins-de-semana na herdade do camarada capataz passaram a ser cobiçados e até motivo de disputas e invejas. Um convite do camarada Alberto Punhal para o acompanharem na caça era sinónimo de apreço e de futura promoção partidária e social. Era também na UCP onde o Partido recebia os camaradas dirigentes estrangeiros de visita ao país. Aquilo tornou-se viciante. Os camaradas dirigentes, cansados das tarefas partidárias e políticas, tudo faziam para receberem um convite do camarada secretário-geral. Os candidatos eram muitos, mas os eleitos eram poucos.

 

Está claro que o José se tornou íntimo de muitos dos comunistas mais importantes da República Popular do Sul. Ele era afável, modesto e extremamente eficiente. Conseguia até programar o número de peças de caça que cada um imaginava caçar e mesmo os seus animais preferidos. Dava-lhes indicações sobre onde ir, que montes escolher, as armas que deviam escolher, os cartuchos mais apropriados, as rotas mais agradáveis e os sítios onde podiam encontrar-se com Alberto Punhal sem serem anunciados. De uma coisa sabiam todos os que paravam na herdade, era expressamente proibido falar de política durante as caçadas. Ali ou se estava calado, ou se falava do tempo ou da caça.

 

O camarada Alberto Punhal gostava de caçar um pouco de tudo. E até possuía boa pontaria e uma eficaz rapidez no manuseio da arma. O que tinha aprendido na Guerra Civil de Espanha ainda lhe era útil. Mas a sua caça predileta era ao javali. Dizia, com um sorriso nos lábios, que os javalis se assemelhavam muito aos reacionários, na sua força bruta, no seu primarismo e na sua mais absoluta insensibilidade. Comiam de tudo, chafurdavam na terra e tinham especial apetência por se banharem na lama. O seu focinho trazia-lhe sempre à memória os rostos adiposos dos burgueses com os seus dentes afiados como facas sempre prontos a alimentaram-se da carne e do sangue dos proletários.

 

Comentava com os seus convidados que matar aves e roedores era uma forma de arte rápida e instintiva. Já matar javalis era telúrico. Fazia-o sentir-se como os homens primitivos em busca do sustento para a família. Matar caça pequena era um ato individual, quase burguês. Já matar javalis era um ato comunista, pois exigia organização, trabalho coletivo, coragem e decisão no momento do disparo. Um javali ferido é um animal perigosíssimo. Até nesse aspeto é parecido com os burgueses e os capitalistas, pois quando estão feridos e desesperados tornam-se extremamente perigosos.

 

“Quando abato um javali é como se tivesse aniquilado um fascista. Aprecio matar javalis, mas não os consigo comer. Agonio-me só de sentir o cheiro da sua carne a cozinhar. No entanto, apesar de matar perdizes e coelhos com uma certa indiferença, aprecio comer a sua carne”, verbalizou o camarada Punhal.

 

O José acompanhava sempre o camarada secretário-geral nas suas jornadas de caça. Era o seu melhor confidente. Ouvia e calava. Um dia Alberto Punhal perguntou-lhe se era mudo. Ele respondeu que era apenas educado. Punhal riu-se e entregou-lhe uma arma novinha em folha de fabrico soviético. O José agradeceu mas disse que não apreciava disparar sobre animais indefesos. Punhal disse-lhe que então atirasse às árvores. E, já que era educado, que ficasse com a arma. Ninguém, e muito menos um comunista da envergadura de Alberto Punhal, gosta de ser criticado por ter o vício burguês da caça. José, vendo-se mais uma vez traído pela sinceridade, deu de repente volta ao texto e argumentou com a realidade. “Bem, camarada Punhal, a verdade é que estou determinantemente proibido de tocar em armas, especialmente de caça.” “E quem te proibiu?” “O camarada capataz.” “E porquê?” “Pois porque sou um preso político.” “De direita ou de esquerda.” “Sou um antigo militante do Norte condenado a uma pena de reeducação.” “Ainda és comunista?” “Gostaria de ser mas está visto que não consigo.” “Tu és esperto. Mas neste mundo ou se caça ou se é caçado.”

