Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
41 – O mesmo discurso que serviu ao senhor presidente da Câmara para enaltecer os mancebos de Montalegre que foram mobilizados para defender Angola, que era nossa, serviu para fazer o elogio fúnebre do Mário.
Enquanto o autarca repetia as palavras de há um ano atrás, agora perante uma assembleia de chorões, os rapazes da primária mascavam chicletes com uma raiva triste. O caixão lá estava bem selado, não fosse dar-se o caso de o Mário tentar surpreender alguém. Os seus pais choravam convulsivamente e as suas irmãs já nem isso conseguiam fazer devido à exaustão. A namorada enfraqueceu de tal forma que nem a deixaram ir ao enterro. O Carlos Torlim chorava também mas hirto como o tronco seco de um carvalho. As lágrimas corriam-lhe tão frias e decididas pelo rosto como se ele fosse não de carne mas de pedra lascada.
O Padre Zé escutava o panegírico do senhor presidente com uma serenidade que foi admirada por todos. Parecia um deus conformado com a desdita dos homens. Para ele tudo aquilo fazia sentido, a juventude e a velhice, a guerra e a pátria, o cristianismo e o ateísmo, Deus e o Demónio, Salazar e Marcelo Caetano, Fátima e o Papa, a vida e a morte. E as lágrimas também faziam todo o sentido. As lágrimas eram, na sua perspectiva, a manifestação física da alma. Daí a frequência das lágrimas e do sofrimento em toda a liturgia cristã. Daí o símbolo dos cristão ser a cruz que é sofrimento, que é redenção, que são lágrimas. Cristo chorou quando o seu Pai lhe deu o cálice a beber. E disse: “Meu Pai, se possível, afaste de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, mas sim como tu queres” (Mateus 26:39). E qualquer que tenha sido o conteúdo do cálice bebido por Jesus levou-O a suar grandes gotas de sangue. Por isso clamou: "Oh, Deus, se for possível, afaste de mim essa carga. Ela é pesada demais. Eu preferiria que ela fosse de mim afastada". Quando Job foi servido do seu cálice de dor, gritou: "A minha dor é tão grande que não consigo ver por onde ando. Banho as minhas feridas em lágrimas". Quando David bebeu o cálice das dores, a sua cama tornou-se um leito de lágrimas. E disse: "O meu peito e os meus ossos estão consumidos pela dor". E o Padre Zé, muitas vezes em transe induzido, escutava durante as homílias as palavras do próprio Jesus: "Mestre, se de alguma maneira for possível, faz com que esse cálice de dor seja de mim afastado".
As lágrimas são salgadas. O primeiro símbolo dos cristãos foi um peixe. Ora o peixe vive na água e a grande maioria anda na água do mar. Daí as lágrimas. Daí a alma. Daí o sal. Por isso no baptismo se deita água na cabeça do bebé e se lhe introduz um grão de sal na boca. Por isso ele chora.
O Padre Zé acreditava mesmo que os caminhos do Senhor são insondáveis. A nossa vida na Terra é uma passagem para a vida eterna. Primeiro temos de ser concebidos como seres humanos para nos consubstanciarmos e ainda para nos distinguirmos dos outros animais, assim ganhamos direito a um corpo e a uma alma. Mas o corpo é o menos, pois é uma morada transitória. O importante é a alma. “É”, dizia ele para a irmã e para a sobrinha, “como um carro que nos leva de um lado ao outro, que precisa de gasolina e algum cuidado, mas que fenece com o uso e a idade. O corpo é uma máquina. Mas o que conta é a alma. É a alma que temos de salvar. O corpo é uma limitação humana. Por isso Deus não tem corpo. Deus é a Alma das almas. Deus é o Infinito e o mais Além. Deus é tudo. Nós não somos nada”.
