Discursos Sobre a Cidade - Porrório - de Gil Santos
.
porrório
O rio Tâmega, artéria aorta da cidade de Trajano, espraia-se pela Veiga como o manto da princesa pelo salão de baile do palácio. Deus brindou-a com esta bênção que começa a ser reconhecida e dela tirado o devido partido de serviço público. As margens do nosso rio estão irreconhecíveis e começa a dar gosto olhar o Tâmega. Tomaram muitas urbes ter a possibilidade de oferecer aos seus cidadãos uma tal beleza e ainda o descanso idílico dos seus limites.
Durante muitos e muitos anos apenas foi possível atravessar o Tâmega a vau - quando a seca o permitia, pelas velhinhas poldras - do Caneiro ao Tabolado, ou pela única ponte existente - a (bi)milenar Ponte Romana, baluarte da cidade. Já nos anos quarenta do séc. XX, no fulgor do Estado Novo, a jusante desta construiu-se a Ponte Nova que, inaugurada nos primeiros anos da década de cinquenta, aliviou finalmente os costados da Romana.
O Tâmega divide a cidade em duas: a alta, com o centro medieval, do lado do castelo e a baixa, mais erma e dada às cheias, com a Madalena e o Caneiro. O Caneiro, era praticamente uma rua única, que da ribeira de S. Lourenço conduzia, por entre viçosas hortas, por essa Veiga além. Aqui, junto às poldras, nasceu o herói da nossa estória o Porrório.
Com origem numa família de parcos recursos e com um rancho de filhos, como quase todas as famílias das aldeias e dos arrabaldes das cidades, Porrório cresceu aos emboleques da vida: descalço, com o monco no nariz, esfomeado, as calças rotas no cu e cheio de porrada e piolhos. Fez-se fino como azougue e o rio era o seu mundo. Ali pescava, lavava as catotas, cucava os ovos nos ninhos dos salgueiros, rapinava os passarinhos já vestidos para fritar e apanhava os melros que criava e ensinava a assobiar como ele bem sabia e depois vendia na feira. Quando podia, fanava uma ou outra postita de bacalhau do que as famílias, com mais posses, punham de molho no rio, ou um punhado de tremoços que as feirantes curtiam nas águas correntes e límpidas do Tâmega. Enfim, assim cresceu e se fez homem a pus de muito bofetão. Apesar de tudo, Deus fê-lo escorreito e respeitador e aos doze anos já mostrava bom lombo para trabalhar. O pai, não demorou a desaninhá-lo e a botá-lo a criado de servir.
Correu Seca e Meca, conheceu muitos amos mas não parou em nenhum para lá de meio ano. Depressa aprendeu o suficiente para se estabelecer por conta própria. Retornou à cidade, casou e instalou-se num pardieiro junto à casa onde nascera. A sua empresa tratava de angariar homens para, à jeira, trabalharem nos campos agrícolas da Veiga. Contratava conforme a encomenda dos patrões com quem ajustava as respectivas empreitadas. Portanto, quanto mais depressa os seus homens fizessem a ceifa, a malhada ou a arranque das batatas, mais o Porrório ganhava. Nesta fazenda construiu um pé-de-meia que, não o pondo milionário, contribuiu, ainda assim, para o afastar do trabalho aos sessenta anos, dedicando-se de novo aos deleites das margens do rio. E assim viveu uma vida justa até ser velhinho e falecer antes da Ponte Nova ser inaugurada.
Enquanto patrão, Porrório era pouco tolerante para os seus trabalhadores. Contava-se que certa vez, trazendo à sua conta para mais de trinta trabalhadores, que levavam uma embelga de outros tantos regos num arranque de canibeques, um dos homens lhe pediu autorização para ir ao giestal arriar calças. Porrório só a muito custo anuiu à pretensão. Porém, verificando que o trabalhador, naquele serviço, demorara mais tempo do que o que ele achava necessário, no regresso e antes que pegasse de novo na enxada de ganchos e dobrasse a espinha sobre o rego, mandou que o rancho parasse e escutasse a reprimenda. Assim se fez ouvir:
─ Oh Gaudêncio, um home p’ra cagar precisa pelo menos de meia hora! Mas não és tu, nem outros como tu, sou eu e outros como eu!...
