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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

17
Mar11

O Homem sem Memória (39) - Por João Madureira


 

 

 

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO

Ficção

 

39 – Naquele sábado de manhã encheu-se de desenhar. À tarde foi aos níscarros. Mas só depois de uma grande pega com os pais.


O José gostava de ir aos níscarros para os pinhais, para junto dos salgueiros e das linhas de água. Iam em grupos pequenos apanhá-los mas não para os levar para casa. Ele adorava vislumbrá-los ao longe e aproximar-se sorrateiramente para nenhum outro colega se antecipar. Descobria-os com o seu olhar atento de caçador furtivo e disfarçava tão bem que raramente os seus companheiros se apercebiam. Apanhava os fradelhos, boletos, cantarelas, amarelos, sanchas, tortulhos e míscaros brancos, furava-lhes o caule e enfiava-os numa galha fina de giesta. Gostava da sua forma em guarda-chuva, da sua textura aveludada, do seu aspecto redondo e elegante. Deleitava-se a acariciá-los. Muitos deles tinham uma semelhança discreta com um pénis arregaçado. Não os levava para casa porque não apreciava o seu sabor. Preferia vendê-los a clientes certos que lhos adquiriam a um preço razoável. Com o dinheiro comprava chocolates ou, mais recentemente, cigarros. O seu grupo costumava ir fumá-los para as traseiras da escola da Vila. Apenas compravam marcas recentes, todas elas publicitadas na televisão: Kart, Negritas ou Ritz. Nunca adquiriam SG filtro pois era a marca dos cigarros que o professor fumava nos intervalos das aulas numa calma exasperante, ele que era tão lesto e rápido a bater nos alunos. O SG punha os dedos amarelos e deitava mau cheiro. Também não compravam maços de Português Suave, que eram os cigarros sem filtro que o guarda Ferreira fumava, pois ainda punha os dedos mais amarelos, cheirava pior e, quando se travava o fumo, fazia com que os pulmões ficassem tão intoxicados como quando engoliam o fumo das giestas nos dias em que o vento não o deixava sair pela chaminé da cozinha.


O José era mau fumador. As suas chupadelas no cigarro provocavam-lhe sempre tosse. E o sabor era horrível. Normalmente as coisas que os homens faziam eram para ele um grande mistério. Fumavam e isso era penoso de se fazer com a frequência com que os adultos o faziam. Bebiam vinho e o seu paladar era muito desagradável. Ingeriam cerveja que era azeda como o rabo do gato. E sorviam aguardente que queimava as goelas. E fodiam, o que provocava dor, pois muitas vezes ouviu a sua mãe a gemer alto como se lhe doesse o dente do siso e o seu pai a lamentar-se como se o Porto tivesse perdido um jogo frente ao Benfica. E quando olhava para os cães depois da cópula, vomitava por os ver com os sexos pegados e vermelhos como se fosse uma ferida infectada.


Quando chegou a casa ficou admirado por ver os pais em cuecas e camisola interior de alças e a depilar-se debaixo dos braços. Aquele ar de intimidade primeiro provocou-lhe estranheza e de seguida estimulou-lhe uma náusea interior próxima do desconforto. O guarda Ferreira e a Dona Rosa comportaram-se como se estivessem vestidos com a farpela de sempre. A pele dos braços e das pernas, de um branco leitoso, provocava enjoo. O pai, de sorriso nos lábios, cortava com a sua lâmina da barba os pêlos dos sovacos da mãe com um certo desembaraço. A Dona Rosa soltava timidamente pequenos trinados como se fosse uma jovem virgem à procura do primeiro beijo na boca. Estavam ambos ligeiramente corados, felizes, desenvoltos, como se fossem pássaros a dar banho num charco de água.


Agora fazia sentido a sua insistência para que deixasse de ler os livros que o senhor Carvalho da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian empenhadamente lhe aconselhava e fosse apanhar sol. “Estás tão franzino, filho”, disse a mãe. “Estás tão enfezado, José”, repetiu o pai como se fosse uma câmara de eco. E ele: “Não me apetece. Prefiro ficar em casa a ler do que ir ter com os parvos dos meus colegas. Eles não me deixam jogar à bola. Estão constantemente a chamar-me frangueiro. Já não os suporto. São uns ignorantes. Só estão bem a dizer asneiras, a insultar-se e a bater uns nos outros.” “Tens uma cor muito amarela, precisas de apanhar ar puro. Vai brincar, que te faz bem”, tornou a Dona Rosa a insistir. E a câmara de ressonância do pai: “Vai brincar, que te faz bem. Precisas de apanhar ar. Tens uma cor tão macilenta!” E ele teimoso: “Gosto mais de ler. Este livro é muito interessante. Vou passar a tarde a ler. Os meus amigos combinaram ir aos níscarros. E eu não gosto deles.” “Gosto eu”, disse a Dona Rosa. “E desde quando é que gostas dos meus colegas? Tu detesta-los”. E a Dona Rosa: “Eu gosto é dos níscarros. São muito bons. Nem de propósito, tenho ali um quilo de vitela de estufar que vai muito bem com os tortulhos. Vai a eles, José.” E de novo a câmara de eco do pai se fez ouvir: “A carne de vitela que a tua mãe comprou combina muito bem com boletos. Os níscarros que tu apanhas são uma delícia. Vai a eles, meu filho.” E a mãe de novo: “O Virtudes levou os teus irmãos a passear até ao rio. O Leão foi com eles. Só tu é que não queres ir apanhar sol. Andas tão enfezadinho meu filho!” E o pai: “Vá lá José, andas tão definhadinho e…” E o José: “Já disse que não me apetece ir aos níscarros. Prefiro ficar em casa a ler. Estou a habituar-me à vida de clausura. Afinal sempre vou para o seminário, ou não?” E a mãe: “Então não és capaz de fazer um favor aos teus pais e ires apanhar cogumelos para o jantar. Nós cá em casa adoramos cogumelos com carne. E os teus irmãos também.” E o pai: “Os teus irmãos mais pequenos apreciam comer míscaros brancos guisados com carne de vitela e…” E o José: “Já disse que…” E a mãe: “Se não vais a bem vais a mal”. E o pai: “Toma atenção ao que diz a tua mãe.” E o José: “Ainda não entendi bem porque razão quereis que eu saia de casa. Parece que…” Nesse momento o guarda Ferreira pôs-se de pé pegou no porta-moedas, abriu-o e disse: “Como já és crescido aqui tens dez escudos para gastares como quiseres. Vai e diverte-te.”


Como toda a teimosia tem um preço, o José, mesmo contrariado, pegou no dinheiro e foi aos cogumelos.

 

40 - Foi no princípio da Primavera que o Padre Zé resolveu mexer no telhado da igreja junto ao cemitério, pois as infiltrações da água da chuva e da neve tinham começado a manchar a enorme imagem iconográfica pintada no tecto de madeira. Os rapazes ajudaram a transportar(...)

 

(Continua)

 

 

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