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Texto de Gil Santos
O TIO HORÁCIO
“O Outono quente traz o diabo no ventre”diz o povo e tem rezão! E este de 35 haveria, infelizmente, de fazer jus ao adágio. As colheitas eram fartas. Os cachos estavam reluzentes nas cepas. Os restolhos repletos de grão, esbanjado pelas espigas esturricadas pelo calor e agitadas pela ceifa. As leiras, de onde se arrancaram as batatas, tardavam em estar prontas para o tão desejado rebusco, o pão dos pobres, uma vez que não havia pinga de água que trouxesse à luz do dia, os tubérculos esquecidas no arranque. Os lameiros, cujo feno havia há pouco sido cortado, apresentavam-se tisnados como era normal no final do Verão. Os coelhos bravos que a Primavera criou, mostravam-se nutridos e luzidios. As perdizes, pastando o grão esbanjado no restolho, estavam roliças. A caça acabava de abrir e este ano augurava-se lucrativa.
O Ti António, robusto lavrador da Veiga e afamado caçador, era o chefe de uma vasta família que sentava à mesa para mais de dez pessoas todos os dias, contando com a criadagem. Casou com a cunhada Albertininha, que já no terceiro casamento, estava viúva de seu irmão. Do primeiro enlace, com Manuel, nasceram dois rapazes, o Alberto e o Balele e uma menina a Celeste. Manuel faleceu ainda novo quando, esticando uma corda que apertava um carro de feno, esta se partiu estatelando-o tragicamente contra um penedo. Com três crianças nos braços e uma lavoura forte, Albertina carecia de um homem em casa. Por isso amanhou-se novo casamento que pusesse os campos a produzir e a criadagem na linha Deste segundo enlace, agora com Zézinho, nasceram mais quatro rebentos, a Noémia a Perpétua, o Horácio e o Mário. Não durou muito este matrimónio. José seria atraiçoado por uma doença ruim, passados uns prestes seis anos. Zézinho tinha um mano viúvo, António, que rapidamente se mostrou disponível para guiar aquele barco descontrolado de seus sobrinhos e de sua cunhada. Casaram e deste contrato não houve descendência.
António gostava de caçar e tinha olho certeiro. Na altura possuía já uma caçadeira Browning de canos paralelos do melhor que se fabricava. Quando saia, acompanhado do Tirone e do Fiel, dois podengos de estalo, rara era a vez que regressava de mãos a abanar. Aproveitava, quase sempre os Sábados, para bater os restolhos da Veiga à busca de perdizes ou os giestais da encosta ao coelho bravo.
Assim foi naquele fatídico primeiro Sábado do mês de Outubro. Saiu de madrugada regressando ao fim da tarde com meia dúzia de nutridas aves à cinta. Pendurou desleixadamente a espingarda, ainda carregada, como muitas vezes fazia, numa espécie de bengaleiro tosco que repousava num canto da pequena saleta da entrada de sua casa.
António havia contratado, há pouco mais de dois meses, um novo criado, o Tibério, rapazote dos seus dezassete anos que vindo dos lados de Montalegre fugia à fome e à vara de marmeleiro de um pai tirano. Completamente atravessado, o Tibério, só fazia asneiras. A vida madrasta que o beijou desde o berço, não permitiu que a razão crescesse ao ritmo do corpo e então tudo o que fosse tropelia era com ele. Ao mesmo tempo que refinava o engenho da travessura crescia-lhe um gosto especial pelo sexo oposto, o que era natural não estivesse aquele corpo de final da puberdade a arrufar-se de desejo! Nesta senda, não lhe eram indiferentes os catorze anos da arisca patroa Noémia a quem desde que chegou arrastava a asa. Qual pavão no cio, armava-se de tudo o que podia para se fazer notado: assobiava as cantigas da moda, botava perfume Lavanda contrabandeado de Feces para ir à missa ao Domingo, brilhantina no cabelo e assim ajeitadinho galava Noémia com olhares fulminantes sempre que podia. Enfim,!... Apesar do esforço, a moçoila ignorava-o de todo. Ou porque não estaria ainda preparada para as coisas do amor ou porque de facto Tibério não tinha aquela química que lhe acendesse o castiçal do desejo!... A verdade é que não batia!
