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651 - Pérolas e Diamantes: Permutabilidade
Porque é que as pessoas devem dizer a verdade se é tão fácil mentir? Tudo é permutável. O sistema de pensamento funciona assim. Quem não ama a igualdade e a liberdade? Aqui todos falamos de ideias. Os jacobinos, por muito que os pintem de vermelho de fogo revolucionário, não são tão terríveis como as suas palavras. E por aí anda essa gente nervosa e na defensiva, atrás dos liderzecos de circunstância, militando nas estruturas secundárias, dos seus partidos secundários, engalfinhados em estéreis debates ideológicos e em combates internos onde a ambição anda sempre disfarçada de pureza de princípios, enquanto o rancor se vai acumulando numa insipiente vontade de mudança. O declínio da política, deste tipo de fazer política, é irreversível. Agora são néscios e pusilânimes. E à sua volta apenas veem paisagens ideológicas calcinadas, ideias em ruínas e esperanças destroçadas. Muitos continuam a organizar-se como unidades revolucionárias dentro dos próprios partidos revolucionários. Podem ter abandonado quase tudo, menos o seu espírito de seita. Era bom que o seu poder se projetasse nas ruínas. A arte revolucionária nunca acaba. A revolução é sempre um princípio. Será? E depois? Morreram as vacas e ficaram os bois. Mas a arte, aquela que vale de verdade, preocupa-se sempre com as confusas ligações entre política e realidade. Estes loucos da velocidade furiosa da revolução, apesar de terem aprendido que é apropriado dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, quiseram, e tudo fizeram, para sentar o próprio César no altar. Transformar homens em deuses dá sempre merda. Por isso é que transformaram os respetivos países em açougues. Também eles, por muito que digam o contrário, acreditam na Bíblia, pois as obras de referência do marxismo-leninismo estão cheias de pilares, flagelos, presságios e milagres. A fé, tanto para cristãos como para revolucionários, é sempre uma questão linguística. Alguns tentam aprender alguma coisa fora das partes armadilhadas, mas dizem-lhes, ou fazem-lhes sentir, que dessa forma põem a sua fé em risco, ou à prova. Mas é sol de pouca dura. Com mais algumas rezas e benzeduras, hinos, ou palavras de ordem, volta tudo à estaca zero. Uns confessam-se e os outros fazem autocrítica. Mas alguém tem o desejo de ver a diferença? Será que ela existe? Eu interesso-me, sobretudo, pelos antagonismos. O problema é que, nós ocidentais, mais do que anti-históricos somos a-históricos. E sobre todas as evidências históricas e científicas deitamos água na fervura. Ou melhor, nós gostamos de deitar água no vinho para o fazer crescer. Mas daí apenas resulta uma água-pé que nem para lavar as mãos serve. Que o diga Pilatos. Dois europeus, três opiniões. O mito do poder vive nessa gente como um direito concreto à prática da arbitrariedade e a toda a espécie de aventura moral. Para uns são os anjos e os santos que tocam alaúdes e para outros são os proletários que sopram trombetas, pois, bem vistas as coisas, se não nos pomos a pau, o dia do juízo final é já amanhã. O Politburo do Comité Central e a Cúria Romana são a cara e a coroa do mesmo poder, da mesma forma de poder não democrático. E por aqui andamos a sorrir de medo, assustados com estes dois tipos particulares de inferno. Dos impérios, desses impérios, resta o ridículo, a derrota e a humilhação. Essas catástrofes são agora uma espécie de luta no vácuo. E depois lá se juntam todos no Monte das Oliveiras a trair a fé, a esperança e a caridade e os pais e os amigos e a Revolução e até o Divino Espírito Santo. Uns a irem e outros a virem. A religião hoje é mais xaropes para a tosse, analgésicos e anti-inflamatórios para as articulações. E a revolução vive à base de injeções de penicilina para combater as infeções. A religião encarnada num jardineiro e a revolução encarnada num caçador. Uma a podar as silvas e as roseiras bravas e a outra a disparar sobre os melros e as aves pernaltas. São duas épocas históricas que se vão esgotando uma à outra. E que acabarão por se dissolver. Sempre absorvidas nas suas confusas violências e nas suas absurdas razões. A força e a glória. A glória e a força. Ave-maria. Avante camarada.
João Madureira