 

 

O camarada Alberto Punhal acabou com a conversa no preciso momento em que uma perdiz apareceu no radar dos seus olhos. Foi tiro e queda. O José, para desviar as atenções, correu no encalço da ave, conseguindo mesmo chegar primeiro do que o cão perdigueiro.

 

187 – Quando o José entregou a peça de caça ao camarada Punhal pensou seriamente...

 

(continua)

 

 

09
Jan14

O Homem Sem Memória - 185


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

185 – O golpe final na fé comunista do José aconteceu quando leu o discurso de Nikita Khrushchev feito no XX Congresso do Partido Comunista, depois de pedir a todos os convidados estrangeiros que abandonassem a sala. Perante 1400 congressistas atónitos, o poderoso secretário-geral do PCUS discursou durante quatro horas e descreveu com pormenor os terríveis crimes de José Estaline, o homem que foi adorado por milhões de comunistas do mundo inteiro. Talvez ainda mais que Lenine e Marx.

 

Foi perto da meia-noite do dia 23 de janeiro de 1956 que Khrushchev acusou Estaline do massacre de milhões de pessoas. Constou que depois do discurso, muitos dos delegados choraram como crianças, outros puxaram os cabelos e outros ainda desmaiaram ou tiveram ataques cardíacos. Dois suicidaram-se após aquela noite. Mas nem uma única palavra foi publicada pelos meios de comunicação soviéticos. Alguns excertos do discurso foram lidos em sessões fechadas para os corpos máximos do Partido. Muito poucos comunistas estrangeiros tiveram acesso a essa informação. Alberto Punhal foi um deles. E nem pestanejou aquando da leitura do documento. Dele nada contou aos seus camaradas. Guardou-o num cofre-forte em parte incerta. Mas mãos milagrosas, passados 24 anos, descobriram-no e fotocopiaram-no. Para os comunistas, e para a maioria dos cidadãos em geral, o relatório continuou a ser escondido. Muitos, dos poucos que o leram, continuavam convictos de que o que lá estava escrito era tudo, ou quase tudo, mentira. O que diziam uns aos outros para se convencerem era que Khrushchev não passava de um demente mentiroso e fraco.

 

Quando as dezenas de folhas com os excertos mais importantes do discurso chegaram às trémulas mãos do José, ele tratou logo de as guardar em lugar seguro. Com paciência e determinação fez a respetiva leitura e os inevitáveis cálculos. A seguir elaborou um pequeno documento com a intenção de o distribuir através das células clandestinas do campo. O problema era que tanto ele como a meia dúzia dos seus camaradas contrarrevolucionários não atinavam com a forma de o imprimirem para posterior distribuição. Primeiro pensaram na forma de arranjarem papel ou algo pelo estilo. Conformaram-se em acondicionar e secar folhas de cana ou outras idênticas. Mas faltava-lhes a prensa e as letras para organizarem um texto que fosse possível de imprimir e também a tinta.

 

A tinta fabricaram-na utilizando suco de frutos silvestres. Mas continuava a faltar a prensa e o tabuleiro com os carateres gráficos. Depois de muito pensar, o José descobriu uma forma. A solução encontrou-a na cortiça. Desenhou as palavras em placas e depois, com a ajuda de uma navalha bem afiada, esculpiu-as em relevo para serem embebidas em tinta consistente e posteriormente, através de uma prensa de pedra, as imprimir em folhas de plantas. Toda aquela tarefa demorou o tempo que tinha de demorar. Num campo de prisioneiros o que mais sobra é tempo.

 

Foram impressos e distribuídos cerca de quinhentos prospetos. As pessoas que liam os textos, ou que os ouviam ler, pois a maioria era analfabeta, também se recusavam a acreditar em números tão cruéis.

 

A primeira leitura realizada em grupo levou aquela meia dúzia de ex-comunistas desiludidos às lágrimas. Podiam já não ser comunistas, mas muitos deles ainda se sentiam de esquerda e até revolucionários. Consideravam que era possível a utopia do comunismo, mas de um comunismo com rosto humano. Não sabendo que todo o comunismo leva sempre à ditadura e à barbárie. Por isso é que eram considerados pelo Partido uns insensatos e uns contrarrevolucionários perigosos.