Era costume na casa de António toda a gente, não impedida por razões que se justificassem, assistir à missa domingueira do padre Rabaça, pelas oito, na igreja da Madalena. Assim aconteceu naquele fatídico dia de Outono. Foram todos à desobriga, ficando em casa apenas a Noémia para guardar o mano Horácio que o seu tenro ano e meio aconselhava a que ficasse e o Tibério para botar a cria ao monte e pensar os animais de capoeira.
As tarefas a que estava obrigado, foram cumpridas tão rapidamente quanto lhe foi possível com o cheiro na Noémia. Depois de tocar a junta de bois galegos e duas vitelas à Galgueira, ripou uma gabela de feno para uma vaca parida que não podia ir ao pasto, colheu meia dúzia de folhas de couve galega para os coelhos e botou um balde de milho às pitas. Lambeu-se no tanque do pátio, lavando o focinho e passando as mãos húmidas pelo cabelo pastoso. Mudou de roupa, botou um cibito do tal cheirinho e à falta de brilhantina embebeu as mãos num fio de azeite da almotolia e untou o cabelo para que luzisse. Que pimpão estava o farsola!.... À volta de um grande negrilho que havia no pátio, repousavam duas lajes de granito que faziam de manjedoura para os bois galegos nos dias de mais trabalho, o artista sentou-se sobre a pedra e puxando do realejo soprou a cantiga da moda:
Oh tempo volta para trás,
Traz-me tudo o que perdi,
Tem pena e dá-me a vida
A vida que eu já vivi…
Esperava que a melodia encantasse a rainha do seu coração e a trouxesse à janela. Bem puxava pelas notas na gaita de beiços, mas nada! Ela bem o escuitava e ele sabia-o, porém, usando da matreirice astuta da raposa, em que as raparigas são afinal mestras, simplesmente o ignorava e como o enervava esta indiferença!... Cansou-se!
Subiu as escaleiras que do pátio levavam ao alpendre da porta de entrada, penetrou na saleta onde no dito bangaleiro repousava o trabuco da caça. Noémia estava sentada num escano da cozinha amamentando o mano Horácio com o leite morno de uma chiba mungida pela manhã e que este puxava sôfrego de uma tetina de borracha metida no gargalo de uma garrafa de Sagres. Tibério, para a impressionar, teve a infeliz ideia de pegar na espingarda apontando-lha e ameaçando-a de morte se não lhe ligasse. Um movimento mais brusco e a falta de prática dispararam a arma sobre os infelizes.
Tibério, mais surpreendido que as próprias vítimas, fugiu em pânico para lugar incerto. Mesmo hoje não se saber aonde pára.
Noémia foi chumbada na coxa esquerda felizmente sem efeitos graves. O pequeno Horácio sofreu as mais graves consequências ao ser apanhado em cheio, um pouco abaixo do joelho da pernita direita. O tiro foi aí tão certeiro que a mesma teve de ser amputada no hospital da Misericórdia de Chaves pelo médico cirurgião. Horácio ficou manco para a vida toda.
Evidentemente que sem uma das pernas teve que se agarrar a uma muleta para sobreviver. E o sucesso da adaptação foi tal que Horácio disputava com o mesmo ardor dos escorreitos os jogos de futebol no terreiro da Lapa. Jogava a ponta esquerda e era quase sempre o melhor marcador da equipa. Por ser manquinho, nomeada pela qual era conhecido, foi o único dos irmãos a ter o privilégio dos estudos, uma vez que, segundo o seu pai, não seria muito capaz de governar a vida na terra. Assim e depois de completar a instrução primária, foi para a Escola Industrial e Comercial, que das Portas do Anjo se havia há pouco mudado para um edifício à Lapa, junto à capela onde anos mais tarde esteve a Escola do Magistério Primário. Aí se formou em Contabilidade, curso que finalizou pelos dezoito anos.