Evidentemente que o pobre do Gaudêncio e todos os outros, perceberam que quem mandava, afinal, na sua tripa grossa era o Porrório!... Sorte madrasta que só a espaçada passagem da lingureta faria esquecer!...
Era já sexagenário quando decidiu deixar a vida do trabalho e dedicar o resto dos seus dias aos prazeres da infância: criar de novo melros, armar pescoceiras e dedicar-se à pesca. Dos tremoços e das liscas do bacalhau já não carecia. Agora, podia lerpar do que era seu e à tripa forra se assim desejasse. No entanto Porrório era avarento e só gastava mesmo o que tivesse de ser.Com a actividade da pesca não torrava senão uns míseros tustos em anzóis por ele próprio ser incapaz de os fabricar. A sediela fazia-a de crina de cavalo, a bóia da cortiça de rolha de garrafa, o chumbo de velhos caleiros dos telhados e a cana de bambu que apanhava e preparava devidamente. Quanto ao isco, a mioca para o barbo, apanhava-a, com facilidade, na terra húmida das hortas, o bicho do sebo para os outros ciprinídeos, fabricava-o de uma forma sui generis e que arrepiava os seus pobres vizinhos. Meteu-se-lhe na cabeça que a melhor larva da varejeira era a que criava o corpo de gato morto. Por isso, no tempo desta pesca, gato que lhe passasse a jeito levava com a moca e, morto, era pendurado pelo rabo num caibro do telheiro do seu quintal. No chão punha uma chapa de zinco para aparar a bicharada que ia caindo e que depois metia-a numa lata velha cheia de farelo misturado com serrim. Ora, como é bom de ver, o bicho morto exalava um cheiro nauseabundo que punha os vizinhos em polvorosa, mas isso pouco importava ao Porrório. O que era de veras importante é que do bicho brotassem as larvas roliças. Os vizinhos calar-se-iam com meia dúzia de escalos para a ceia! Mas Porrório não era grande espingarda a pescar. Se cada vez que fosse à azenha do Agapito trouxesse uma dezena de peixes já era muito bom. Quando o rio enlourasse ainda se safava, de resto!...
Ora um belo dia de Outono, após uma semana de intensas chuvadas, o rio ia mesmo jeitoso para o barbo. Porrório levantou-se cedo, veio à varanda, debruçou-se sobre o balaústre de madeira, cheirou o tempo como sempre fazia, mirou o rio e com o olhar experimentado decidiu ir pescar. Depois de preparar uma merenda e botar dois calistros de cachaça, entre quatro figos secos que lhe mataram o bicho, meteu-se a caminho para a tal azenha. Pousou-se sobre um penedo junto a um rimance que a corrente fazia jeitoso. Preparou tudo e começou a malhar neles! Bem puxava e voltava a puxar, bem mudava o isco cada vez que a bóia dava de si, mas de barbos nem sinal! Era já hora da merenda quando ferrou o primeiro, um bonito peixe, para cima de quilo e meio. O desgraçado do bicho, nas ânsias da morte, debatia-se heroicamente. Porrório, lutava como podia com a manha dos seus longos anos de experiência e contando ainda com a flexibilidade limitada da sua cana-da-índia. A tarefa mostrava-se difícil, quase impossível até, dada a corpulência e a ferocidade do barbo. E como ele sonhava no sucesso que faria, à noitinha, quando o exibisse na tasca do Malgudo!... Ele puxava para um lado, o peixe para outro e nesta luta invocava a sorte prometendo:
─ Oh alminhas uma coroa!... Oh alminhas uma coroa!... Oh alminhas uma coroa!...