 

O texto rezava assim: “Em 1956, Khrushchev revelou que Estaline, durante os seus anos de poder, cometeu crimes monstruosos e ordenou o assassínio de milhões de pessoas. Lembrou ainda que Lenine avisou o Partido para que tivesse cuidado com Estaline. Nessa altura Khrushchev condenou o culto da personalidade do homem que foi apelidado de “o Sol das Nações”. Revelou a deslocação forçada de grupos étnicos na União Soviética, que conduziu a milhões de mortes. Nas grandes purgas (1936-1937), um milhão e meio de comunistas foram presos e 680 mil executados. Por altura do XVII Congresso do Partido, 848 foram executados a mando de Estaline, assim como 98 dos 138 candidatos ao Comité Central. Ou seja, Khrushchev revelou Estaline como um assassino de massas, responsável pelo massacre de milhões de russos e pessoas de outras nacionalidades, muitas das quais comunistas leais. Afinal o Messias comunista não passou de um monstro sanguinário.

 

Mas o pior de tudo é que o camarada Alberto Punhal sempre soube disso e escondeu-o dos seus camaradas e do seu povo. Ou seja, mentiu-nos. Sim, mentiu-nos, porque quem esconde a verdade aos seus camaradas e ao seu povo, mente. E, como diz o povo, mentiroso que mente uma vez mente mais uma dúzia ou três. 

 

Alberto Punhal, sempre apoiou de forma inequívoca a ditadura totalitária na URSS e nos restantes países do Leste signatários do Pacto de Varsóvia que provocou a morte de mais de 21 milhões de pessoas.

 

Eles pretendem que nós esqueçamos ou que sejamos coniventes com esta hedionda mentira, mas o comunismo e o nazismo são duas faces da mesma moeda: o totalitarismo, onde cada indivíduo é subjugado à vontade do Estado. 

 

Mas não pensem que isto aconteceu apenas na URSS. Aconteceu, e acontece, em maior ou menor escala, em todos os países comunistas. Inclusive no nosso. Disso todos vamos sendo testemunhas. A morte aqui nos campos é seletiva, mas não deixa de ser extinção de uma parte do nosso povo. Está na hora de esse mesmo povo se revoltar contra os tiranos que em nome da liberdade e da igualdade mais não fazem do que aprisionar e aniquilar os seus melhores filhos. Agora todos sabemos que o comunismo é uma doença incurável.

 

O esqueleto do camarada John Cleese que ao sol expõe a sua brancura acusatória, ali no meio da planície, diz-nos que os tiranos são todos iguais.

 

E povo que não tem memória nega o seu futuro para sempre.”

 

186- Com a difusão do panfleto, a raiva e a revoltam cresceram. O José ...

 

(continua)

 

 

02
Jan14

O Homem Sem Memória - 184


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

184 – O José estava sentado num banco à sombra de uma parede alva como a cal quando viu chegar a brigada de perseguidores. Além de suados, vinham todos perplexos, montadas incluídas. Apenas os cães e o camarada capataz denotavam uma satisfação acrescida. O José nem se mexeu. Fez-se de mexicano a dormir a sesta. Quando a ocasião se proporcionou, perguntou a quem sabia pelo paradeiro do seu amigo. “Será que escapou?”, questionou curioso conjeturando algum milagre. “Do inferno ninguém escapa”, responderam-lhe. Ele voltou a perguntar pelo amigo. A trupe limitou-se a apontar na direção dos cães. Como ninguém dizia nada de esclarecedor, um camarada menos camarada, resolveu contar-lhe a verdade nua e crua. Ele recusou-se a acreditar.

 

Nessa mesma noite, o José resolveu vingar a morte do contador de anedotas. Mas com paciência e método. Decidiu combater os comunistas com as suas próprias armas: organizando células clandestinas e espalhando a incerteza, a dúvida, a desconfiança e a desobediência.

 

Fez-se amigo de vários dirigentes e transformou-se num prisioneiro exemplar. Obedecia a todas as ordens e não contestava nada nem ninguém. Devido à sua conduta exemplar, resolveram conceder-lhe mais liberdade. E ele aproveitou-a. Ia de monte em monte fazendo amizades e tentando desenvolver cumplicidades.

