“Nhôra”
Nas carteiras lá do fundo, a Professora notou um certo reboliço cochicheiro.
Do Quadro, onde escrevia palavras para a lição, voltou-se com aquele seu habitual vagar a traduzir bondade, mudou o giz para a mão da vara e a vara para a mão do giz, olhou lá para o fundo e perguntou:
- Meninos, o que é que se passa?
Todos fizeram há-de conta que não era para eles tal pergunta, e até se mostraram interessados nos livros e cadernos que traziam na “saca”.
-Francisco, que é que aconteceu?
- Não foi nada, «Nhôra».
- João, diz tu. Que estavas a dizer, Augusto?
As carteiras eram de madeira «mociça». A tampa, em plano inclinado, era porta para uma caixa. No topo, em lados opostos, para cada um dos dois alunos que a ocupavam, duas ranhuras, para lápis e caneta, e um buraco para o branco tinteiro de cerâmica.
E a comichão que, lá no fundo da sala, atacou os rapazes deu propósito à Professora para lhes perguntar:
- Há por aí muitos bichos – carpinteiros?!
O «Gusto» era um mariola crescido, já repetente na «terceira”. E na «quarta» nem chegou a ir a exame.
O «Tero» era o mais novo da classe. Nesse dia chegara à Escola revoltado com o Gusto.
No dia anterior foi para casa muito intrigado.
Tinha vontade de conversar com a mãe ou falar com o pai. Mas o assunto assustava-o.
O Gusto tinha-lhe segredado que já namorava e que a Proβessora precisava dum “home” com quem dormir.
Ele, Tero, é que mal dormiu naquela noite.
Não parava de pensar nas tretas do Gusto, nem no entusiasmo que sentia sempre que olhava para a Virinha da Ti’Aurora.
Na Catequese repetiam-lhe para fugir dos «maus pensamentos, actos e omissões» , que era para ele não «ir direitinho par o inferno».
Mas no inferno sentia-se já o Terinho!
A Virinha parecia-lhe uma borboleta a esvoaçar por dentro da sua cabeça, e a acender com fósforos milhentas lamparinas, que até lhe faziam arder o coração.
Mas fora o Gusto que, com as suas tretas, o deixara em tal sobressalto.
Madrugou, com a consciência pesada e com a angústia da dúvida se teria cometido um pecado mortal.
Então, chegado à Escola, lá no fundo da sala, mal o Gusto se sentou no banco ao lado, na outra carteira, que com a sua fazia o corredor, esticou a perna direita e pisou o pé esquerdo do Gusto. Este respondeu com um «fonha-se» e um pequeno punhaço no braço do Tero.
- És burro ou fazes-te?! – resmungou o matulão.
- Tu é que és um valente aldrabão e trampolineiro! - soprou entre dentes o Terinho.
-Ai sou?! Ora diz lá porquê! – desafia o mariola. Não sei que bicho te mordeu!
E foi nestes entretantos que a Professora captou o burburinho lá no fundo da sala.
Manda a verdade REVELADA, aprendida na Catequese, que os meninos e meninas devem falar sempre a verdade. Se não, vão direitinhos para o inferno.
O Terinho andava assustado da vida. Com tanta lição de Catequese, tinha a impressão de que a vida ou «era assim» ou «era assado».
“Assado”?!
Lá lhe vinha aquela medonha imagem das almas a arderem e a penarem nas profundas do inferno.
Quando ia buscar água à fonte, com aquela cantarinha de alumínio, de duas canadas e meia, que a mãe encomendara ao Severo latoeiro, das Casas-dos Montes, com oficina no Largo do Anjo, de propósito só para ele, e passava em frente daquele nicho onde se via as almas a penar entre labaredas, arrepiava-se todo e jurava nunca ir cometer pecados - por pensamentos, actos e omissões.
Também não entendia porque estando as almas a penar entre as labaredas do inferno ainda lhes punham velas e mais velas ali, a arder, a fazer tanto calor e a salpicar as almas, em figura de gente, com pingos de cera ardente.
E, agora, lá estava a Professora a pôr à prova as suas juras.
Os pensamentos que toda a noite lhe tiraram o sono não queria revelá-los.
Praticar o acto de mentir?
Via-se já a ir direitinho, direitinho, para o inferno!
Calar-se, ficar mudo, era uma “omissão”, como lhe ensinaram na Catequese.
E se até do Purgatório tinha medo!....
A Professora, com um ar menos bondoso e uma voz menos afável, falou:
- Então, meninos, não querem dizer o que se está a passar?
Com olhar lacrimoso e a palidez piedosa de quem pede e espera uma bênção, o Terinho murmurou:
- “Nhôra”, o Gusto, ontem, disse que a “Nhôra” andava a precisar «d’home» para dormir.
Credo, cruzes, canhoto!!!
A Professora lá se refez, num repente, da pancada que o sussurro do Tero lhe acertou nos tímpanos, nas meninges e no coração.
-Meninos! – exclamou num tom de voz mais forte. (Esta Professora nunca berrava!). Vamos acabar com essas maldades.
Com Deus me deito, com Deus me levanto.
O meu marido é Nosso Senhor!
Tupamaro