Tanto lutou, tanto lutou, que a sediela, não resistindo, partiu-se permitindo que o peixe se pusesse ao fresco!...
O Porrório, muito zangado, continuou prometendo, agora de forma diferente:
─ Oh alminhas um caralho!...
Como já se disse, Porrório era muito poupado e sempre que metia na cachimónia que a mulher esbanjava, pintava a manta. Um dia, Marquinhas da Mó, sua esposa, madrugou para cozer o pão. Às seis da matina já suava batendo na masseira um alqueire e meio de farinha, que o moleiro entregou no dia anterior e que estava num canto da casa do forno num coleiro de serapilheira. Às oito a massa já levedava no estendal. Entrementes, acendeu o forno e cortou um cibo de carne da pá para fazer umas bôlas de carne. Depois de ranhar o forno com um lareiro de ferro, mirou a cor do tijolo burro e pareceu-lhe no ponto para meter o pão. Com a reza do costume, enfornou sete pães e duas bôlas. Passadas umas duas horas e quando se preparava para desenfornar, reparou que o pão não havia crescido como era costume, estando atarracado e com um aspecto pouco apetitoso. Cismava: Seria do fermento, do suor que da testa vertera sobre a massa? Fosse do que fosse, a vida não estava para modas e teria que se morfar mesmo assim. Arrumadas as boroas de centeio na galheira, a um canto da cozinha, quando servia a ceia ao Porrório, este, mesmo antes de se botar ao caldo de baldruegas, franziu o sobrolho, olhou de soslaio para um dos pães que esperava sobre a mesa, encostou-o ao peito e meteu-lhe a faca do Palaçoulo estranhando não a ouvir cantar como era costume. Pegou no encerto e reparou que tinha bezerra. Não esteve com meias medidas, em vez de pespegar uma boa trepa na mulher como à época era costume, correu para a sacada de madeira que dava para a rua e atirou aquele e todos os outros pães para o rio ao estilo do atleta olímpico que lança o disco. No meio deste tresloucado propósito gritava:
─ Porrório, o meu capital arde e não faz fumo. Aí vai laje!...
O pão batia na água com estrondo perante a admiração dos seus vizinhos. Ao menos que alimentasse os escalos que depois havia de os pescar, pensava ele!...
Na Primavera gostava muito de seguir Veiga fora, até Outeiro Jusão, onde ao lado do cemitério apanhava uma rodeira que o conduzia pela margem esquerda do rio à presa onde o Maneta tinha o seu moinho. Aí pescava luzidias bogas quando, na desovam, se esfregavam contra os seixos do fundo.
Como todos sabem Maio é o mês dos burros por ser o período do ano em que este, simpático, animal entra no período do cio, isto é anda à cria. Para que melhor se perceba o desenlace desta estória, discorramos brevemente sobre algumas curiosidades destes animais que se dizem em perigo de extinção.