 

Saía de manhazinha e caminhava enquanto o sol não apertava. Por volta das dez matava o bicho com pão e algum conduto que conseguia desenrascar entre a malta conhecida. Depois punha-se a olhar para o horizonte até se perder no infinito. Desesperado com a monotonia das vistas, adormecia. E sonhava. Sonhar era a forma de se manter mentalmente são.

 

Sonhava com a família, com a infância, com o verde dos montes, com os amigos. Sonhava com a sua terra. Quando acordava punha-se a gritar muito alto canções que tinha aprendido na infância. Quando chegava a algum monte habitado disponibilizava-se a ajudar no que quer que fosse. Transformou-se num bom trabalhador agrícola. Aprendeu a viver com as dificuldades do dia-a-dia, com a pobreza, com a indiferença, com a solidão. Amigos verdadeiros deixou de ter, por vontade própria. A sua inseparável amizade passou a ser a sua sombra. Afinal, o José dava azar a quem com ele convivia. Limitava-se a ter conhecidos, que respeitava. Mas nada mais do que isso. Contava histórias às crianças e entretinha-se a ensinar alguns adultos a ler e a escrever. Nunca falava de política, nem de religião e muito menos de futebol. Quando alguém lhe perguntava algo sobre a situação política do país respondia que nada sabia e que pouco lhe importava. Além disso ele era do Norte. E no Norte as coisas são diferentes. “Para pior?”, perguntavam-lhe a rir. Ao que ele respondia que apenas eram diferentes. “E diferentes, como?”, insistiam. O José mudava então de conversa. Falava do tempo e da natureza. Entretanto ia tirando algumas informações sobre o camarada capataz.

 

Contaram-lhe que era um homem que se tinha feito a si próprio, de origem humilde. Não se lhe conheciam amigos do peito. Tinha sido um jovem solitário que cedo se inscreveu no Partido. Era carreirista, ou, melhor dizendo, um homem de partido. Não discutia ordens nem admitia que as discutissem. Ascendeu rápido na hierarquia, o que não é de admirar. Ainda no tempo do fascismo ficou ligado ao assassinato de uma patrulha de dois soldados da GNR que tinham ido em serviço inspecionar uma greve numa herdade de um latifundiário. Perseguido pelos militares, e pela polícia política, o Partido resolveu enviá-lo para Moscovo. Foi na pátria de Lenine que decorou toda a parafernália de textos sobre a reforma agrária nos países socialistas. Visitou várias herdades coletivas e familiarizou-se com a retórica marxista-leninista. Não entendia nada de agricultura e muito menos percebia o que quer que fosse do conteúdo da ideologia que tinha jurado abraçar, mas era um ás na repetição das palavras dos camaradas do Comité Central que vinham plasmadas no jornal do partido. Com a queda do Estado Novo, voltou ao seu querido Alentejo e encabeçou todas as lutas que pode contra os latifundiários e os seus lacaios. A muitos deles derreou-os de porrada, ele mais as suas brigadas revolucionárias. Não olhava a meios para atingir os fins. Nisso era um leninista genuíno. Com a conquista do poder pelo Partido, manobrou as estruturas dirigentes para o nomearem diretor da primeira Unidade Coletiva de Produção da Reforma Agrária. Mas não tardou que muitos dos camaradas começassem a contestar os seus processos autoritários. Conseguiu saneá-los a todos, sem exceção. Ele mal comia, visitava a família muito de vez em quando e à mulher e aos filhos tratava-os com a mesma autoridade que os demais, como militantes de base do Partido. Muitos dos que lhe fizeram frente foram encontrados mortos nas encruzilhadas dos caminhos. Espalhava aos quatro ventos que era tudo manobra da reação ou de uma seita de fanáticos religiosos. E com esse argumento perseguia ainda mais os já poucos reacionários que por ali existiam, se é que nessa altura sobravam alguns. Como a UCP era um primor de organização política, mas um desastre na produção agrícola e pecuária, resolveram, para bem do povo e da revolução, transformar a UCP num projeto piloto, conferindo-lhe o estatuto de uma Unidade de Produção Agrícola e Pecuária destinada a albergar e a reabilitar prisoneiros políticos, quer reacionários, quer dissidentes. Pois todos sabemos desde o tempo dos campos de concentração nazi que o trabalho dá liberdade, confere igualdade e irradia fraternidade.

