Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros
A árvore do amor
um texto de José Carlos Barros
1. É a memória mais forte que me fica quase sempre dos lugares – uma árvore. E são as árvores que melhor desenham os mapas da minha infância, as memórias antigas de um território a que nunca mais poderia deixar de regressar: o salgueiro-chorão da curva do Noro, o espinheiro-da-Virgínia da ponte de S. Cristóvão, a macieira grande de Ribas, os vidoeiros da Relva, os carvalhos a caminho de Carvalhelhos, os plátanos da Avenida do Eiró, as tílias da Presa do padre Pedro e do jardim do Toural, os freixos do Vale, as amoreiras seguindo na direcção do Pardo, os amieiros do moinho do Zé Ventura, os pinheiros do Padrão, a cerejeira do Muro, os sobreiros do Alto da Granja, o cupresso da escola primária, a figueira do pátio encostada à parede da casa da dona Olinda… É um mapa denso. É um território vasto marcado pelo milagre da sucessiva floração, pelo erguer-se impositivo de um tronco, pelo rendilhado de ramos, pelo poder simbólico do que pertence à água, à terra e à matéria volátil do espaço aéreo.
2. E a que vem este relambório? Pois exactamente ao caso de haver um blog sobre as plantas de Chaves que é uma pequena preciosidade – e sobretudo uma dádiva. Claro que gostaríamos que tivesse uma maior actualização – que diariamente nos acompanhasse para que diariamente tivéssemos à nossa beira a luz poisada nas folhas, a sombra desenhada nos passeios, a irrupção de uma flor ou um fruto, o desenho de um arbusto ou de uma árvore das ruas, dos largos, das praças, dos jardins da cidade de Chaves. Claro que gostaríamos que alguém pudesse ser pago a tempo inteiro para nos lembrar que o território, e mesmo o território urbano, é feito em grande parte da presença – real, simbólica – de uma planta que partilha connosco a respiração de um mesmo ar, um mesmo espaço, um mesmo modo de atravessarmos e ser atravessados pela abstracção concreta do arco da idade.
3. Chama-se «Plantas de Chaves» e pode ser acedido a partir do seguinte endereço: http://plantasdechaves.blogspot.com. Talvez não seja ainda um mapa. Ou talvez seja: os mapas são construídos em permanência. A um mapa se acrescenta, dia após dia, uma ilha nova, um desfiladeiro, um pormenor do recorte de um troço litoral, uma enseada de areia, uma estrada, um caminho de pé posto, o talvegue que sobe uma serra a caminho das nascentes.
4. Este – o das suas flores, dos seus arbustos, das suas árvores – deveria ser, por excelência, o mapa sentimental e concreto da cidade de Chaves. Ligando as figueiras dos jardins particulares, recolhidas à intimidade de um pátio, e os hibiscos brancos do Liceu ou as cerejeiras-do-Japão do Jardim do Bacalhau, exuberantes nas suas flores cor-de-rosa; as bagas brancas ou azuladas das fiteiras do Jardim das Caldas e as camélias que, separando as faixas de rodagem com a indiscrição excessiva das suas flores vermelhas, nos levam ao largo do Monumento; os loendros espalhados pela urbe e as magnólias-chinesas dos jardins, com a trama densa dos seus ramos, com esse labiríntico entrançado que nos faz perder e encontrar nos lugares que mais se afastaram de nós ou mais soubemos amar. Como o Largo das Freiras, por exemplo. Que há-de ser sempre – no mapa íntimo dos meus territórios, na memória mais longínqua e próxima do mundo – o lugar onde se desenham as olaias.
5. As olaias. A árvore de Judas, a árvore do amor. A árvore das folhas em forma de coração.