“A Pátria é tudo”, dizia arrepiado o senhor Presidente da Câmara. E com a pele toda eriçada de tristeza e júbilo, elogiou Salazar e a sua obra, Marcelo Caetano e a sua inteligência, Américo Tomás e a sua serena navegação, o Império e a sua grandeza, o Ultramar e a sua protecção, a Igreja e a sua bondade, o Comunismo e a sua maldade. E disse ainda que se sentia orgulhoso com a enérgica entrega dos jovens barrosões à defesa da integridade nacional, pois Portugal é só um de Lisboa a Timor. E falou de D. Afonso Henriques e de muitos mais reis, e da gesta portuguesa dos Descobrimentos e da nossa Língua que foi a pátria de Camões. Abordou as dificuldades porque Portugal estava a passar, enalteceu o esforço e o trabalho dos portugueses que labutam lá fora, o trabalho dos portugueses que labutam cá dentro e dissertou sobre as dificuldades que a sua Câmara estava a enfrentar, sobre as obras que era necessário fazer, do esforço solidário da metrópole com as colónias, falou da aposta do Governo na educação, na batata de semente, na sementeira dos cereais, no combate à subversão e ao contrabando, apelou à vigilância dos patriotas, à necessidade de se beber menos e de ir mais à missa e rezar a tempo e horas e de pecar menos também e de não pôr em causa a política do Governo e das instituições públicas e a guarda. Por fim falou do Mário. E dos outros mários que morreram e morrem em combate para defenderem a pátria. Esta pátria tão amada, mãe de heróis, alfobre de guerreiros, barco de navegadores intrépidos, terra de génios. E chorou em cima do papel do discurso quando disse: “O Mário era um filho querido desta terra, era um exemplo para os nossos jovens, era como se fosse meu filho. A dor provocada pela sua morte vai ser difícil de ultrapassar. Por isso perdoai estas minhas lágrimas. E perdoai, bom Deus, se fordes capaz, a esses terroristas que ceifaram mais uma existência vicejante de um barrosão. Eu também tenho filhos e imagino o quanto deve custar perder um na guerra.”
Houve um minuto de silêncio aproveitado por muitos para pensar que uma coisa é fazer discursos e outra bem distinta é dizer a verdade. Todos os presentes sabiam que o filho mais velho do senhor presidente tinha feito a guerra em Lisboa com o cu sentado numa poltrona no gabinete de um general casado com uma senhora filha de um senhor muito influente na capital, que por seu lado descendia de outro senhor que se tinha casado com outra senhora também ela filha de um casal muito influente na província. Nestas coisas, como em muitas outras, a pátria é mãe para uns e madrasta para os restantes.
De seguida o Padre Zé latinou o que tinha a latinar, encomendou o que tinha a encomendar, abençoou o que tinha de abençoar e o Mário lá foi a enterrar como um herói.
No derradeiro momento, ouviu-se uma salva de disparos produzida pelo grupo de guardas da GNR do posto de Montalegre. Alguém tocou um cornetim. E o Mário desceu tão fundo quanto lho permitiu a profundidade da cova.
Uns segundos após os disparos, um milhafre caiu fulminado aos pés do maior contrabandista de Vilar de Perdizes que passava por comerciante na Vila. O Virtudes, que estava perto da Dona Rosa, segredou-lhe ao ouvido: “Isto é mau agouro. Aquele homem vai morrer em breve.” O José, que, com alguma razão, acreditava em tudo o que Virtudes dizia, nas brincadeiras da tarde armou-se em bruxo e proferiu a sentença mascando a chiclete da manhã: “A morte do milhafre foi mau agouro. O Parreco de Vilar de Perdizes vai morrer em breve.” Passados três dias foi abatido a tiro, junto à fronteira, numa rusga da Guarda Fiscal.
O mau agouro provocou outra vítima. O guarda Afonso foi suspenso durante cinco dias por, em vez de balas de pólvora, ter usado balas com projéctil.
Durante vários dias foi comentado o facto de a urna do Mário ser de chumbo e ter vindo selada. Soube-se mais tarde que o caixão veio vazio, pois o Mário não morreu em combate. Foi vítima de um descuido quando foi tomar banho num rio infestado de crocodilos.
42 – Veio o calor e o José entusiasmou-se com as brincadeiras. As aulas estavam a acabar e os exames foram fáceis. Tudo lhe sorria: a natureza, a mãe, os livros, as raparigas. Sobretudo as raparigas que...
(continua)