 

Ele, como bom comunista, detestava ambos os tipos de prisioneiros, mas odiava ainda mais os dissidentes. Não conseguia conceber como é que depois de terem sido iluminados pela verdade revolucionária eram capazes de renegar a revolução, ou os camaradas dirigentes, ou as orientações partidárias, ou contestarem as verdades ideológicas criadas por Marx, Lenine, Estaline e Alberto Punhal.

 

As orientações do Partido tinham sido explícitas: Os prisioneiros políticos apenas podem sair da UCP reabilitados ou mortos. E ele, como bom comunista, sabia que a reabilitação de um ex-comunista é pura e simplesmente, impossível. E os prisioneiros cada vez eram mais e piores. A dúvida num corpo comunista é uma doença epidémica e mortal. 

 

185 – O golpe final na fé comunista do José aconteceu quando ...

 

(continua)

 

 

26
Dez13

O Homem Sem Memória - 183


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

183 – A partir do momento em que os dois amigos se recompuseram, o sósia do John Cleese nunca mais contou uma anedota ou sequer falou. Dava dó vê-lo. Parecia um morto vivo. Ensimesmando, olhava para o infinito como se esse fosse o seu destino. Olhava para as pessoas como se fossem de vidro transparente e examinava o amigo como se ele habitasse um planeta diferente. O gulag alentejano estava a matá-lo inexoravelmente, tirando-lhe o fundamento de viver, sugando-lhe a vitalidade, apagando-lhe a memória e destruindo-lhe a razão de ser. O José bem que tentava animá-lo, distraí-lo, conversar com ele sobre tudo e sobre nada. Mas o sósia do John Cleese apenas sorria como se fosse idiota. Davam muitos passeios nos poucos momentos livres, o José falando e ele escutando como se fosse um gravador.

 

O sósia do John Cleese gostava de se deitar no meio do chão e contemplar o céu azul. E sorria sempre, como se fosse tolo de todo. De noite, mal adormecia, começava a gemer como se estivesse a ser torturado. Gemia e balbuciava. Tremia como se estivesse no meio da neve. O José cobria-o com o seu cobertor e fazia-lhe festas como se fosse uma criança carente. O José começou de novo a escrever, mas só o fazia na presença do amigo. Como se ele fosse a sua inspiração. E de certa maneira era-o. O sósia do John Cleese parecia-se agora com um Woody Allen mudo, protagonizando um filme dramático em que ninguém falava, como se fosse um filme onde apenas se ouviam os sons da natureza, como se os seres humanos tivessem perdido o dom da fala. Essa foi até uma das ideias que o José desenvolveu num dos seus contos. O comunismo tinha conseguido construir uma sociedade onde os seres humanos tinham deixado de falar pelo singelo facto de não existirem diferenças de opinião. Como todos pensavam da mesma maneira, falar era pura e simplesmente inútil.

 

O José lia-lhe os seus contos e o sósia do John Cleese limitava-se a escutar e a sorrir. Nesses dias, o seu amigo mudo dormia sem gemer, como se estivesse em paz.

 

Nos dias em que eram obrigados a assistir às sessões de esclarecimento feitas pelos ideólogos do Partido, o sósia do John Cleese sofria tanto durante o sono como se estivesse a sofrer choques elétricos contínuos.

 

O seu estado de apatia era tal que já nem se queria vestir, ou lavar, ou sequer comer. Mas o José, sabendo que se o apanhassem despido o castigavam severamente, nunca o deixava sair da camarata sem roupa. Por vezes, alguns dos capatazes, vendo-o tão absorto e apático, sovavam-no para o espevitar. Mas ele nem se mexia. Ali ficava a apanhar porrada como se fosse de borracha. Quando se cansavam, deixavam-no estendido no chão como se fosse um cão acabado de atropelar.

 

Uma noite, depois de ser severamente espancado, foi levado para a camarata inanimado. Passou toda a noite de olhos abertos como se fosse uma estátua. De madrugada levantou-se, vestiu-se, passou cerca de dez minutos a olhar para o José, como se ele fosse seu filho, acariciou-lhe as mãos, fez-lhe uma festa na cara, beijou-o na testa e saiu.

