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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

28
Ago09

Discursos Sobre a Cidade - O 101 de Fafião, por Gil Santos


 

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O 101 de Fafião

Fernando Calvão, militar de carreira hoje reformado, é pai da mulher que amo há duas dezenas de anos. Às refeições domingueiras, mais demoradas, gosta de contar algumas das histórias mais significativas da sua larga experiência pelos quatro cantos do mundo. No início da sua carreira, anos cinquenta, o furriel Calvão cruzou-se nos Caçadores de Chaves com o cabo Santos, meu falecido pai, que cumpria o seu serviço militar obrigatório. Ao cabo Santos cabia a tarefa de quarteleiro, ao furriel a função de acompanhamento da instrução dos recrutas.

Na altura, era excepção saber ler e escrever. Os analfabetos tinham oportunidade de aprender as primeiras letras na chamada Escola Regimental, entregue, neste quartel, ao alferes Ceroulas. Tendo este que se ausentar por uns tempos, foi o furriel incumbido de dar continuação às suas lições. Eram públicas as dificuldades do soldado 101 para aprender a juntar as letras. O alferes vivia angustiado! O furriel, aproveitando a oportunidade, quis surpreender o oficial com o 101 a ler no seu regresso. A estratégia era simples: utilizando a Cartilha Maternal João de Deus, explicava ao soldado que deveria primeiro olhar para a figura e só depois para a respectiva palavra. Ensaiou-o, ensaiou-o e tudo parecia aprumado. O alferes regressou. O furriel Calvão acorreu a dar-lhe a novidade:

— Meu alferes, o 101 já sabe ler!

— Não me diga Calvão! Como é que você conseguiu? Chame-o lá.

E lá veio o 101 todo pimpão. Abriu-se o livro e vai de ler. O furriel apontou para a tigela e o 101 leu maurga; apontou para o pato e o 101 leu parreco; apontou para a caixa e o 101 leu caixote. O alferes não aguentou mais. Agarrou-se à barriga e rindo a bandeiras despregadas só parou no empedrado da parada.

Doutra vez, o Furriel ministrava instrução de armamento ao pelotão do 101 que se encontrava no terreiro à sua volta. Explicava o funcionamento de uma metralhadora ligeira, cuja manga se apresentava cheia de furos laterais para arrefecimento do respectivo cano. O Furriel explicava a comutação entre o tiro-a-tiro e o tiro de rajada dizendo:

— Quando se quer que a arma dispare um tiro de cada vez, põe-se o comutador nesta posição, quando se pretende que dispare muitos de cada vez, põe-se na outra posição. — Depois continuou, agora brincando:

— Mas cuidado, porque se eu puser agora o comutador na posição de rajada e disparar, as balas saem todas por estes buracos laterais e vocês morrem todos. O 101, pasmado e, mais do que isso, assustado, gritou:

— Ai rapazes fuginde que o Furriel é maluco e fode-nos a todos!

No início dos anos cinquenta o Estado Novo estava na pujança e a palavra de ordem era amealhar. A poupança era quase uma religião! Nesta senda, o equipamento distribuído aos soldados era rigorosamente controlado em termos de duração. Um dos maiores problemas era fazer com que as botas durassem mais de um ano a cada militar. O nosso herói morava em Fafião, aldeia alcandorada nos picos da serra do Gerês e a uma centena de quilómetros de Chaves. Como na altura não havia transportes e o dinheiro não abundava, o 101 saía para fim-de-semana na Sexta-feira, a pé, chegava à aldeia à noitinha de Sábado, bebia um copito na volta ao lugar e regressava nessa mesma noite à cidade de Chaves. Porém, as botas é que pagavam a factura de tal distância, daí que o comandante decretasse que todos os que morassem a mais de cinco léguas da cidade estavam proibidos de gozar o fim-de-semana. Foi um desconsolo para o 101, que doravante ficou a conhecer melhor os cantos à cidade.

E muitas e muitas outras histórias curiosas eram contadas. E como eu gostava de as ouvir!

 

Como amante da pesca desportiva à truta e como trabalhei e morei, na segunda metade dos anos oitenta, na actual Vila do Gerês, ia muitas vezes pescar para o rio de Fafião, também conhecido por Tôco. Um dia de Abril encontrava-me sobre a Ponte da Pigarreira, na altura ainda de pranchas de madeira maciça, cogitando sobre o que faria as trutas estarem de férias naquele dia. Do monte sobranceiro descia um rebanho de cabras e o respectivo pastor de regresso a casa. Ávido de conversa com gente, por passar os dias a conversar com o gado, o pastor parou ao pé de mim. Dei-lhe corda, porque também eu queria conhecer melhor a zona e os seus hábitos. Depois de vários minutos de conversa de circunstância, lá veio a inevitável pergunta:

Antão vocemecê de onde é?

— Sou de muito longe, uma terra que certamente não conhece. Sou de Chaves.

Notei um brilhozinho estranho nos olhos daquele homem simples.

— Não me diga! Eu fiz lá tropa em 1952. — Dizia o pastor.

— Então conheceu o cabo Santos? E o furriel Calvão?

Antão num conheci! o cabo Santos era muito meu amigo, matou-me a fome muitas vezes e o furriel Calvão enxinou-me a ler!

— Então diga-me lá quem é, para ver se o meu pai ou o meu sogro se lembram de si.

— Eu era conhecido pelo 101de Fafião!...

Caí das nuvens!...

Então não acabava de conhecer o herói de tantas histórias?!

A vida sempre nos reserva cada uma!

Gil Santos

In Ecos do Planalto – estórias (adaptado)

 

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