De andar sempre com a muleta e com o coto encostado permanentemente àquela por mor de se equilibrar, ficou a perna quase tolheita, com as dobradiças do joelho um pouco enferrujadas e com os movimentos normais do joelho naturalmente comprometidos. Este problema era sério, uma vez que poderia hipotecar a possibilidade de um dia poder usar uma prótese de cuja inovação já se falava.
Um belo dia de Primavera, quando regressava da escola, mais cedo por feriado do professor Cachapuz, desceu a Rua de Santo António e sentou-se, repimpado, num dos bancos de cimento do Jardim das Freiras aproveitando o soalheiro da Primavera. Ao lado dele alapou-se um homem velho, com ar de bruxo, que ao reparar no o coto imobilizado, assim falou:
─ Oh rapaz, tu vais ficar aleijado para a vida toda se não movimentas esse coto. Deixa ver!...
É claro que tão inusitada atitude provocou em Horácio uma desconfiança natural. Mas como já era aleijado e já, anuiu a que o homem examinasse o joelho bloqueado. O homem viu, reviu e contraviu, apalpou e desapalpou, então retirou do bolso uma caixa de folha que já tinha sido de graxa e esfregou vigorosamente o joelho. A esfrega provocava um ardor estranho mas perfeitamente suportável. Depois desta operação, ditou:
─ Amanhã, por esta hora, apareces aqui para continuarmos o tratamento.
No dia seguinte Horácio, entusiasmado pelos primeiros indício de melhoras, lá estava à hora marcada bem como nos cinco dias seguintes. Ao sexto dia o homem forçou um pouco e o joelho que à conta de uma dor forte conseguiu movimentar até ao seu lugar anatómico. Como isto não acontecia há longos anos, Horácio ficou feliz e seguiu as instruções daquele bom homem, forçando todos os dias e sempre que podia os movimento normais do joelho. E em boa hora, porque pelos dezoito anos, logo após concluir o curso, leu no Primeiro de Janeiro a notícia de que um ortopedista madrileno desenvolvia a técnica protésica para pernas amputadas. Entusiasmado levou a notícia ao pai que logo cuidou de que Horácio pudesse ir a Madrid pôr uma perna nova.
Tudo preparado, acertado o preço de vinte contos de réis, uma fortuna para a época, lá foi Horácio até Madrid para que o Doutor Gonzalez tratasse de tudo. Por lá ficou mês e meio para se adaptar àquela nova muleta, agora extensão perfeita da perna em falha. Essa adaptação foi dolorosa mas perante a sensação de ser como os outros e não ter a perna da calça direita oca do joelho para baixo, tudo suportou. A prótese, muito rudimentar e pesada, atava-se desconfortavelmente com umas correias à cinta e dobrava pelo joelho através de uma mecânica difícil de ferros e dobradiças que não oleadas provocavam uma chiadeira muito incómoda. Porém, tudo isso valia a pena pela perna nova.
Chegado a Chaves ninguém o reconhecia. De manquinho passou a homem com duas pernas e depressa corrigiu, com suor e lágrimas, o inevitável manquitar para um caminhar quase tão normal como quem tinha suas as duas pernas.
Arranjou um emprego compatível com o curso. Empregou-se de escriturário numa empresa produtora de batata de semente que explorava uma grande extensão de terra na Boalhosa, um planalto de Paredes de Coura no Alto Minho. De guarda-livros evoluiu para gestor pleno da empresa cujo patrão era das felpas do diabo. À cidade natal de Trajano, regressava sempre que podia. Montado numa Famel Zundapp fazia a viagem quase sempre de noite de Paredes de Coura a Arcos de Valdevez, daqui a Ponte da Barca, Ponte do Bico, Amares, Rio Caldo, Cerdeirinhas, Ruivães, Venda Nova, Pisões, Barracão, Sapiãos e Chaves.
Por ali esteve os anos que pôde, uns sete ou oito, mas logo que viu hipótese pirou-se. Por informação de um camionista que aí vinha carregar batata soube que lá para a Lourinhã uma empresa de tratamento de bagaço de uva precisava de um guarda-livros. Fez-se ao caminho e aí se empregou até à reforma.