 

Quando se realizou a chamada da manhã, já o sósia do John Cleese ia longe, perdido no meio dos chaparros e do barro das planícies. Alertado, o camarada capataz decidiu realizar uma caça ao homem. Da UCP ninguém saía sem a sua autorização. Arrearam-se devidamente os cavalos, foram-se buscar os cães e empunharam-se as armas.

 

O camarada capataz liderou a busca ao homem. Do alto da sua cavalgadura olhava a campina em brasa através dos seus binóculos. Não se apressou nem um bocadinho. Sabia que a planície era inclemente e as fontes de água eram escassas. Além disso, o homem em fuga estava muito debilitado. Lia-se-lhe nos olhos que esta perseguição foi pensada para servir de exemplo aos outros prisioneiros.

 

Não foi preciso muito tempo para lhe darem com o rasto. Mas não se precipitaram na perseguição. Deixaram-no andar, andar, andar. E sofrer. O camarada capataz limitava-se a observá-lo de longe com os binóculos. Se via que se estavam a aproximar demasiado, ordenava que se parasse. Tinham que cansar a presa e deixá-la sofrer. Muitas vezes apontou a carabina com mira telescópica na direção do fugitivo e fez pontaria ao centro da sua cabeça. Mas no momento de premir o gatilho hesitava sempre. Considerava que era ainda cedo para abater a peça de caça. Ainda não tinha dito nada a nenhum dos vigilantes, mas a sua decisão já há muito que estava tomada. O fugitivo iria regressar à UCP morto para ser exibido como um troféu de caça, ou nem isso. Os reacionários, porque ideologicamente mancos, à semelhança dos cavalos, também se abatem. Especialmente os que gostam de contar anedotas para ridicularizarem a revolução, as suas conquistas e os seus dirigentes. Uma coisa, identicamente, o fugitivo tinha decidido, não se deixar apanhar vivo. A morte era melhor do que o cativeiro. E também sabia que o camarada capataz lhe tinha um ódio de morte. Sabia que se lhe desse um pretexto qualquer o líder da UCP o aniquilava com todo o prazer. Também fora por isso que tinha fugido. Decidira morrer. Por isso deixara de falar, especialmente com o seu querido amigo José. Tinha de cortar os laços que os ligavam. O José ainda era muito novo para morrer. Ainda podia ser reabilitado e ter uma longa vida à sua frente. Ele não. Ele já não acreditava em nada. Nem no socialismo, nem no comunismo, nem na liberdade, nem na igualdade, nem na fraternidade, nem na bondade humana, nem em Deus, nem no Demónio. E muito menos nos homens. Sobretudo não acreditava nos homens.

 

Adivinhando que estava ser observado pela mira telescópica da arma do camarada capataz, resolveu terminar com a farsa. Parou de repente, mesmo em cima de um penhasco, virou-se na direção dos seus perseguidores, sorriu e contou a sua última anedota a plenos pulmões: “A professora pergunta aos alunos: “Quem é a vossa mãe e quem é o vosso pai?” Responde um aluno: “A minha mãe é a República Popular do Sul e o meu pai é Alberto Punhal.” “Muito bem”, diz a professora. “E o que queres ser quando fores grande?” “Órfão.”

 

Mal acabou de pronunciar a última palavra, o camarada capataz pegou na sua carabina e depois de fazer pontaria pronunciou as seguintes palavras: “Esse foi o teu último desejo. A ti, reacionário, eu te condeno à morte por fuzilamento.” E disparou um tiro certeiro no meio da testa do fugitivo. Logo de seguida os vigilantes libertaram os cães que foram no encalço da presa abatida e começaram-na a devorar.

 

Alguns dos camaradas vigilantes benzeram-se como por instinto. O camarada capataz virou-lhes as costas e comentou: “Nunca mais vos libertais dessas crendices. De uma coisa podeis ficar cientes a partir de hoje: “Quem brinca com o Partido pode acabar na barriga dos cães, ou nem isso. Que vos sirva de exemplo.”

 

184 – O José estava ...

 

(continua)

 

 

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