O Homem sem Memória (56) - Por João Madureira
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
56 – José regressou ao seminário sem ter visto a Luisinha que estava de férias na Póvoa na companhia da família. O seu pai, o presidente da Câmara, por vezes dava-se a estes luxos, para bem dos seus filhos, pois detestava o sol, mas, sobretudo, embirrava com as nortadas, que eram permanentes, e com a temperatura da água, que era glacial. Ia a banhos com a família por causa do iodo. Um médico amigo a isso o tinha aconselhado. E se havia coisa que ele amava na vida, para além do insípido poder, da tímida glória, do sempre pouco dinheiro, da gloriosa mulher do seu secretário e da sua querida mãezinha, era da sua filha mais nova, a Luisinha. E quando o médico lhe disse, em tom de confidência, que nas terras do interior o iodo era raro, e que a ocorrência de deficit de iodo na infância podia originar o cretinismo, quase teve um ataque. Logo lhe veio à memória a imagem dos bandos de crianças que habitavam as aldeias e enxameavam as ruas da vila, com as suas caras de ratos esfaimados, ranhosos, sujos, esfarrapados, com o seu característico ar esgazeado, enfim, cretinos de todo. Por isso perguntou ao doutor se toda aquela cretinice era devido à falta de iodo? Ele respondeu-lhe que não é a esse tipo de cretinice que a ciência se refere. “A cretinice a que te referes”, disse ele pronunciando os esses e os erres com modos delicados, “provém de uma palavra do dialecto franco-provençal, ‘crétin’, que significava cristão. O seu actual uso resulta do costume de usar a expressão «pobre cristão» ou «cristão», no sentido de «inocente», para designar os loucos e os débeis mentais.” “Cala-te, por amor de Deus, cala-te lá, pois se o Padre Zé ouve o que para aí estás a dizer ainda te excomunga e eu não quero ser o responsável por o meu maior amigo ser condenado às eternas chamas do Inferno”, disse o pai da Luisinha, entre o atrapalhado e o irónico. Ele que não possui a mínima réstia de humor. E concretizou o conceito arrancado a algum velho dicionário da Língua Portuguesa enquanto decorava os parcos princípios de Direito que conseguiu absorver à custa de muito porfiar: “Um cretino é uma pessoa de pouca inteligência ou estúpida.” O médico, porfiando em aclarar de vez a ideia, elucidou: “Na Medicina, é um indivíduo que sofre de cretinismo, ou seja, um indivíduo dotado de debilidade mental por deficiência da tiróide, mais exactamente a falta de tiroxina, hormónio proveniente dessa glândula endócrina. O indivíduo que sofre de cretinismo manifesta atraso mental e físico. A doença inicia-se geralmente quando o bebé ainda está no útero materno. Uma vez nascido é difícil detectar o problema, sendo necessário recorrer ao teste do pezinho para identificar a doença a tempo de tratá-la. Só que por cá não existe tal prática médica. Aqui nasce-se com falta de tiroxina e fica-se cretino para toda a vida. Quem sofre de cretinismo é o filho do Rei da Portela, a filha do Zé da Avó, o filho do João de Donões, o filho do…” “Cala-te para aí, Francisquinho! Esses são atrasados mentais.” “Pois é desses que a medicina fala”, teimou o Doutor Chico, Francisco ou Franscisquinho para a família mais chegada e para os amigos mais chegados da família mais chegada, nos quais se incluía a família do pai da Luisinha, de seu nome Ricardo, ou Ricardinho para a família mais chegada ou para os amigos da família mais chegada, nos quais se incluía a família do Doutor Chico, Chiquinho, Franscisco ou Franscisquinho, assim nomeado pelas circunstâncias já acima elucidadas. E, como se estivesse numa oral na Faculdade de Medicina, acrescentou: “O iodo é um elemento químico essencial. Uma das funções conhecidas do iodo é como parte integrante dos hormónios tireóideos. A glândula da tiróide fabrica, como já referi, os hormónios tiroxina e tri-oidotironina, que contém iodo. O deficit de iodo conduz ao hipotiroidismo de que resultam o bócio e mixedema. Fui explícito?” “Isso para mim é chinês”, respondeu o Dr. Ricardo, Ricardinho, ou simplesmente Rica para a sua querida mamã, a sua amante e esposa do seu dilecto secretário, e da sua filha Luisinha. Para rematar: “E onde se pode comprar o iodo?” “Desse tipo de que te falo só o podes encontrar abundantemente junto ao mar, especialmente nas praias do Norte. E é de graça.” “Pode ser de graça para os que por lá vivem, mas para as gentes do interior custa bom dinheiro, especialmente nos gastos com o Hotel. A nossa interioridade fica cara. Qualquer dia isto transforma-se num deserto.” (Palavras premonitórias que vieram a ser decoradas e espargidas por outros políticos com o mesmo ou ainda maior prestígio do que o do autarca barrosão. A história do poder autárquico ainda está por escrever, meus senhores. E quando ela for registada, vamos de certeza descobrir, com o espanto hipócrita dos homens proeminentes da capital e seus célebres subúrbios, que foi aqui, no Norte do Norte de Portugal, que as grandes ideias fundadoras da nossa democracia tiveram a sua génese.) “Não te queixes, Ricardo, que com a Câmara bem te tens safado. Eu é que peno por estas terras do demo. Dedico-me ao exercício da medicina com a determinação de um frade. Trabalho copiosamente mas não amealho um centavo. Tudo se me vai em agasalhos e mantimento. Sou para aqui um infeliz.” “Dizem por aí que ainda te sobra algum para ires às putas a Xinzo. Ai Francisquinho, a vida custa a todos. Eu, por exemplo, nasci com o espírito de formiga. Sou um infeliz. Venho de casa para o trabalho e vou do trabalho para casa. Tu não, és um galaroz que traz as donzelas mais abastadas presas pelo beicinho. Mas tem cuidado com o que fazes. Por aqui a honra das famílias abastadas é um bem que se defende a pólvora e chumbo e que se paga com a morte do D. Juan.” “Por isso é que eu vou às putas a Xinzo. Em Chaves sou muito conhecido. Dava escandaleira pela certa.”
Foi por causa da primeira parte desta elucidativa e esclarecedora conversa que o aflito pai da Luisinha resolveu rumar caras à grossa areia, ao sol castigador e ao mar frio e picado da Póvoa, para aí encontrar o apreciado iodo. Isso fez com que o José e a Luisinha se tenham desencontrado. Ora longe da vista longe do coração. Ela começou a sorrir para outros rapazes, outros rapazes começaram a sorrir para a Luisinha. Por isso a Luisinha começou a sonhar com rapazes de outra condição, com diferentes estilos, distinto tom de pele, outro linguajar, diferente gingar de pernas. Principiou a expor-se de uma forma mais artística. O retrato mental do José desvaneceu-se na cabeça da Luisinha tal e qual as brumas matutinas da praia quando o dia começa a aquecer ao sol.
57 – Pedro três vezes negou Jesus. Outras tantas negou Luisinha o José. Negou-o quando disse que não tinha namorado, quando afirmou que não gostava dele e quando revelou que ...
(continua)