O gado asinino, é constituído por animais fortes, inteligentes, de temperamento dócil e que falam zurrando. Estes animais têm, por vezes, comportamentos bizarros. São portadores de uma curiosa faculdade olfactiva secundária que é usada para testar certos odores e a que os doutos chamam “resposta de Flehmen”. Consiste em ficarem com o cachaço levantado, frequentemente virado para um dos lados, enquanto o beiço superior é arreganhado para cima o inferior para baixo. Os queixos ficam juntos, com os dentes da frente, cavilhas longas e amareladas, a descoberto. Exibem esta bizarra figura quando cheiram a urina ou as fezes uns dos outros, presumindo-se que tenha a ver com funções sociais relevantes, pois a urina deve conter informações relativas à receptividade da fêmea e à identidade e estatuto de cada um. Também se pensa que o comportamento de se espojarem rebolando o lombo na terra poeirenta e cobrindo-se com ela, para além das funções de remoção do pêlo e da eliminação das pulgas e carraças, sirva igualmente para o gozo de coçar as costas e, por ser feito em grupo, para conviver com os seus pares. Contudo, ainda mais curioso, é o seu comportamento sexual. A fêmea, contrariamente a bichos de outras espécies, exibe um comportamento sexual muito explícito. Quando anda à cria, mostra-se irrequieta, urina mais do que o normal, agita muito o rabo, fecha e abre a vulva frequentemente e masca quando lhe cheira a macho. Este comportamento de mascar, semelhante ao movimento exagerado de mastigação e no qual os beiços nunca se tocam, é interpretado como um comportamento de submissão. As orelhas posicionam-se deitadas de lado e o pescoço fica esticado horizontalmente. Ela solicita ser montada, colocando-se de costas em direcção ao macho e fazendo pequenos movimentos de saltos com os quadris. Este experimenta a receptividade da burra cheirando os seus genitais e descansando a cabeça nos seus quadris ou empurrando o peito contra a garupa da fêmea. Durante a cópula os machos frequentemente mordem o pescoço da amada, podendo feri-la com alguma gravidade. Por vezes é necessário ajudá-los a encaminhar o abonado pénis na direcção certa.
Pois bem, pelo caminho do cemitério de Outeiro Jusão seguia Gertrudes, numa manhã de um luminoso dia de Maio, em direcção à cidade, onde ia pagar a décima de uma leira que tinha às Quartas. Seguia montada, em pêlo, na sua burra Cacilda, um animal lustroso “com o trevo da mocidade eriçado”. Gertrudes vestia saia rodada, até aos pés e blusa de chita às flores, calçava socas pretas de verniz e na cabeça transia um lenço enorme que, se necessário, poderia até fazer de xaile, a burra albardada e com arreios de festa. Pela estrada nacional, oblíqua, seguia Jerónimo com o seu burro Zarabatana pela cabeçada.
Não demorou muito que, mesmo à distância, os animais sentissem no ar o silvo da seta de Cupido e ficassem, ambos, loucos de paixão. Zarabatana, não esteve com meias medidas, ensaiou um esticão da corda e soltou-se do amo. Investiu rodeira fora em direcção à Cacilda que já mascava largo! Gertrudes, adivinhando o que se iria passar, apeou-se o mais depressa que pôde. Zarabatana, investia louco como um trovão e armado com tudo o que lhe fazia falta. Espumava de desejo!...
Meu amigo, a burra pôs-se a jeito e o Zarabatana, em carreira desenfreada, fez menção de lhe saltar para a espinha. A pobre mulher em pânico, querendo salvar a burrinha daquele alma do diabo, não tem mais nada, quando o burro apontava ao alvo já montado nos quartos da burrita, rapou do lenço da cabeça e tapou a senisga da burrinha. O diacho do Zarabatana que entretanto já tinha a primeira engrenada, não pôde deter o desejo louco de a possuir, e fê-la engolir lenço e tudo!...
Quando o serviço estava acabado e os burrinhos alegres e satisfeitos, da contenda amorosa sobrava apenas uma pequena ponta do lenço pendurada, tristemente, antre as pernas traseiras da fêmea. Gertrudes não pensou duas vezes, puxou pelo lenço que, como se imagina, saiu numa lástima! Mas que importava se isso tivesse prevenido aquela gravidez indesejada?...
A burra não engravidou. Se foi do lenço, da aflição da dona ou da incapacidade fisiológica dos animais não sei. Creio é que a Getrudes, noutro tempo, teria o exclusivo da invenção do preservativo para a raça asinina!...
Porrório observou, pasmado, este espectáculo do cimo de um talude do caminho que o conduzia ao rio.
É claro que tão raro e inusitado acontecimento foi, durante largos anos e entre risadas e copos de maduro tinto, motivo de conversa na taberna do Malgudo.
E não era para menos…Arre burro!...
Gil Santos