Ora com o avanço tecnológico foi trocando a prótese por aparelhos cada vez mais modernos, leves e confortáveis. E foram muitas as peripécias que na sua vida resultaram deste facto e aqui se contam:
Os anos foram passando, os flavienses amigos e conhecidos foram-se dispersando pelo mundo e quando esporadicamente encontrava algum que não o reconhecia, brincava com a situação perguntando ele próprio pelo manquinho. Após longas conversas e quando aqueles se apercebiam da finta, já do manquinho muito se tinha falado, bem e mal e ele logo ali ao lado. Era um fado!
Na empresa onde trabalhava havia um funcionário que tendo ficado sem o braço esquerdo numa das máquinas de secagem de folhelho, usava também uma prótese no braço. De tempos em tempos as extensões dum e de outro tinham de ser mudadas e normalmente iam juntos a um ortopedista de Lisboa para o efeito. Um dia combinaram e lá foram num Sinca 1100 que por acaso precisava de mudar o óleo. À passagem por Torres Vedras passaram numa oficina para o efeito. O Sinca foi colocado no elevador e subido. O aparelho era um daqueles hidráulicos de barras paralelas que pesadamente encaixavam em duas reentrâncias no chão da oficina. Ora quando as ditas barras estavam quase a encaixar o Horácio meteu o pé direito na ranhura e o outro o braço esquerdo. É claro que pé de um e mão do outro, entaladas daquela forma provocaram um pânico enorme entre os funcionários, para gáudio dos malandrões que nada preocupados porque iam trocar as próteses, riam a bandeiras despregadas da aflição dos desgraçados.
Doutra vez, passando férias em Chaves, preparava-se para descer as escadas fronteiras ao Tribunal, escadas essas que, ao fim da tarde, estavam a ser limpas por duas senhoras funcionárias de limpeza. Um passo propositadamente mal medido provocou que o pé postiço partisse redondo pelo tornozelo. Não esteve com meias medidas, perante os gritos de aflição das pobre mulherzinhas, pegou calmamente no pé, devidamente calçado no respectivo sapato, meteu-o debaixo do braço e continuou como se nada fosse!...
Desde a Boalhosa que Horácio tinha carta de condução com a única restrição que obrigava a ter o respectivo automóvel devidamente adaptado à situação. A adaptação consistia na troca dos pedais. O pedal do acelerador trocava com o da embraiagem e em vez de estar do lado direito estava do esquerdo para o pé escorreito. Ora esta troca não permitia que qualquer condutor guiasse o seu automóvel. Um belo dia, quando ainda num período de férias guiava na estrada para Carrazedo de Montenegro, encontrou uma donzela com o carro imobilizado na beira da estrada que lhe pediu ajuda por não conseguir pôr o carro em movimento. Ele parou o seu Sinca atrás do avariado e tentou pô-lo em funcionamento, o que não estava a conseguir perante o gozo fininho de um camionista que entretanto tinha parado atraído pelo proveito que poderia tirar da situação. Horácio mediu-a logo! Fingindo-se nervoso e imputando a essa situação o falhanço, pediu ao camionista que lhe pusesse o seu Sinca na estrada em condições de prosseguir a viagem por estar muito nervoso e achar que não era capaz. Ora o artista para se armar perante a menina do carro avariado e aproveitando para despachar aquele potencial concorrente, não hesitou. Meteu-se no bólide deu ao dimarré e quando se preparava para arrancar pisando o acelerador como se da embraiagem se tratasse fez a figura de urso que o Horácio esperava!..
Saber tirar partido das situações de vida que à partida parecem desfavoráveis, é prova de grande inteligência e adaptação que faz do homem um ser de facto superior.
Pelo sucesso que teve na vida, apesar daquela fatalidade e das dificuldades inerentes, Horácio é ainda hoje a prova bem evidente daquele facto: um pai, merecedor de um eterno preito de homenagem, respeito e verdadeira admiração!
Um vencedor!